Artista visual, pesquisadora, doutora em artes plásticas pela USP, Rosana Paulino apresentou o último evento da série Conferências FAPESP 2023 (foto: Daniel Antonio/Agência FAPESP)

Artes
Rosana Paulino escancara com sua arte o trauma da escravidão
27 de novembro de 2023
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A artista plástica apresentou um resumo de sua obra na 8ª Conferência FAPESP 2023, que teve como tema “Raízes que emergem: entrelaçamentos entre arte e ciência”

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Rosana Paulino escancara com sua arte o trauma da escravidão

A artista plástica apresentou um resumo de sua obra na 8ª Conferência FAPESP 2023, que teve como tema “Raízes que emergem: entrelaçamentos entre arte e ciência”

27 de novembro de 2023
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Artista visual, pesquisadora, doutora em artes plásticas pela USP, Rosana Paulino apresentou o último evento da série Conferências FAPESP 2023 (foto: Daniel Antonio/Agência FAPESP)

 

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – “O Brasil é um país que não se enxerga”: a frase foi dita, com a necessária contundência, por Rosana Paulino durante a 8ª Conferência FAPESP 2023 – a última programada para este ano. Artista visual, pesquisadora, doutora em artes plásticas pela Escola da Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), com exposições no país e no exterior, inclusive agora na Bienal de São Paulo, Paulino tratou do tema “Raízes que emergem: entrelaçamentos entre arte e ciência”, para o qual apresentou um resumo de sua vasta produção artística, de mais de 30 anos.

A frase está longe de ser um floreio retórico. Mulher e negra, em um Brasil ainda patriarcal e racista, Paulino fez e faz de sua obra um instrumento para que o país consiga enxergar a si mesmo. Ou, como ela diz, para “colocar o país sobre a mesa”, no sentido de discutir e superar as marcas do passado que ainda sobrevivem no presente e abrir caminho para o futuro. Para ela, essas marcas todas configuram um grande trauma: o trauma da escravidão. “Enquanto não formos capazes de olhar e discutir a fundo a escravidão, não seremos capazes de realizar todo o nosso enorme potencial”, disse.

Mas a escravidão não é para ela um número: mais de 5 milhões de pessoas, entre africanos e descendentes. Como artista, ela enxerga cada escravizada ou escravizado como uma totalidade: um corpo, uma alma, uma cultura, uma história. E o seu trabalho é, de certa maneira, contar essa história, ou melhor, contar o que está por trás dessa história, que a cultura predominante ainda teima em esconder.

Essa narrativa visual passa por Aracnes, na qual ela compara as mulheres às aranhas, que retiram do próprio corpo o material que compõe a teia e garante a sobrevivência de filhas e filhos. Não é a aranha como mãe aprisionadora e devoradora, que marca tão fortemente a obra da artista franco-americana Louise Bourgeois (1911-2010). Mas a aranha como mãe tecelã, inspirada na própria mãe de Paulino, que sustentava a família como costureira e bordadeira.


Aracnes* (1996)

Uma imagem forte, com a qual a artista passou anos tentando lidar, foi um tríptico fotográfico do fotógrafo franco-suíço August Stahl (1828-1877), de 1865, que mostra uma negra escravizada, inteiramente nua, de frente, de perfil e de costas. Paulino foi fortemente impactada por esse registro fotográfico que, para uma sensibilidade aguçada, condensa toda a violência da escravidão. E também a violência das políticas de Estado posteriores à escravidão, pautadas em um pensamento pseudocientífico que pretendia eliminar, até 2012, toda a presença negra no país, fosse pela morte, pura e simples, favorecida pela miséria, fosse por um suposto branqueamento decorrente da miscigenação.

Transformando a dor em força e a vergonha em semente, Paulino fez dessa imagem o ponto de partida para a série Assentamento, explorando os múltiplos significados dessa palavra, tão rica de conotações: assentamento como ato de fixar residência em um lugar, para o qual homens, mulheres e crianças foram trazidos contra a vontade; assentamento como esforço vitorioso para imprimir aqui todo um conjunto de práticas, uma cultura, um saber; assentamento como local onde se ancora a energia sagrada, o Axé, das deidades do complexo religioso afro-brasileiro.

“Filha de Ogum com Iansã”, portanto guerreira, como ela se reconhece, Paulino vê nessa energia, aqui assentada, a força que manteve o escravizado, a escravizada e seus descendentes conectados à raiz e lhes deu alento para seguir em frente no contexto da diáspora.

Grandes mulheres, donas de casas de samba ou mães de santo ou as duas coisas ao mesmo tempo, ajudaram a lastrear essa energia. E Paulino as homenageou na série Jatobá, associando as mulheres à grande árvore, encontrada na Amazônia, no Cerrado, na Caatinga, na Mata Atlântica e no Pantanal. Ela relata que perto de onde mora e tem seu estúdio, para os lados do Jaraguá, na cidade de São Paulo, existe um jatobá com talvez mais de 500 anos.


Imagem da série Jatobá * (2019)

Cavando ainda mais fundo, Paulino chegou às mulheres da série Mangue, as avós das avós das Jatobás, como afirmou. Ora úmidas, ora secas, conforme a subida e a descida das marés, enraizadas na lama e com os braços voltados para o céu, essas ancestrais, das quais Nanã é o arquétipo por excelência, são as provedoras de nutrientes profundos, que nos mantêm vivos.

O evento teve a presença do professor Marco Antonio Zago, presidente da FAPESP, que mencionou a convergência entre artes e ciências e ressaltou a importância de ter uma presença da estatura de Rosana Paulino na série de Conferências FAPESP 2023. A moderação do evento foi feita por Esther Império Hamburger, professora da ECA-USP e membro da Coordenação de Ciências Humanas e Sociais (CHS II) da FAPESP, que encerrou o encontro enfatizando a diversidade como a maior riqueza do Brasil, um país negro, branco e indígena: “Uma diversidade tensa, violenta, pautada pela desigualdade, mas que nos oferece talvez uma janela única para nos colocarmos para o mundo como alternativa”.

A 8ª Conferência FAPESP 2023 pode ser assistida na íntegra em: www.youtube.com/watch?v=tmRgdNM6EDU.

* Imagens capturadas do site https://rosanapaulino.com.br/

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