Projeto da Unifesp lança histórias em quadrinhos para debater preconceitos sobre a adolescência

Objetivo é ajudar os adolescentes a lidar melhor com os desafios relacionados às transformações corporais e cerebrais características da idade

Agência FAPESP – O “Projeto Adole-sendo”, coordenado pela professora Sabine Pompeia, da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp), está criando histórias em quadrinhos em parceria com o quadrinista e professor da rede municipal de São Paulo Marcos Roberto da Silva Moreira para divulgar as descobertas científicas que vêm sendo desenvolvidas pelo grupo de pesquisa e, assim, debater preconceitos relacionados à adolescência.

As HQ’s da Jovenilda podem ser lidas no portal Adole-sendo, que tem conteúdos específicos para adolescentes, pais, professores e pesquisadores.

O objetivo é que as HQ’s sirvam de ferramenta para que os adolescentes entendam mais sobre si próprios e, possivelmente, ajudem a iniciar conversas entre eles e os adultos sobre sentimentos e comportamentos típicos desse período da vida. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a adolescência se dá entre os 10 e os 19 anos de idade.

A iniciativa é uma das atividades do Projeto Temático “Efeito do desenvolvimento puberal na autorregulação do comportamento e suas relações com as condições de vida atual e pregressa”, apoiado pela FAPESP. Ao todo, foram mais de 20 pesquisadores envolvidos, desde 2017, além de muitos estudantes de pós-graduação.

“Nós tivemos um olhar especial para as mudanças na autorregulação do comportamento, ou seja, no autocontrole, associado às alterações de regiões frontais do cérebro, que são as últimas a amadurecerem. A ideia era entender a maturação dos comportamentos no início da adolescência, a fase em que há muitas transformações do corpo e cérebro, para investigar como essa maturação se relaciona com fatores biopsicossociais como puberdade, estresse, saúde física e mental e ambiente”, contou Pompeia à equipe de divulgação do projeto.

Alguns artigos científicos já começaram a ser publicados, mas resultados importantes ainda devem ser divulgados nos próximos meses. O Dia Nacional dos Quadrinhos foi comemorado em 30 de janeiro, considerado o Mês da Saúde Mental.

“Desde criança eu sonhava em produzir histórias em quadrinhos. Poder trazer conhecimento aos jovens e adultos por meio da minha arte e ainda realizar o meu sonho de infância é simplesmente incrível. A linguagem dos quadrinhos é única, tem a potência de divertir e informar”, afirmou também à equipe de divulgação do projeto Marcos Roberto da Silva Moreira, professor e quadrinista.

Quem é a Jovenilda?

A personagem central das HQs é a Jovenilda, que está no nono ano do Ensino Fundamental. Todas as suas características (físicas e de personalidade) foram escolhidas por um grupo de adolescentes que ajudaram a criá-la durante a pandemia da COVID-19 e que, na época, estavam vinculados à Escola Municipal de Ensino Fundamental Joaquim Osório Duque Estrada, zona leste de São Paulo.

O pano de fundo da narrativa é o dia a dia dos estudantes, em casa e na escola. Para criar esses quadrinhos, Moreira e seus alunos tiveram a ajuda de outro quadrinista e pesquisador da área de divulgação científica, Carlos Antônio Teixeira. Eles se inscreveram no concurso de quadrinhos Adole-ser na Pandemia, promovido pelo “Projeto Adole-sendo” em 2020. Além de ganharem seis prêmios, receberam destaque com a obra coletiva (leia mais em: agencia.fapesp.br/33792/).

Na primeira HQ, Jovenilda Confinada, cada página foi feita por um estudante. A história que abre a narrativa traz o sentimento de decepção e medo da pandemia, que frustrou os planos de entrada no nono ano da turma.

“Logo no primeiro quadrinho, a Jovenida está no sexto ano, quando a gente via o pessoal mais velho mandando na escola, digamos assim, furando a fila da merenda, escolhendo as músicas da rádio, dominando a quadra de esportes... E aí, chega a pandemia, e ela não consegue mais fazer o que queria, ser quem ela queria!”, conta Álex Braz, que bolou a primeira página.

Os quadrinhos também abordaram a falta de acesso à tecnologia para assistir às aulas on-line durante a pandemia devido a questões financeiras; o fato de muitos patrões não dispensarem suas empregadas domésticas mesmo nos períodos mais críticos do isolamento social; o ganho de peso por ficar tanto tempo em casa sem se exercitar; a busca por novos hobbies e, principalmente, a saudade dos amigos.

Negra e moradora da periferia de São Paulo, Jovenilda representa boa parte dos jovens brasileiros. Assim, ela e sua turma se mostraram ideais para ajudar os cientistas a divulgar o que estavam descobrindo nos laboratórios, além de também dar voz às meninas.

“Eu consumo bastante mangá e HQ, mas a gente só vê personagens brancos. Até em cosplay é muito difícil você encontrar um personagem negro, quanto mais uma menina negra, com os quais as pessoas possam se identificar. Então, ter uma personagem assim, me deixa muito feliz”, disse Micaelly Pamela Batista dos Santos, que também participou do concurso.

Nova etapa

Agora, Moreira e Pompeia estão desenvolvendo novas narrativas para os quadrinhos, com foco nas descobertas científicas do grupo de pesquisa da Unifesp. Alguns desses temas surgiram em conversas com os estudantes, mas a maior parte tenta aliar conhecimentos científicos do dia a dia dos jovens para discutir conceitos preestabelecidos sobre essa fase da vida que, muitas vezes, não têm base científica.

Soltando o verbo com Jovenilda foi publicado no fim de 2022, e Jovenilda: acordos x conflitos está em fase de produção. “Nós já definimos o argumento das próximas histórias. Agora, vou fazer o roteiro completo com os diálogos, descrição de cenas e quadros para começar a desenhar”, revelou Moreira.

“Existe muito preconceito sobre essa faixa etária. Nós descobrimos, por exemplo, que eles não se arriscam tanto quanto as pessoas imaginam. Além disso, eles têm muita coragem e garra, ou seja, têm plena capacidade de fazer esforço para atingir o que querem. Estes são alguns aspectos que estamos discutindo nos quadrinhos”, contou Pompeia.

Segundo a pesquisadora, este foi um dos principais resultados de uma das pesquisas realizadas no grupo, com um jogo de computador criado para testar a disposição em esperar por recompensas.

“Nesse game, quanto mais esperassem, mais pontos ganhavam. Em um dos jogos, os pontos eram convertidos em dinheiro: até R$ 15. E, ao contrário do que se esperava, no meio da adolescência, entre 15 e 17 anos, eles se esforçaram mais para alcançar o que queriam, ou seja, mais dinheiro, mesmo que precisassem esperar mais tempo. Isso é muito importante para a gente entender que o adolescente não é tão impulsivo quanto se imaginava e que tem recursos para enfrentar os vários desafios da vida”, relatou Daniel Utsumi, que conduziu essa parte da pesquisa, cujos resultados ainda não foram publicados.

Outra questão importante que os pesquisadores do projeto encontraram é que as meninas são mais suscetíveis a sentir tristeza e irritação quando entram na puberdade do que os meninos.

“Contudo, dados epidemiológicos mostram que há maior prevalência de tentativas de suicídio em adolescentes do sexo masculino, assim como entre negros e pardos, e que tentativas de suicídio têm aumentado substancialmente nos últimos anos. Embora o motivo para isso ainda não seja conhecido, é possível aventar que as condições econômicas e sociais tenham um importante papel. Por exemplo, porque é menos aceito socialmente que garotos peçam ajuda e se abram com os outros”, ressaltou Pompeia (leia mais em: revistapesquisa.fapesp.br/juventude-extraviada/).

O que muda no cérebro?

Uma das principais questões para os pesquisadores do “Projeto Adole-sendo”, tratada nos quadrinhos por meio das situações do dia a dia da turma da Jovenilda, são as mudanças no corpo e no cérebro dos adolescentes, que influem em como eles se sentem, como percebem as coisas ao seu redor e como agem.

Por exemplo, essas mudanças biológicas acabam se refletindo em problemas com o sono, ou em baixa autoestima, ou ainda excesso de coragem diante de riscos, dificuldade de organização nas tarefas de casa ou da escola, ou de controlar algumas emoções, bem como uma certa tendência de ser mais impulsivo, o que tende a diminuir à medida que se fica mais velho. Todas essas situações são narradas nos quadrinhos.

“Nós vimos que na adolescência dormir muito tarde está associado a ter mais dificuldade de se controlar quando se está chateado. Além disso, para muitos adolescentes, o horário de acordar e dormir está muito bagunçado. Isso pode ter relação com uma tendência à obesidade, que tem muitas consequências negativas. Como estão também fazendo pouca atividade física, isso pode estar associado a problemas de saúde no futuro”, alertou Mônica Carolina Miranda, uma das pesquisadoras principais.

Impactos da pandemia na educação

De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), mesmo antes da pandemia metade de todas as condições de saúde mental já começava aos 14 anos de idade, mas a maioria dos casos não era detectada nem tratada. Isso tem relação com as alterações fisiológicas que fazem parte dessa fase da vida. Agora, no momento atual, é preciso ainda mais cuidado com os impactos da pandemia sobre os jovens e adolescentes.

Embora os dados coletados pelos pesquisadores do “Adole-sendo” tenham sido obtidos em sua maioria antes da COVID-19, o distanciamento social agravou esses problemas psiquiátricos.

Só em 2020, foram 297 dias de suspensão de atividades presenciais em escolas no país por causa da pandemia, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Depois, em 2021 e 2022, as aulas foram retomadas, mas a saúde mental, a aprendizagem e o convívio social ainda sofrem com isso.

O projeto não estudou diretamente índices ou impactos da pandemia na aprendizagem dos adolescentes, mas, segundo os estudos de Miranda, “os problemas decorrentes do distanciamento social durante a pandemia na adolescência estão sendo vistos com as queixas trazidas pelos pais e os próprios adolescentes em nossas clínicas, sintomas de ansiedade, depressão, baixa estima e, obviamente, isso tem impacto no aprendizado”.

Além disso, as desigualdades socioeconômicas que já existiam foram acentuadas nesse período, por exemplo, com aumento do abandono escolar pelos jovens de famílias mais pobres. Segundo Pompeia, “a adolescência é uma janela de desenvolvimento ideal para maximizar a capacidade de aprender conteúdo escolar e de se relacionar com os outros. É realmente difícil recuperar essas perdas causadas pelo isolamento social em outras idades”.

Entretanto, as pesquisas sobre cognição e testes comportamentais desenvolvidas no projeto podem ser utilizadas para pensar alguns parâmetros e novas abordagens

“Nós sabíamos que o baixo nível socioeconômico prejudica algumas habilidades, como leitura e escrita, então fica difícil identificar jovens que realmente têm problemas de linguagem aqui no Brasil, em que há muita desigualdade. Foi aí que nós tivemos a ideia de analisar relatos verbais de histórias de contos de fadas que todos conhecem, como Chapeuzinho Vermelho, para ver se o baixo nível socioeconômico também afetava essa habilidade”, conta Pompeia.

Com a ajuda de uma ferramenta gratuita desenvolvida pela USP de São Carlos, a NILC-Metrix, foi possível analisar 200 parâmetros linguísticos dos relatos dessas histórias.

“Observamos que, à medida que os adolescentes ficam mais velhos, se expressam melhor: usam palavras mais difíceis, frases mais complexas e interligam ideias entre frases de forma mais eficiente e isso foi pouco impactado pelo nível socioeconômico. Isso é legal porque é fácil e rápido de avaliar, não tem custo e pode ser feito mesmo com aqueles que não estão sabendo ler e escrever muito bem, porque não tiveram oportunidades adequadas”, explicou Breno Pedroni, que desenvolveu essa parte do estudo, já submetida para publicação.

Mais informações sobre o projeto podem ser encontradas em: https://adole-sendo.info/.