Com texto traduzido do original grego, estudo introdutório, notas e comentários, livro coloca ao alcance dos leitores de língua portuguesa o diálogo Protágoras, de Platão, que estabelece, pela primeira vez, a distinção entre filosofia e sofística ("A Escola de Atenas", Rafael)

O filósofo e o sofista, segundo Platão
23 de março de 2018

Com texto traduzido do original grego, livro coloca ao alcance dos leitores de língua portuguesa o diálogo Protágoras, de Platão, que estabelece, pela primeira vez, a distinção entre filosofia e sofística

O filósofo e o sofista, segundo Platão

Com texto traduzido do original grego, livro coloca ao alcance dos leitores de língua portuguesa o diálogo Protágoras, de Platão, que estabelece, pela primeira vez, a distinção entre filosofia e sofística

23 de março de 2018

Com texto traduzido do original grego, estudo introdutório, notas e comentários, livro coloca ao alcance dos leitores de língua portuguesa o diálogo Protágoras, de Platão, que estabelece, pela primeira vez, a distinção entre filosofia e sofística ("A Escola de Atenas", Rafael)

 

José Tadeu Arantes  |  Agência FAPESP – O diálogo tem sido um gênero literário fundamental no processo de construção do conhecimento. Da Bhagavad Gita (séc. 5 a.C.–séc. 2 a.C.), obra referencial da espiritualidade indiana, aos Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a due nuove scienze (1638), de Galileu, um dos tratados fundadores da ciência moderna, uma grande quantidade de diálogos forneceu o estofo intelectual para religiões, filosofias, ciências, artes e outras disciplinas por meio das quais se manifestou a inteligência humana.

Entre os maiores mestres do gênero, Platão (428/427–348/347 a.C.) é nome obrigatório, pois quase toda a sua obra filosófica, cuja importância nunca será demais enfatizar, foi escrita na forma dialógica. Apesar da dificuldade em sequenciar cronologicamente suas cerca de três dezenas de diálogos, a análise crítica praticada ao longo do último século logrou dividir a produção do filósofo em três fases distintas: uma fase juvenil, na qual as doutrinas platônicas ainda estariam em formação; uma fase intermediária, na qual foram produzidas obras maiores, como A República, Banquete, Fédon e outras; e uma fase tardia, de natureza mais analítica, em que já ocorre uma revisão daquilo que havia sido estabelecido na fase intermediária, com textos como o Sofista, O Político e As Leis.

Um novo esforço de tradução dos textos platônicos, diretamente do original grego e não de versões em línguas ocidentais modernas, e de comentário crítico, no nível do melhor padrão internacional, vem ocorrendo no Brasil. E encontra-se em franca expansão. A publicação do diálogo Protágoras, com tradução, estudo introdutório, comentários e notas de Daniel Rossi Nunes Lopes, é exemplo disso.

Professor de Língua e Literatura Gregas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), Lopes é um dos pesquisadores principais do Projeto Temático “Teorias da causalidade e ação humana na filosofia grega antiga”, coordenado por Marco Antônio de Ávila Zingano e apoiado pela FAPESP.

Em 2011, Lopes recebeu apoio da FAPESP para a publicação de sua tradução do diálogo Górgias. Voltou a contar recentemente com apoio para a publicação do Protágoras.

“Já há algum tempo, os diálogos de Platão constituem o objeto de minha pesquisa científica. E o trabalho de tradução, comentário e publicação que realizo é uma decorrência desse procedimento acadêmico. Trata-se de uma atividade minuciosa, de longo prazo, porque pressupõe a análise filológica do texto grego original e o cotejo das várias traduções e comentários em línguas modernas. O desenvolvimento da área de estudos clássicos, no nível do padrão internacional, é recente no Brasil, um produto das últimas décadas. E só se tornou possível graças a um ensino muito consistente do grego e do latim. Contamos hoje com toda uma nova geração de pesquisadores aptos a fazer trabalhos de altíssimo nível. Há grupos fortes na Universidade de São Paulo, na Universidade Federal de Minas Gerais e na Universidade Estadual de Campinas, entre outras”, disse Lopes à Agência FAPESP.

Segundo o especialista em filosofia grega, o público-alvo de um livro como sua versão do Protágoras é, principalmente, a comunidade acadêmica: professores, pesquisadores, estudantes. Mas nada exclui que um leitor iniciante também possa se beneficiar, porque, no livro, encontrará a tradução criteriosa do texto original. Embora a tradução propriamente dita possa ocupar menos da metade do volume, sendo a maior parte do livro constituída pelo estudo introdutório, as notas e os comentários, ainda assim a tradução está presente, ao alcance de qualquer pessoa interessada.

“É um livro muito diferente das edições populares de obras clássicas, que podem ser compradas a preços baixos até mesmo em bancas de jornais. Nelas, o texto muitas vezes nem é traduzido a partir dos originais gregos ou latinos, mas a partir de traduções para outras línguas modernas, como o inglês e o francês, e sem o rigor crítico que buscamos. Nossa pretensão é fazer um trabalho voltado para o público acadêmico, oferecendo suporte para as pesquisas de estudantes de iniciação científica, mestrado ou doutorado, mas que seja, ao mesmo tempo, acessível ao leitor principiante. E oferecendo ainda algo relativamente novo em língua portuguesa que é a análise meticulosa da obra”, disse Lopes.

A importância peculiar do Protágoras, um texto da fase juvenil de Platão, está no fato de ser a primeira obra conhecida que busca estabelecer uma clara distinção entre as figuras do filósofo e do sofista – distinção que seria adotada posteriormente pela tradição filosófica ocidental.

“Antes do Protágoras, não havia os conceitos de filósofo e de sofista tais como os utilizamos hoje. O que Platão fez, nesse diálogo, foi estabelecer a ideia do filósofo, a partir da figura paradigmática de Sócrates, em oposição à ideia do sofista, representada por Protágoras. Tal dicotomia perpassou depois todo o pensamento platônico. E a resposta final de Platão para esse problema só apareceu em um diálogo de sua terceira fase, que se chama precisamente Sofista. Nele, o sofista é apresentado como o falso filósofo, que professa o falso saber, e que, por isso, se encontra no âmbito do não-ser, em contraposição ao filósofo, que se encontra no âmbito do ser. Este argumento, muito sofisticado em termos metafísicos, foi, digamos assim, a palavra final de Platão sobre o assunto. Mas o problema foi posto desde o diálogo Protágoras”, disse Lopes.

Na obra de Platão, a distinção entre o filósofo e o sofista dá-se em vários níveis. Mas o ponto fundamental que os distingue é o fato de o sofista ser um profissional que apregoa poder ofertar ensinamentos em troca de dinheiro.

“Isso é algo que Sócrates jamais aceitaria – tanto na opinião de Platão quanto na de Xenofonte (cerca de 430 a.C.–355 a.C.), que é outra importante referência acerca da suposta personalidade socrática. No Protágoras, o sofista propõe tornar o cidadão um bom cidadão, o que vai ser entendido como ensinar-lhe a virtude moral. Sócrates, ao contrário, pelo menos nesse diálogo da primeira fase, não se propõe ensinar nada de maneira tão positiva assim. Mas suscitar em seu ouvinte a reflexão crítica”, comentou o pesquisador.

“Com base nessa construção literária, o Sócrates de Platão sempre favorece o diálogo breve, por meio do qual o assunto em pauta é examinado. Em oposição, o sofista privilegia o discurso longo, o discurso de exibição, com recursos que chamaríamos hoje de retóricos. Ao contrário do ensino sofístico, que ocorria, mediante remuneração, em ambientes privados, a reflexão crítica de Sócrates era oferecida gratuitamente em lugares públicos e/ou privados, a qualquer interessado. Mas a ideia final, que é desenvolvida tanto por Platão quanto por Aristóteles (384 a.C.–322 a.C.), é a de que o sofista é um sábio aparente, que professa um falso saber e não produz conhecimento. Foi isso que ficou consignado na tradição”, disse Lopes.

Questão socrática

Hoje, os estudos que tratam da sofística procuram justamente desconstruir esse preconceito platônico-aristotélico, mostrando que os chamados sofistas também eram filósofos, se o termo for utilizado em uma acepção mais ampla e atual. Eles discutiam os mesmos temas que Sócrates discutia e tinham posições fundamentadas e sofisticadas. O problema é que, embora tenham escrito muito, suas obras não se preservaram. Então, existe todo um problema para a reconstrução de seu pensamento.

Além do estabelecimento da dicotomia filósofo-sofista, outra importância do diálogo Protágoras é o fato de ele apresentar algumas teses que Aristóteles classificou como propriamente “socráticas” – isto é, teses que teriam sido professadas pelo próprio Sócrates. Uma delas é a de que a virtude moral consiste em conhecimento. Essa tese fundamenta aquilo que foi chamado de “intelectualismo socrático”.

“Quando pensamos na filosofia de Platão, o que sempre vem à mente são as grandes teorias que aparecem nos diálogos intermediários, como A República, Banquete, Fédon, Fedro etc. Isto é, a teoria das formas ou das ideias, que é o eixo central da metafísica platônica, a teoria da tripartição da alma e a teoria da imortalidade da alma. Nenhuma dessas três doutrinas aparece no Protágoras. O que existe, sim, de forma explícita, é a discussão sobre se é possível ou não ensinar a virtude, se as virtudes particulares constituem uma unidade, e a identificação da virtude moral com o conhecimento. São esses temas que estão em jogo, e são debatidos pelos dois protagonistas principais: Sócrates e Protágoras. Mas é preciso considerar que, embora o intelectualismo possa provir de Sócrates, tudo o que há nesse diálogo é de Platão. Mesmo os “socratismos” são expressões da maneira como Platão concebeu o pensamento socrático”, enfatizou Lopes.

A questão da personalidade de Sócrates, a chamada “questão socrática”, foi muito debatida ao longo do século 20. E a grande dificuldade é que essa personalidade foi apresentada de maneiras muito diferentes pelos diferentes autores que, na época de Sócrates, ou no período imediatamente posterior, escreveram a seu respeito.

“No fim da vida de Sócrates e depois de sua morte, houve como que um boom literário a seu respeito. Temos registro de cerca de 300 obras escritas sobre ele. Platão e Xenofonte são apenas os autores mais famosos, mas houve vários outros. Escrever sobre Sócrates virou um fenômeno literário nesse período”, disse o pesquisador.

Grande parte dessa produção se perdeu, restando apenas fragmentos. O contraponto que alimentou o debate foi entre o Sócrates de Platão e o Sócrates de Xenofonte, cujas obras se preservaram. Quando se compara os dois, constatam-se alguns elementos comuns, como, por exemplo, o caráter virtuoso de Sócrates e a capacidade que ele tinha de aglutinar um amplo círculo de pessoas ao seu redor. Porém, ao mesmo tempo, sobressaem diferenças muito marcantes. Enquanto o Sócrates de Platão nega ser professor do que quer que seja, estabelecendo com a famosa frase “tudo o que sei é que nada sei” as bases da chamada “ignorância socrática”, o Sócrates de Xenofonte propõe-se positivamente ensinar as pessoas a serem melhores cidadãos.

No passado, o testemunho de Aristóteles, que não conheceu Sócrates pessoalmente mas foi aluno de Platão, constituiu uma espécie de fiel da balança. Mas a crítica mais recente descartou essa opção, pois, em geral, o que Aristóteles atribui a Sócrates é rastreável nos diálogos platônicos. E considerou que, de fato, nunca teremos informações positivas e seguras que permitam diferenciar o que há de histórico e o que há de fictício nas construções literárias sobre Sócrates feitas por Platão, Xenofonte, Aristóteles e outros. Em todas as obras escritas por seus contemporâneos ou sucessores imediatos, Sócrates é sempre um personagem, portanto uma construção fictícia.

“Por isso, em um colóquio internacional recente, um dos maiores especialistas em Sócrates da atualidade, Louis-André Dorion [nascido em 1960], professor de Filosofia Antiga na Université de Montréal, decretou o fim da ‘questão socrática’. Em vez de buscar a historicidade de Sócrates, o que se deve fazer é a análise filosófico-literária das diferentes representações de Sócrates construídas pelos diferentes autores da época”, disse Lopes.

“Ao apresentar Sócrates como paradigma, Platão sempre tem, no horizonte, uma motivação ética: a busca da melhor maneira de viver. Embora o Protágoras trate de uma questão específica, que é o problema da unidade das virtudes, o que está em jogo é aquilo que faz o indivíduo se tornar um bom cidadão. Vale lembrar que toda a ambientação desse diálogo é a de uma cidade democrática que estava, na época, no auge de seu poderio imperial, nos anos que antecederam a guerra que pôs fim à hegemonia da Atenas de Péricles [a Guerra do Peloponeso (431 a.C. – 404 a.C.), entre Atenas e Esparta e seus respectivos aliados]”, disse.

Segundo Lopes, nesse contexto os dois protagonistas discutem quais são os requisitos para entrar na vida pública e ser útil à cidade e aos cidadãos. Enquanto o sofista se propõe preparar os jovens para tal atuação, Sócrates vê, nesse tipo de figura, alguém que professa um saber que não tem. E que, portanto, exerceria um papel nocivo.

“O que tentei fazer na introdução ao diálogo foi não apenas enfocar as questões propriamente filosóficas, mas também explicitar todos os elementos de ordem literária que, durante muito tempo, ficaram em segundo plano nos estudos platônicos. O procedimento padrão era levantar as proposições e os argumentos e analisá-los do ponto de vista estritamente lógico. E se esquecia tudo o que estava em torno disso. Como Platão escreveu diálogos e não tratados em sentido estrito, o que se buscava era sobretudo extrair dos diálogos os argumentos filosóficos. Mas eu procurei fazer jus ao gênero, que é o procedimento adotado por boa parte da crítica mais recente, especialmente no caso de diálogos como o Protágoras”, disse Lopes.

Protágoras de Platão
Autor: Daniel R. N. Lopes
Editora: Perspectiva
Ano: 2017
Páginas: 680
Preço: R$ 89
Mais informações: https://goo.gl/jRC1ip
 

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