Litografia da empresa Currier & Ives, de 1876. Esta é, provavelmente, a ilustração mais conhecida do experimento. Um detalhe errado é que, nela, Franklin segura o barbante com uma das mãos antes do ponto em que está presa a chave. Com isso, ele aterraria a pipa e o experimento não poderia funcionar (crédito: Bequest of A. S. Colgate, 1962)
Descrito por Benjamin Franklin em meados do século 18, o experimento da pipa foi um importante passo para o entendimento da eletricidade. Mas as imagens que popularizaram esse episódio estão cheias de imprecisões
Descrito por Benjamin Franklin em meados do século 18, o experimento da pipa foi um importante passo para o entendimento da eletricidade. Mas as imagens que popularizaram esse episódio estão cheias de imprecisões
Litografia da empresa Currier & Ives, de 1876. Esta é, provavelmente, a ilustração mais conhecida do experimento. Um detalhe errado é que, nela, Franklin segura o barbante com uma das mãos antes do ponto em que está presa a chave. Com isso, ele aterraria a pipa e o experimento não poderia funcionar (crédito: Bequest of A. S. Colgate, 1962)
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – As ilustrações dos experimentos científicos desempenham papel fundamental tanto no ensino da ciência quanto na divulgação de seus resultados para o grande público. Confirmando a sentença de que “uma imagem vale mais do que mil palavras”, essas figuras colam na mente dos receptores e passam a ser a versão definitiva do processo científico. Arquimedes imerso na banheira descobrindo a lei do empuxo; Newton decompondo a luz solar com um prisma e definindo os princípios da óptica moderna; Mendel cultivando ervilhas e encontrando os fundamentos da genética: estes são alguns dos muitos exemplos.
O problema com essas imagens é que muitas vezes elas transmitem informações falsas: seja porque o experimento em pauta jamais teria sido realizado, seja porque foi feito em condições bastante diferentes. Se alguém tentasse reproduzir os experimentos a partir das indicações das figuras poderia não chegar a resultado algum ou até mesmo enfrentar consequências perigosas.
Estudo conduzido pelo pesquisador Breno Arsioli Moura, da Universidade Federal do ABC (UFABC), com apoio da FAPESP, investigou uma dessas imagens famosas: aquela que mostra Benjamin Franklin (1706-1790) empinando uma pipa para captar eletricidade das nuvens. Artigo a respeito foi publicado no periódico Science & Education.
Benjamin Franklin foi um dos líderes da Revolução Americana e o primeiro embaixador dos Estados Unidos na França. Foi também um homem com múltiplos interesses. Deísta e maçom, tornou-se um dos principais representantes do iluminismo do século 18 na América. Ao lado da religião, da filosofia, do reformismo moral e social e da política, a ciência constituiu uma de suas várias ocupações. “O experimento da pipa é a mais famosa realização científica de Franklin. E, nesse artigo, eu analiso sete ilustrações dele, publicadas posteriormente, em materiais do século 19”, conta Moura à Agência FAPESP.
O pesquisador informa que, na realidade, o experimento da pipa foi elaborado para ser uma versão mais simples de outro experimento proposto por Franklin em 1750: o experimento da guarita.
“Neste último, uma guarita seria montada no alto de um edifício ou de um morro. Dentro da guarita, o experimentador colocaria um suporte isolante, feito de cera, de onde sairia verticalmente uma haste metálica, comprida e pontuda no final. O experimentador ficaria sobre o suporte [veja a primeira figura da galeria]. Segundo a concepção de Franklin, a ponta da haste extrairia ‘silenciosamente’ a eletricidade das nuvens. E, ao aproximar os nós de seus dedos da parte inferior da haste, o experimentador poderia obter faíscas. É importante destacar duas coisas: o experimento não seria realizado no contexto de uma tempestade, com a incidência de raios; e a haste não estaria aterrada, mas apoiada no suporte isolante. Portanto, toda a eletricidade extraída ficaria armazenada nela”, descreve Moura.
Franklin não fez o experimento da guarita, apenas o propôs. Mas ele foi efetivamente realizado por dois franceses em 1752. E seu sucesso consolidou o nome de Franklin como um personagem referencial nos estudos da eletricidade no século 18. “Sabendo da reprodução francesa, Franklin escreveu a um de seus correspondentes britânicos que uma versão mais simples do experimento havia sido executada na Filadélfia, onde residia. Trata-se, justamente, do experimento da pipa”, afirma o pesquisador.
A pipa era constituída por varetas e um lençol grande de seda, tendo um fio pontudo na extremidade superior. O princípio era o mesmo do experimento da guarita. O experimentador empinaria a pipa e, por meio da ponta, ela extrairia “silenciosamente” a eletricidade das nuvens. Ao final do barbante, seria amarrada uma chave. E, preso a ela, um pedaço de seda, que é material isolante. “O experimentador seguraria o aparato pela seda. Desse modo, a eletricidade, captada pela pipa e transmitida pelo barbante, ficaria estocada na chave. Assim como no experimento da guarita, a pipa estaria isolada, e não aterrada. Ao aproximar os nós dos dedos da chave, o experimentador poderia obter faíscas”, relata Moura.
Assim como outros “filósofos da natureza” do século 18, Franklin concebia a eletricidade como um fluido, capaz de ser transmitido continuamente de um corpo para outro. A ideia geral por trás dos experimentos da guarita e da pipa era mostrar que esse fluido, que podia ser obtido por meio do atrito em um tubo de vidro em laboratório e armazenado na chamada garrafa de Leyden, inventada em meados do século 18 nos Países Baixos, poderia também ser extraído das nuvens. E isso estava relacionado com as concepções meteorológicas de Franklin e seu pensamento acerca da eletrização das nuvens.
Ele imaginava que a água do mar, por exemplo, fosse plena de fluido elétrico e que, quando ela evaporava para formar as tempestades acima dos oceanos, levaria consigo esse fluido, fazendo com que as nuvens estivessem cheias de eletricidade.
“No relato de Franklin, não há detalhes sobre se o experimento foi mesmo executado por ele ou por outra pessoa, mas tudo indica que foi feito. Outro relato do experimento foi produzido 15 anos depois, em 1767, no livro The History and Present State of Electricity, de Joseph Priestley. Franklin teria ajudado Priestley a obter materiais para o livro, por isso presume-se que tenha concordado com seu conteúdo. O relato de Priestley é bem mais detalhado, incluindo a presença do filho de Franklin no experimento. Mas difere em vários detalhes do relato original de 1752”, conta o pesquisador.
O que o estudo das ilustrações feito por Moura mostrou é que elas se basearam no relato de Priestley. Ao lado de Franklin, todas apresentam o filho do cientista em cena. Embora o retratem como um garoto, ele já tinha na época do experimento 21 anos. Mais erros – estes, sim, bastante importantes – aparecem em outros detalhes da imagem.
“A maioria apresenta o experimento sendo realizado em campo aberto, apesar de Franklin ter dito que o experimentador deveria estar em um abrigo, para que a fita de seda não se molhasse e, assim, não se tornasse condutora. A maioria apresenta raios atingindo a pipa ou muito próximos dela, apesar de Franklin não ter previsto a incidência de raios. As ilustrações também não evidenciam a presença da fita de seda, que isolaria a pipa, dando a entender que Franklin simplesmente segurava o barbante. Se assim fosse, isso aterraria a pipa e destruiria o experimento. Outra ilustração mostra Franklin aproximando a chave do barbante, o que não tem respaldo em nenhum dos relatos”, argumenta o pesquisador.
Como conclusão, Moura aponta para a necessidade de não se usar indiscriminadamente as ilustrações – especialmente no ensino da ciência. Elas carregam mensagens que, se não tratadas criticamente, podem levar a concepções equivocadas, tanto do ponto de vista histórico quanto científico. E, como já foi dito no início deste texto, as imagens colam no receptor. Uma vez que suscitam um erro, este se torna muito difícil de erradicar.
O artigo Picturing Benjamin Franklin’s Kite Experiment in the Nineteenth Century: Iconography, Errors and Implications for Science Education pode ser acessado em: https://link.springer.com/article/10.1007/s11191-023-00421-y.
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