Escola Pamaali: estudantes do ensino médio e professores indígenas em atividade de pesquisa (foto: Antônio Fernandes Góes Neto/USP)

Povos indígenas
Escolas do povo Baniwa resgatam saberes tradicionais e incorporam inovação no noroeste amazônico
21 de outubro de 2025

Indígenas criaram unidades de ensino próprias, pautadas pela ideia de “educar pela pesquisa”, com autonomia e pensamento crítico

Povos indígenas
Escolas do povo Baniwa resgatam saberes tradicionais e incorporam inovação no noroeste amazônico

Indígenas criaram unidades de ensino próprias, pautadas pela ideia de “educar pela pesquisa”, com autonomia e pensamento crítico

21 de outubro de 2025

Escola Pamaali: estudantes do ensino médio e professores indígenas em atividade de pesquisa (foto: Antônio Fernandes Góes Neto/USP)

 

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Os Baniwa são um povo indígena que vive na região das fronteiras entre o Brasil, a Colômbia e a Venezuela, tendo como epicentro de sua distribuição geográfica o rio Içana, um dos tributários do Negro. Sua população em 2025 é estimada em cerca de 20 mil pessoas, distribuídas por várias aldeias e também por centros urbanos, como São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos. Nos ambientes mais bem informados das grandes metrópoles brasileiras, os Baniwa são conhecidos principalmente por seu requintado artesanato, pela produção da pimenta jiquitaia, muito apreciada em gastronomia, e pela atuação cultural de alguns de seus integrantes, como o artista plástico Denilson Baniwa e o antropólogo, filósofo, professor universitário e ativista Gersem Baniwa, da Universidade de Brasília (UnB).

Como aconteceu com outros povos indígenas, os contatos dos Baniwa com a sociedade envolvente foram marcados pela extrema violência colonial, pela exploração econômica e por tentativas de apagamento cultural praticadas por missionários católicos (salesianos) e evangélicos.

Mas uma experiência educacional iniciada no final dos anos 1980 converteu-se em um instrumento de resgate cultural e inovação social. Um estudo recente, conduzido por Antônio Fernandes Góes Neto, investigou como as escolas indígenas plurilíngues baniwa e koripako (que falam um dialeto da língua baniwa e vivem na Colômbia e no Alto Içana, no Brasil) e as organizações comunitárias presentes no território baniwa articulam currículo, projetos de cadeias de valor e saberes tradicionais, promovendo a permanência estudantil, a obtenção de renda e a governança local.

Os resultados foram apresentados em capítulo do livro Equalizing the three pillars of sustainability.

Doutor pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), Góes Neto é atualmente professor visitante na Universidad Andina Simón Bolívar, no Equador. Sua pesquisa de campo foi apoiada pela FAPESP por meio do projeto “Educação escolar indígena: saberes aprendidos e inovação”, coordenado pelo professor Elie Ghanem.

“Chamamos de ‘paradigma irresponsável’ da escolarização aquela lógica de internatos e vigilância moral, que afastava jovens de suas famílias e interditava conhecimentos indígenas. Nossa pesquisa mostra como as escolas indígenas baniwa e koripako, hoje, são vetores para a reapropriação do território, da língua e da economia pelas comunidades”, diz Góes Neto.

A virada começou com o movimento associativista indígena do final da década de 1980 e da década de 1990, em meio à crise do garimpo e à mobilização por direitos territoriais. Surgiram, nessa época, entidades como a Organização Indígena da Bacia do Içana (Oibi), a Associação dos Professores Indígenas do Alto Rio Negro (Apiarn), a Associação das Comunidades Indígenas de Putyra Kapuamo (ACIPK) [Putyra Kapuamo significa “Ilha das flores” na língua yẽgatu], que convergiram na formação da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). Representando 23 povos do Alto e Médio Rio Negro (Baniwa, Tukano, Desana, Baré, Tariana, entre outros), a Foirn, com sede em São Gabriel da Cachoeira, é hoje uma das organizações indígenas mais importantes do Brasil, atuando em defesa de direitos territoriais, educação, saúde, valorização das línguas e culturas e fortalecimento político das associações de base.

Com a homologação de terras e a criação do Território Etnoeducacional do Rio Negro (Decreto 6.861/2009), emergiu uma escola de base territorial, com gestão e docentes escolhidos pela comunidade. “As associações e as escolas tornaram-se espaços de manobra para preservar e fortalecer os saberes, ao mesmo tempo em que criam alternativas econômicas para que o ato de estudar não afaste os jovens das comunidades. A radiofonia comunitária, implantada com assessoria do Instituto Socioambiental [ISA], foi peça-chave na coordenação entre as associações e escolas”, informa o pesquisador.

O estudo foca a comunidade Cabari, na microrregião Aí Waturá, no município de São Gabriel da Cachoeira, onde a escola municipal homônima, gerida pela ACIPK, organiza currículo e projetos a partir da noção de kupixá (roça ou floresta) e de temas geradores levantados pela própria comunidade (plantas úteis, pesca, cerâmica, resíduos, saúde, história local etc.). O modelo é baseado em escolas-piloto do rio Içana, como a Escola Indígena Baniwa e Coripaco Pamáali e, mais recentemente, a Escola Baniwa Eeno Hiepole.

“A sala de aula tem fluxo com o território. Os alunos trilham, roçam, pescam, entrevistam os mais velhos, registram seus achados em línguas como baniwa, koripako ou yẽgatu e os apresentam à comunidade. Isso vira material didático. É a escola que constrói seus recursos de apoio por meio da pesquisa”, relata Góes Neto.

A ideia de “educar pela pesquisa” está alicerçada na obra do sociólogo Pedro Demo, professor emérito da UnB e ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), um autor referencial no campo da educação. Demo vê a pesquisa como princípio educativo por excelência, mobilizando aluno e professor, com base em critérios como autonomia e pensamento crítico. Sua abordagem foi profundamente absorvida pelos programas de Magistério Indígena no fim dos anos 1990 e início dos 2000.

A diversidade sociolinguística é um traço marcante: no Baixo Içana predomina o yẽgatu; do Médio para cima, o baniwa; no Alto Içana, o koripako. A grafia proposta pelo linguista franco-brasileiro Henri Ramirez, nascido na Argélia e chamado pelas associações baniwa para assessorá-las décadas atrás, vem sendo ajustada por professores indígenas. E há demanda para reconhecimento do baniwa e do koripako como patrimônio linguístico, dentro do Diagnóstico Sociolinguístico da Língua e Comunidade Medzeniako (Baniwa-Koripako), uma colaboração da Foirn com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e no Projeto de Documentação Linguística Baniwa e Koripako do Endangered Languages Documentation Programme (ELDP).

O resgate dos saberes ancestrais é uma ênfase. Mas a incorporação crítica de novos saberes, capazes de subsidiar a inovação com vistas ao bem viver, é igualmente valorizada. Em Cabari e em muitas outras comunidades isso se dá em três frentes: produção de cestaria com motivos tradicionais; produção de pimenta jiquitaia, inclusive com parcerias, visando, por exemplo, a fabricação de cerveja artesanal com pimenta; e turismo étnico, integrando trilhas, leitura de paisagens e de plantas, culinária e narrativas.

“Na produção da pimenta, o desafio foi dominar todas as etapas do processo: cumprir normas sanitárias, padronizar as embalagens e vender com identidade própria. No turismo, a comunidade percebeu que essa atividade só se sustenta quando a escola melhora, com pesquisa e formação de docentes, que são os próprios gestores desse tipo de atividade econômica”, comenta Góes Neto.


Maloca da Comunidade Assunção do Içana, onde está em curso um movimento de recuperação do xamanismo tradicional (foto: Antônio Fernandes Góes Neto/USP)

A espiritualidade ancestral e as práticas xamânicas foram fortemente estigmatizadas e demonizadas pelas missões católicas e evangélicas. Hoje, a grande maioria dos baniwa se define como cristã, em uma vertente ou na outra. Mas também nesse campo, especialmente delicado, há uma recuperação em curso. Ucuqui-Cachoeira é reconhecida como uma das comunidades católicas que mantiveram práticas xamânicas vivas, mesmo diante da forte pressão evangelizadora no século 20. Segundo o antropólogo Robin Wright, Ucuqui-Cachoeira foi um dos principais centros de resistência e revitalização do xamanismo baniwa. Pajés dessa comunidade participaram de iniciativas como a Escola de Xamãs, projeto conduzido por Wright nos anos 1990, com o objetivo de registrar, fortalecer e transmitir saberes xamânicos.

Assunção do Içana é outro exemplo. Marcada por ter sido um dos grandes internatos salesianos da região, tornou-se, a despeito disso, um novo polo de fortalecimento do xamanismo. Reflexo da convivência histórica com não indígenas e casamento com mulheres do povo Baré, a maioria dos moradores não fala baniwa, mas yẽgatu, que foi uma língua franca amazônica, principalmente nos séculos 18 e 19. Em 2022-2023, foi criada, em Assunção do Içana, a Escola Viva, um projeto comunitário com a finalidade de ensinar e difundir saberes tradicionais, incluindo o xamanismo e o desejo de voltar a falar a língua baniwa, considerando que ainda há alguns falantes dessa língua na comunidade. A liderança intelectual desse processo vem de pesquisadores e professores baniwa, como Francy Baniwa e Francisco Fontes Baniwa, autores do livro Umbigo do Mundo https://dantes.com.br/produto/umbigo-do-mundo/ (2023), que articula cosmologia baniwa e perspectivas femininas do povo baniwa.

“A maloca tradicional vem sendo reconstruída, como recinto cerimonial e centro de convivência. Mas há um consenso crescente de que escola é uma coisa e maloca é outra. A aula pode acontecer na maloca, ou em uma sala de alvenaria, palhoça, roça, porto ou trilha. O essencial é não diluir o tempo escolar e não reduzir a maloca à sala de aula”, sublinha Góes Neto.

O capítulo escrito pelo pesquisador e fruto de trabalho colaborativo entre a FE-USP e a Foirn, e de oficinas realizadas no período 2018-2020, sustenta que escolas indígenas superam o “paradigma irresponsável” dos internatos, escolas bíblicas e antigas escolas agrotécnicas, quando significam a vida local, mobilizam saberes do território e reduzem o êxodo das comunidades indígenas, ao articular currículo, língua, economia e gestão. “Escola é laboratório de invenção: livros, jogos, mapas, vídeos, brinquedos, artesanato, desenho de cadeias de valor. Inovação, aqui, não é engenhoca; é agência coletiva para resolver problemas reais”, enfatiza Góes Neto.

O texto Reassembling residual knowledge: an ethnographic overview of the Baniwa organizations in the northwest Amazon pode ser acessado em springerprofessional.de/en/reassembling-residual-knowledge-an-ethnographic-overview-of-the-/51328560.
 

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