Pesquisador integrou a equipe de redação do 6º Relatório de Avaliação do IPCC (foto: UNDRR/reprodução)

Entrevista
É crucial iniciar o processo de adaptação antes que eventos climáticos extremos ocorram, diz especialista
27 de agosto de 2024

O pesquisador da Nasa Alex Ruane fala dos impactos das mudanças climáticas na vida humana, nos ecossistemas e nas atividades econômicas. E defende estratégias colaborativas de mitigação e adaptação. O cientista fará conferência na FAPESP nesta sexta-feira

Entrevista
É crucial iniciar o processo de adaptação antes que eventos climáticos extremos ocorram, diz especialista

O pesquisador da Nasa Alex Ruane fala dos impactos das mudanças climáticas na vida humana, nos ecossistemas e nas atividades econômicas. E defende estratégias colaborativas de mitigação e adaptação. O cientista fará conferência na FAPESP nesta sexta-feira

27 de agosto de 2024

Pesquisador integrou a equipe de redação do 6º Relatório de Avaliação do IPCC (foto: UNDRR/reprodução)

 

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – O cientista Alex Ruane apresentará nesta sexta-feira (30/08), na FAPESP, a conferência “Mudanças Climáticas e Segurança Alimentar – dos Modelos às Avaliações e Soluções”. Ruane é pesquisador no Instituto Goddard de Estudos Espaciais da Nasa, a agência espacial norte-americana, onde codirige o Grupo de Impactos Climáticos. Também é cientista associado do Centro de Pesquisa de Sistemas Climáticos da Universidade de Columbia, na cidade de Nova York. Integrou a equipe de redação do 6º Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC AR6), da Organização das Nações Unidas, e foi o autor principal do capítulo 12, que traz informações sobre riscos climáticos.

Parte da série Conferências FAPESP 2024, sua apresentação vai tratar de soluções sustentáveis para mitigação e adaptação às mudanças climáticas, apontando também os limites de tolerância para a reprodução de determinadas espécies. Como preparação para o evento, Ruane concedeu à Agência FAPESP esta entrevista exclusiva.

Agência FAPESP – Recentemente, houve um grande alvoroço na mídia causado pela falsa notícia de que o Brasil poderia se tornar inabitável nos próximos 50 anos. Essa desinformação, posteriormente desmentida por vários pesquisadores sérios, foi baseada em uma citação retirada de contexto da reportagem “Too Hot to Handle”, publicada no site da Nasa. De todo esse imbróglio, fica uma pergunta: considerando os cenários atuais, é possível fazer afirmações realmente consistentes sobre regiões que se tornarão inabitáveis no futuro? Quais são essas regiões?
Alex Ruane – O mundo está cada vez mais transitando da pergunta ‘os seres humanos estão mesmo aquecendo a Terra?’ [sim, estamos] para questões relacionadas a como as mudanças climáticas afetam as coisas que valorizamos na natureza e na sociedade. Isso envolve detalhes muito mais específicos sobre regiões, ecossistemas e comunidades, com informações robustas que nos permitam planejar a adaptação antes que os desafios cheguem à nossa porta. Para tanto, é preciso rastrear e projetar um grande número de condições climáticas [por exemplo, calor extremo, inundações, secas, aumento do nível do mar] e os limites de tolerância para os recursos hídricos, a agricultura, a pesca, a infraestrutura de produção de energia e transporte, a indústria, a saúde humana e os ecossistemas naturais etc. A discussão em torno de extremos de calor e saúde mostra como as projeções de impactos climáticos e o planejamento de adaptações podem ser complicados. Primeiro, reconhecemos que os humanos não sofrem estresse térmico por causa da temperatura global, mas sim devido a mecanismos biofísicos relacionados à exposição prolongada a condições locais de calor que estão além de nossa capacidade de enfrentar. Usamos a transpiração como um mecanismo principal para regular a temperatura do nosso corpo, mas sua eficácia depende da temperatura e da umidade do ar. Geralmente, condições mais quentes e úmidas são mais desafiadoras, e faz sentido dizer que existam limites biofísicos ao que um corpo humano pode suportar. Atualmente, há uma extensa pesquisa para determinar qual é esse limite de calor e umidade, incluindo discussões sobre qual índice é o melhor e se os limites relatados são representativos das diversas populações. Precisamos continuar essa pesquisa e também expandir a conversa para entender como diferentes comunidades se adaptaram a condições extremas no passado. Isso nos dá uma ideia de quais tipos de adaptações podemos planejar para regiões onde essas condições extremas serão novas nas próximas décadas. Por exemplo, calor e umidade extremos podem ser muito perigosos para trabalhadores ao ar livre [por exemplo, na agricultura ou na construção civil], mas, em várias partes mais quentes do mundo, os trabalhadores evitam os horários mais quentes do dia e aproveitam as horas mais frescas da manhã e da noite. Isso pode levar a impactos secundários, se as tarefas agrícolas não puderem ser concluídas a tempo. O ar-condicionado pode ajudar se os recursos permitirem, embora, é claro, isso possa intensificar o consumo de energia e agravar o problema das mudanças climáticas. Projetar condições ‘inabitáveis’ é, portanto, bastante desafiador e muitas vezes podemos encontrar exemplos de comunidades que já suportam condições extremas. Por exemplo, alguns dos lugares mais quentes e úmidos do mundo incluem a Amazônia, o Sudeste Asiático e partes da Índia. Muitas dessas regiões apresentam consequências para a saúde durante condições de calor extremo [particularmente para populações vulneráveis, como crianças, idosos e mães que amamentam], mas ainda são habitadas. Ainda não somos capazes de projetar exatamente quando as condições se tornarão severas o suficiente para afastar populações de suas casas, mas podemos discutir os custos crescentes que podem motivar tal mudança. Isso pode incluir inundações costeiras frequentes à medida que os níveis do mar subam e tempestades costeiras inundem regularmente a infraestrutura costeira – em algumas partes do mundo, o custo do seguro residencial está levando a um novo cálculo de onde é viável viver. Em outros casos, as mudanças climáticas podem provocar alterações substanciais nos ganhos líquidos dos agricultores – aqueles que não conseguirem lucrar provavelmente buscarão subsídios ou opções alternativas. Por essa razão, os cientistas do clima costumam falar sobre pontos críticos de risco climático, incluindo comunidades costeiras de baixa altitude, terras agrícolas marginais, áreas próximas aos limites superiores de tolerância ao calor e à umidade, comunidades ao longo de rios ameaçadas por inundações mais extremas, áreas dependentes de recursos hídricos de rios sazonais alimentados por degelo e comunidades dependentes de permafrost e gelo marinho.

Agência FAPESP – Sua palestra abordará soluções sustentáveis para mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Poderia resumir brevemente quais seriam as principais soluções?
Ruane – Minha palestra se concentrará principalmente em como projetamos nossos sistemas de informação e modelagem para preparar soluções de mitigação e adaptação. Em vez de defender uma solução específica, discutirei como os cientistas podem trabalhar com as partes interessadas para fornecer informações climáticas que se concentram em riscos específicos para a natureza e a sociedade, o que, por sua vez, fornece metas para estratégias de mitigação e adaptação. Ao fazer isso, é importante reconhecer que o risco inclui componentes relacionados ao perigo [probabilidade de uma onda de calor, por exemplo], à exposição [campos agrícolas que podem ser atingidos por uma onda de calor] e à vulnerabilidade [como a capacidade de um sistema agrícola específico suportar uma onda de calor]. Também precisamos discutir o risco de resposta, que é o potencial de que uma estratégia implementada para adaptação a um desafio possa criar desafios secundários [por exemplo, variedades de culturas resistentes ao calor podem exigir mais recursos hídricos]. Também defenderei abordagens sistêmicas para o planejamento de mitigação e adaptação. Por exemplo, reconhecendo que a adaptação do sistema alimentar pode ocorrer na seleção de variedades de sementes ou na gestão agrícola dentro do campo, mas também ao longo da cadeia de valor de processamento e na demanda do consumidor por dietas saudáveis e diversificadas. É por isso que nossos esforços no Projeto de Intercomparação e Melhoria de Modelos Agrícolas [AgMIP] incluíram o desenvolvimento de modelos biofísicos e socioeconômicos que nos permitam explorar diferentes ambientes e intervenções em todo o sistema alimentar. Os esforços de mitigação e adaptação podem envolver novas tecnologias e práticas avançadas, mas essas também podem ser apoiadas pelo aumento das condições que possibilitem uma transformação eficaz do sistema e pela redução das condições que inibam práticas sustentáveis. A mitigação e a adaptação também não são isoladas. Algumas das estratégias mais promissoras que estão sendo desenvolvidas agora apresentam sinergias para mitigação, adaptação e metas mais amplas de desenvolvimento sustentável.

Agência FAPESP – Seus estudos destacam a necessidade de modelar os impactos climáticos em diversos setores econômicos. No Brasil, o setor agrícola ocupa uma posição de destaque na economia. No entanto, é também o setor que mais contribui para o desmatamento e a degradação dos biomas naturais. Atualmente, o bioma mais impactado é o Cerrado, berço das três maiores bacias hidrográficas da América do Sul. Como a sustentabilidade ambiental pode ser conciliada com o uso econômico da terra?
Ruane – Áreas como o Cerrado estão lidando com múltiplos desafios interligados que não podem ser facilmente separados no planejamento de políticas e investimentos. Pressões socioeconômicas para o desmatamento e a produção de alimentos levaram a consequências ambientais negativas, mas o planejamento futuro é prejudicado se considerarmos apenas uma única perspectiva. O planejamento de mitigação e adaptação é mais bem-sucedido quando está vinculado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e apoiado por condições que aprofundem sinergias para benefícios duradouros que equilibrem prioridades ambientais, sociais, econômicas, culturais e outras. Também é importante reconhecer que o status quo pode não ser sustentável e que, portanto, algo precisa mudar.

Agência FAPESP – A colaboração interdisciplinar é fundamental em sua pesquisa. Quais áreas do conhecimento você acredita que precisam ser mais exploradas em futuras parcerias para abordar as mudanças climáticas, e como essas colaborações podem ser mais bem integradas para produzir resultados concretos?
Ruane – Os impactos climáticos são, por natureza, interdisciplinares. A razão pela qual nos importamos com condições climáticas como temperaturas extremas, chuvas intensas, tempestades severas, enchentes, secas, aumento do nível do mar ou derretimento do gelo é porque elas impulsionam respostas em nossos sistemas biológicos [agricultura, pesca, florestas, ecossistemas, saúde humana], em nossos sistemas tecnológicos [edifícios, transportes, indústrias e outras infraestruturas] e em nossos sistemas sociais [deslocamentos de comunidades, mudanças no uso da terra, competições por recursos]. Isso requer colaboração entre cientistas do clima e especialistas em cada um desses campos, além de mais conexões com os sistemas socioeconômicos e julgamentos éticos que muitas vezes orientam as decisões. Meu trabalho tem se concentrado principalmente nos impactos climáticos nos sistemas alimentares, exigindo meteorologia e ciências do clima, agronomia e ciências biológicas, economia e análises da cadeia de valor, distribuição de mercado e demandas dietéticas dos consumidores, utilização nutricional e saúde. O Projeto de Intercomparação e Melhoria de Modelos Agrícolas foi fundado para permitir o trabalho colaborativo que integre escalas e disciplinas com abordagens robustas, baseadas na força de uma rede coordenada de cientistas. Grandes desafios nas mudanças climáticas incluem a determinação de caminhos específicos para respostas aos impactos, em meio a riscos diversos. Por exemplo, entender como calor, seca, inundação e enriquecimento de CO2 afetam o milho, isoladamente e em combinação, o contraste entre os sistemas de milho e os aspectos únicos de outras culturas, como trigo, arroz, soja, café etc. Tais estudos nos informam sobre os limites de tolerância, identificam pontos críticos de risco e fornecem metas e limites para a adaptação. Também precisamos entender como as comunidades responderão às mudanças climáticas à medida que elas acontecem: quantos anos ruins são necessários antes que ocorra uma mudança? Isso requer mais informações sobre riscos, valores, mecanismos para minimizar o risco [por exemplo, seguros, subsídios, cadeias de suprimentos diversificadas] e a psicologia da tomada de decisões sob incerteza. Quase todo tipo de aplicação climática se beneficia de um envolvimento antecipado e sustentado e da colaboração com as partes interessadas. Há uma grande necessidade de mais pesquisa sobre como choques alimentares [por exemplo, uma queda na produtividade devido à seca] surgem em uma determinada região e reverberam pelos mercados globais, afetando uma gama de consumidores vulneráveis. Em particular, há poucos modelos publicamente disponíveis de cadeias de suprimento do sistema alimentar, estoques e reservas de alimentos e estratégias de gerenciamento adaptativo, dado os alertas iniciais de choques alimentares. Também precisamos de mais pesquisas sobre intervenções de mitigação e adaptação climáticas que possam ser implementadas com sucesso, mantidas e apoiadas, para se tornarem aspectos permanentes de comunidades mais sustentáveis. Isso requer colaboração entre a comunidade de pesquisa, governos em múltiplos níveis, o setor privado e a sociedade civil.

Agência FAPESP – Com sua experiência em conectar a ciência do clima à política pública, como você vê a evolução das políticas globais e regionais em resposta às mudanças climáticas? Quais estratégias você considera essenciais para garantir que boas propostas sejam concretizadas?
Ruane – Fico motivado ao ver como governos e líderes comunitários estão ávidos por informações sobre as mudanças climáticas. Quais mudanças sutis e extremos dramáticos já ocorreram, o que está por vir e o que isso significa para a natureza e as comunidades? Podemos responder a essas perguntas cada vez mais e mostrar como as decisões sociais determinarão a extensão do desafio das mudanças climáticas que as gerações atuais e futuras terão de enfrentar. Com essas informações, os líderes são capacitados a evitar níveis elevados de emissões que levariam a mudanças climáticas ainda maiores, a se adaptar ao aquecimento e aos extremos que ocorrerão devido às emissões passadas e futuras e a se preparar para lidar com impactos que estão além da adaptação. Os agricultores com quem trabalho vêm de uma longa tradição de ler informações ambientais e se adaptar a condições em mudança, e estou otimista sobre nossas chances de podermos capacitar e acelerar esse processo. Há duas áreas em que estou particularmente animado com o progresso. Primeira: esforços para aumentar as condições favoráveis que facilitem a implementação bem-sucedida da mitigação e adaptação, ao mesmo tempo em que reduzam as condições limitantes que podem bloquear ou minar a ação climática. Isso inclui melhorar os fluxos financeiros, a infraestrutura, os movimentos socioculturais e as políticas que apoiam os esforços climáticos e programas de pesquisa focados no desenvolvimento de tecnologias que possam enfrentar os desafios futuros. Segunda: adaptação proativa, que antecipa desafios futuros e investe em soluções para que estejam prontas quando necessárias. Muitas adaptações levam um, cinco, dez ou mais de 20 anos para serem desenvolvidas e implementadas em larga escala. Então, não podemos esperar até que o evento extremo esteja sobre nós para iniciar o processo de adaptação. Com pesquisa colaborativa, engajamento das partes interessadas e apoio voltado para o futuro, podemos desenvolver a próxima geração de adaptações.
 

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