Artigo assinado por pesquisadores do Brasil, Estados Unidos, Reino Unido e Gana ressalta avanços em diagnóstico e tratamento nas últimas décadas, mas alerta para necessidade de ampliar programas de rastreamento neonatal (imagem: Anatomy & Physiology / Wikimedia Commons)
Artigo assinado por pesquisadores do Brasil, Estados Unidos, Reino Unido e Gana ressalta avanços em diagnóstico e tratamento nas últimas décadas, mas alerta para necessidade de ampliar programas de rastreamento neonatal
Artigo assinado por pesquisadores do Brasil, Estados Unidos, Reino Unido e Gana ressalta avanços em diagnóstico e tratamento nas últimas décadas, mas alerta para necessidade de ampliar programas de rastreamento neonatal
Artigo assinado por pesquisadores do Brasil, Estados Unidos, Reino Unido e Gana ressalta avanços em diagnóstico e tratamento nas últimas décadas, mas alerta para necessidade de ampliar programas de rastreamento neonatal (imagem: Anatomy & Physiology / Wikimedia Commons)
André Julião | Agência FAPESP – Nunca foi tão grande a possibilidade de surgirem novos tratamentos para as doenças falciformes – causadas por alterações genéticas na hemoglobina, proteína que transporta o oxigênio e dá a cor avermelhada ao sangue. Ainda assim, é necessário investimento constante em políticas de saúde, como os programas de rastreamento em recém-nascidos, sobretudo na África Subsaariana.
As conclusões são de um amplo estudo de revisão publicado na Nature Reviews Disease Primers e assinado por especialistas dos Estados Unidos, Reino Unido, Gana e Brasil.
A todos os distúrbios causados por alterações na hemoglobina dá-se o nome de hemoglobinopatias. Entre esses distúrbios estão as doenças falciformes, sendo a mais grave delas a anemia falciforme. Outras hemoglobinopatias com bastante importância médica são as talassemias, formas de anemia crônica hereditária com diferentes graus de severidade.
“Houve grandes avanços nos últimos anos em diagnóstico e tratamento. E haverá outros. No entanto, nos países pobres, o número de doentes tende a crescer. É preciso olhar sobretudo para a África e para a Ásia, mas também para o Brasil, porque aqui os recursos para o sistema público de atenção médica não só não estão aumentando, como parecem estar sendo reduzidos. Todo o progresso que tivemos está hoje em risco”, disse Fernando Ferreira Costa, pesquisador do Centro de Hematologia e Hemoterapia (Hemocentro) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e único brasileiro entre os autores.
Costa se refere à existência dos hemocentros e ao suporte do Sistema Único de Saúde (SUS) para o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), que entre outras ações oferece o teste do pezinho, capaz de detectar hemoglobinopatias e outras seis doenças precocemente. Além disso, Costa destaca a importância do SUS no fornecimento gratuito do principal medicamento usado para tratar a anemia falciforme, a hidroxiureia, e na realização de transfusões de sangue necessárias a muitos pacientes.
“O Brasil teve progressos notáveis e conseguiu formar centros de excelência. Houve um grande desenvolvimento nas últimas décadas em diagnóstico, tratamento e pesquisa”, disse Costa, responsável pelo Projeto Temático “Doenças dos glóbulos vermelhos: fisiopatologia e novas abordagens terapêuticas”, financiado pela FAPESP.
O artigo ressalta a decisão do FDA, órgão que regula medicamentos e alimentos nos Estados Unidos, de considerar prioritário o desenvolvimento de novos tratamentos para as doenças falciformes, o que facilitou investimentos da indústria farmacêutica. Por conta disso, muitos medicamentos que têm como alvo um ou mais mecanismos que contribuem para o desenvolvimento de algumas dessas doenças estão em fase de testes em humanos.
“Os prospectos para novos tratamentos em doenças falciformes nunca foram tão favoráveis”, escreveram os autores.
Mutação hereditária
A anemia falciforme é a mais grave e prevalente entre as doenças falciformes. Em portadores da doença, os glóbulos vermelhos do sangue (hemácias) ganham a forma de meia-lua ou foice depois que o oxigênio é liberado – daí o nome falciforme. Essas células deformadas se tornam rígidas e propensas a se polimerizar, ou seja, formar grupos que aderem à camada celular interna dos vasos sanguíneos (endotélio), o que dificulta a circulação do sangue.
A condição pode levar à oclusão de vasos sanguíneos. Além de causar episódios imprevisíveis de dor, aumenta muito as chances de infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral (AVC), doença renal crônica e embolia pulmonar, entre outras complicações. “É uma doença crônica, que exige acompanhamento para o resto da vida”, disse Costa à Agência FAPESP.
A hidroxiureia é o medicamento usado hoje para evitar esse quadro. Ele aumenta a produção de uma proteína denominada hemoglobina fetal, que dificulta a polimerização da hemoglobina defeituosa. Dessa forma, reduz o risco de vaso-oclusão.
Nos últimos anos, pesquisadores do Hemocentro descobriram outros usos da droga, como prevenir as complicações da hemólise, destruição das células vermelhas do sangue e posterior liberação da hemoglobina existente em seu interior na circulação, que pode levar a um estado inflamatório crônico (leia mais em: http://agencia.fapesp.br/21900/).
O único tratamento para curar a anemia falciforme, porém, é o transplante de medula óssea. No Brasil, o procedimento passou a ser coberto pelo SUS apenas em 2015. Grande parte dos transplantes em portadores de anemia falciforme ocorridos no Brasil, sempre entre irmãos compatíveis, foi realizado pelo Centro de Terapia Celular (CTC). Sediado na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), o CTC é um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) financiado pela FAPESP (leia mais em: agencia.fapesp.br/21453).
O artigo destaca que a terapia gênica tem sido considerada um tratamento promissor desde meados dos anos 1990. Apenas recentemente, porém, entrou em fase de testes pré-clínicos o procedimento com vetores lentivirais que insere, em células-tronco, genes modificados capazes de reduzir nos glóbulos vermelhos a alteração característica das doenças falciformes. Os resultados iniciais são promissores.
Outras abordagens de edição gênica como o sistema Crispr-Cas9 (do inglês, clustered regularly interspaced short palindromic repeats associated gene 9), que permite a substituição precisa de uma região específica do DNA, também são apontadas como promissoras para o tratamento de doenças falciformes. Atualmente, é usada apenas em camundongos e células humanas em cultura.
“Muitas questões éticas precisam ser resolvidas antes que essas técnicas possam ser usadas em humanos: acompanhamento de longo prazo será necessário para confirmar sua segurança e sustentabilidade. Além disso, a acessibilidade da terapia gênica em áreas de alta prevalência e baixa renda precisa ser avaliada”, escreveram os autores.
Como destacam os autores no artigo, o peso das doenças falciformes é muito maior nos países pobres. Em nações de renda média e alta, houve uma mudança substancial no curso dessas enfermidades desde os anos 1970, tanto em adultos como em crianças. Nos Estados Unidos e Reino Unido, as taxas de sobrevivência de crianças com anemia falciforme são similares às das saudáveis. Na África, porém, a chance de portadores de anemia falciforme morrerem antes dos 5 anos é de 50% a 90%. Em países ricos, é possível viver bem com essa e outras doenças falciformes mesmo depois dos 60 anos.
Distribuição desigual
O Ministério da Saúde estima que existam hoje entre 30 mil e 50 mil pessoas com alguma doença falciforme no Brasil. No mundo todo, as estimativas são de que a cada ano nasçam entre 300 mil e 400 mil crianças com uma das mutações genéticas, 230 mil apenas na África Subsaariana.
O fato de o Brasil ter dados epidemiológicos confiáveis e poder agir antes mesmo de as doenças falciformes se manifestarem se deve em parte ao PNTN. O teste do pezinho foi implementado oficialmente pelo governo federal em 2001, embora já fosse aplicado em alguns estados anteriormente.
Ainda assim, há desigualdade na cobertura. Em 2016, enquanto 100% dos hospitais de Minas Gerais realizaram o teste, no Amapá isso ocorreu em pouco mais da metade deles, comparou Costa. O rastreamento possibilitou saber as taxas de sobrevivência e as principais causas de óbito entre os portadores das doenças falciformes. Além disso, permite realizar a profilaxia preventiva dos portadores da anemia falciforme, com vacinação e a administração de antibiótico (penicilina) até os 5 anos de idade, a fim de evitar infecções, maior causa de mortalidade.
A universalização da cobertura é importante porque a distribuição das doenças falciformes também é desigual. No Norte e Nordeste, a anemia falciforme é mais comum do que em outras regiões do país. Isso se deve ao fato de a mutação causadora da doença ser mais prevalente em populações com ascendência africana, comuns nessas regiões.
Por outro lado, a talassemia, principalmente sua forma mais grave, é mais comum em populações de origem mediterrânea. Por isso, no Brasil, a prevalência é maior nas regiões Sul e Sudeste, onde estão concentrados os descendentes de italianos.
O estudo aponta que, em áreas sem programas de triagem neonatal como o brasileiro, o diagnóstico inicial ocorre aproximadamente aos 21 meses de vida. Para muitos portadores, a primeira manifestação da anemia falciforme é uma infecção fatal ou uma crise de sequestro esplênico agudo – diminuição da concentração de hemoglobina no sangue que pode gerar choque hemorrágico. O diagnóstico precoce acompanhado da profilaxia reduz a mortalidade nos primeiros cinco anos de vida de 25% para 3%.
Ainda assim, estimativas precisas dos casos de anemia falciforme são difíceis de se obter, mesmo em países com um bom sistema de saúde e com programas de rastreamento universal como o brasileiro.
“No entanto, há novos dados epidemiológicos sendo constantemente gerados. Sofisticados métodos analíticos, como modelos geoespaciais, poderiam permitir gerar estimativas razoáveis no número de pessoas com anemia falciforme ao redor do mundo”, disse Frédéric B. Piel, pesquisador do Imperial College, em Londres, e um dos autores do artigo.
“Esses projetos dependem de grandes redes colaborativas e demandam coleta de dados e processamento, além de habilidade para analisá-los, o que requer financiamento substancial”, disse Piel à Agência FAPESP.
O artigo Sickle cell disease (doi:10.1038/nrdp.2018.10), de Gregory J. Kato, Frédéric B. Piel, Clarice D. Reid, Marilyn H. Gaston, Kwaku Ohene-Frempong, Lakshmanan Krishnamurti, Wally R. Smith, Julie A. Panepinto, David J. Weatherall, Fernando F. Costa e Elliott P. Vichinsky, pode ser lido em: www.nature.com/articles/nrdp201810.
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