Em 1980 a China tinha 1,4 autor por milhão de habitantes, o Irã tinha 10 e o Brasil 31. Em 2024, a China chegou a 1.710 autores por milhão de habitantes, o Irã a 1.231 e o Brasil ficou com 932 (imagem: Freepik)

Política de CT&I
Investimento de países de renda baixa e média em C&T alterou a geografia da ciência nos últimos 30 anos
02 de setembro de 2025

Análise foi feita por Carlos Henrique de Brito Cruz, ex-diretor científico da FAPESP, a partir da base de dados Elsevier Scopus, que abrange 100 milhões de publicações e mais de 7 mil editoras científicas em todo o mundo

Política de CT&I
Investimento de países de renda baixa e média em C&T alterou a geografia da ciência nos últimos 30 anos

Análise foi feita por Carlos Henrique de Brito Cruz, ex-diretor científico da FAPESP, a partir da base de dados Elsevier Scopus, que abrange 100 milhões de publicações e mais de 7 mil editoras científicas em todo o mundo

02 de setembro de 2025

Em 1980 a China tinha 1,4 autor por milhão de habitantes, o Irã tinha 10 e o Brasil 31. Em 2024, a China chegou a 1.710 autores por milhão de habitantes, o Irã a 1.231 e o Brasil ficou com 932 (imagem: Freepik)

 

Karina Toledo | Agência FAPESP – Análise feita a partir da base de dados Elsevier Scopus aponta uma profunda transformação na geografia da ciência ao longo dos últimos 30 anos. Enquanto em 1994 a larga maioria (87%) dos artigos publicados contava com autores sediados em países de renda alta (HIC, na sigla em inglês), em 2024 a maior parte (60%) foi assinada por cientistas residentes em países de renda baixa e média (LMIC), como é o caso de Brasil, Índia, Rússia e China, entre muitos outros. Essa base de dados abrange mais de 100 milhões de publicações de mais de 7 mil editoras científicas de todo o mundo.

O crescimento do número de autores da China – que ultrapassou o dos Estados Unidos em 2015 – contribuiu fortemente para esse movimento, e o estudo constata que várias outras nações entre as de renda baixa e média tiveram participação relevante. “Se excluirmos a China desta análise e também os Estados Unidos, os 28 países de renda baixa e média com mais autores ficam à frente [em número de autores] dos 27 países da União Europeia mais o Reino Unido”, comenta Carlos Henrique de Brito Cruz, ex-diretor científico da FAPESP, atual vice-presidente sênior para Redes de Pesquisa na Elsevier e autor do estudo.

Os dados integram um documento (science-policy brief) apresentado por Brito Cruz no 10º Fórum Multissetorial sobre Ciência, Tecnologia e Inovação para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), realizado em maio, na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, Estados Unidos.

“Para identificar a localização de cada autor, usamos o endereço institucional que o pesquisador informa ao assinar uma publicação [um dos campos da base de dados Scopus, onde também consta o país em que está sediada a instituição de vínculo]. Esse endereço independe da nacionalidade da pessoa, indica onde ela trabalha”, explica Brito Cruz à Agência FAPESP. “Medimos o número de artigos científicos com autores em cada país e também o número de autores em cada país.”

A categorização dos países foi feita segundo critérios do Banco Mundial, que considera como países de renda alta aqueles com Renda Nacional Bruta per capita de US$ 13.845 ou mais (79 nações); abaixo desse valor estão os países de renda baixa e média (134 nações). “Há muito mais habitantes nos países de renda baixa e média e, mesmo assim, há 30 anos, somente 9% dos autores residiam nessas nações. Em 2024 o número saltou para 60%”, conta Brito Cruz.

Segundo o levantamento, o número de artigos publicados globalmente tem crescido a uma taxa de 5% ao ano impulsionado, em boa medida, pelo aumento na quantidade de autores trabalhando em países emergentes. Esse movimento é atribuído ao fato de que grande parte dos países de renda baixa e média tem estado ocupada, nos últimos 50 anos, com a construção de capacidade científica e tecnológica (C&T), o que inclui a criação de universidades, institutos de pesquisa, agências de fomento e instalações industriais de pesquisa e desenvolvimento (P&D), entre outros tipos de infraestrutura científica.

Na avaliação de Brito Cruz, muitas economias emergentes perceberam que, para criar desenvolvimento econômico e social, precisariam ter capacidade em C&T em setores estratégicos. “Alguns países fizeram isso com mais empenho, determinação e eficácia, outros com menos. A China, em 1980, tinha 1,4 autor por milhão de habitantes, o Irã tinha 10 e o Brasil 31. Em 2024, a China chegou a 1.710 autores por milhão de habitantes, o Irã a 1.231 e o Brasil ficou com 932”, conta.

Ainda segundo Brito Cruz, o Brasil foi ultrapassado pelo Irã em 2011 e pela China em 2019. De 1993 a 2003, o número de autores por milhão de habitantes no Brasil cresceu 12% ao ano, na China também 12% e no Irã 22%. Entre 2014 e 2024, o crescimento no Brasil foi de 4% por ano, na China de 12% e no Irã 5%.

“A taxa de crescimento dos países de renda alta está em 3% por ano. Não é bom para países que estão ainda formando seu sistema de C&T [os de renda baixa e média] terem números similares aos de países já estabelecidos. O Brasil vem perdendo velocidade de crescimento desde 2012, deveríamos nos preocupar com isso, que eu tenho chamado de ‘síndrome do Rei Lear’. Na obra de Shakespeare, o Bobo da Corte diz ao rei: ‘Tu não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio’. O Brasil precisa de mais pesquisadores para evitar ficar velho demais antes de ficar sábio”, destaca.

Agenda 2030

A produção científica relacionada à Agenda 2030 da ONU, lançada em 2015, também reflete essa nova geografia da ciência. Em 2024, 59% das publicações sobre os ODS tiveram autores sediados em países de renda baixa e média. A taxa de crescimento de artigos sobre os ODS entre 2015 e 2024 foi maior nesses países (12,7% ao ano) do que nos de renda alta (5,4% ao ano). Em 2024, para dez dos 17 ODS que integram a agenda da ONU, a parcela de artigos com autores dos países de renda baixa e média (59%) já era superior à dos de renda alta (54%). Como explica o texto, a soma difere de 100% porque há publicações com autores em ambos os grupos.

“Os esforços dos países emergentes para criar capacidade em C&T ajudam a avançar melhor e mais depressa na Agenda 2030. Dito de outra forma: sem esses esforços estaríamos bem mais atrás no atingimento dos ODS”, afirma Brito Cruz.

Entre as 38 principais agências de fomento mencionadas em mais de 10 mil artigos sobre os ODS publicados entre 2020 e 2024, 20 são de países de renda baixa e média, com destaque para as nove da China, quatro da Índia e três do Brasil: o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e a FAPESP. No Brasil, cerca de um terço dos estudos apoiados por essas agências estão relacionados a algum dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. O CNPq e a Capes estão entre as dez agências nacionais financiadoras com mais artigos relacionados aos ODS apoiados.

Principais lacunas

Apesar do crescimento no número de autores e no volume de artigos, a produção científica dos países de renda baixa e média ainda tem desafios pela frente. Indicadores bibliométricos para o período entre 2021 e 2024 mostram, por exemplo, que há um percentual menor de coautoria internacional: 25,2% contra 37,4% dos países de renda alta. “Uma dificuldade é o custo de colaborar – viagens, estadia. Outro é a instabilidade que existe no financiamento à pesquisa em muitos dos países de renda baixa e média como, por exemplo, no Brasil. Os colaboradores esperam previsibilidade. Há também barreiras relacionadas ao idioma de cada país e à falta de domínio do inglês, que tem sido há décadas o idioma preferencial da pesquisa científica”, avalia Brito Cruz.

Outra lacuna apontada pelo estudo é a menor quantidade de artigos fruto de colaboração entre a academia e o setor empresarial: 1,9% nos de renda baixa e média contra 3,6% nos de renda alta. Para Brito Cruz, uma das explicações é o fato de que nos países de renda baixa e média há, em geral, menos empresas avançadas e com atividades intensas de P&D.

“Para que os países de renda baixa e média possam transformar mais efetivamente conhecimento em desenvolvimento econômico, ao lado de terem mais universidades e institutos de pesquisa, é essencial que tenham mais empresas ativas em P&D. Para se entender os determinantes e limitantes dessa interação universidade-empresa é preciso olhar o problema de dois lados: um é o lado acadêmico – qual a porcentagem das publicações com autores em universidades que tem coautores em empresas; o outro é o lado da empresa: qual a porcentagem dos artigos com autores em empresas que tem coautores em universidades. No Brasil, por exemplo, 3% das publicações com autores em universidades têm coautores em empresas e 87% das publicações com autores em empresas têm coautores em universidades. Já nos Estados Unidos, 6% das publicações com autores em universidades têm coautores em empresas e 65% das publicações com autores em empresas têm coautores em universidades. Fica claro que, no Brasil, os autores de ideias em universidades não conseguem nem poderiam encontrar mais coautores para colaborar em empresas porque quase todos os disponíveis já estão colaborando [87%]”, explica.

Na parte final do artigo, Brito Cruz defende que essa nova geografia da ciência requer ajustes nas políticas globais de ciência e tecnologia. Entre suas recomendações estão: apoiar os países de renda baixa e média na criação e no fortalecimento de suas próprias agências de fomento à pesquisa; promover mais colaborações entre os próprios países de renda baixa e média (cooperação Sul-Sul); e ajustar a governança internacional da pesquisa (comitês, organizações) para refletir a crescente participação e contribuição dos países emergentes, que atualmente é desproporcional.

O artigo How a changing geography of research can accelerate the advancement of the U.N. SDGs in low- and middle income countries pode ser acessado em: https://sdgs.un.org/documents/de-brito-cruz-ch-2025-how-changing-geography-research-can-accelerate-advancement-un-sdgs.
 

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