Rede favo de mel com duas impurezas, localizadas no centro das áreas hachuradas em azul (imagem: Eric Andrade/USP)

Estudo torna mais realista o modelo do líquido de spins
26 de agosto de 2022
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Cientistas da USP investigaram como essa construção teórica se comporta em materiais que apresentem defeitos e estejam sujeitos a campos magnéticos externos. Os resultados foram divulgados em Physical Review Letters

Estudo torna mais realista o modelo do líquido de spins

Cientistas da USP investigaram como essa construção teórica se comporta em materiais que apresentem defeitos e estejam sujeitos a campos magnéticos externos. Os resultados foram divulgados em Physical Review Letters

26 de agosto de 2022
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Rede favo de mel com duas impurezas, localizadas no centro das áreas hachuradas em azul (imagem: Eric Andrade/USP)

 

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – O spin é o momento magnético intrínseco de uma partícula – um elétron, por exemplo. Trata-se de uma grandeza fundamental, assim como a massa e a carga. Dito de forma bastante simplificada, é como se a partícula possuísse um ímã em seu interior que lhe permitisse interagir não só com os spins de outras partículas, mas também com campos magnéticos externos, mesmo em repouso.

Por analogia com os líquidos usuais, sistemas nos quais os spins não apresentam ordem magnética, mesmo em temperaturas próximas do zero absoluto, são chamados de líquidos de spins. Seguindo o mesmo tipo de nomenclatura, um sistema que apresentasse ordem magnética seria um sólido de spins, pois o ordenamento magnético de seus spins é análogo ao ordenamento periódico dos átomos em um cristal.

A exploração desses sistemas não apenas abre uma porta para o entendimento de aspectos fundamentais da matéria, mas também aponta, no horizonte distante, para um importante campo de aplicação prática: o da computação quântica topológica. Por isso, há um grande esforço de pesquisa na área. Um exemplo é o artigo Disorder, low-energy excitations, and topology in the Kitaev spin liquid, que acaba de ser publicado na revista Physical Review Letters.

“O modelo Kitaev [formulado pelo físico russo, naturalizado norte-americano, Alexei Yurievich Kitaev, nascido em 1963 e atualmente professor no California Institute of Technology] é uma proposta de líquido de spin em duas dimensões. É muito interessante, mas um tanto artificial. É de se esperar que desvios em relação ao modelo original apareçam em materiais reais. E foi isso que investigamos no trabalho”, diz à Agência FAPESP o pesquisador Eric Andrade, professor do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP), coordenador do estudo.

Andrade e seu orientando Vitor Dantas estudaram como o modelo de Kitaev se comporta em uma rede tipo favo de mel, na presença de defeitos e perturbações, como o campo magnético e interações extras.

“Desde 2009, há propostas teóricas robustas de que esse modelo pode ser realizado em isolantes de Mott, que apresentam um forte acoplamento spin-órbita”, afirma Andrade.

Aqui, é preciso abrir espaço para duas explicações. Isolantes de Mott são materiais complexos que se apresentam como isolantes elétricos, mas ainda possuem dinâmica de spin. Isto é, comportam-se como materiais magnéticos. Há grande interesse nesses sistemas porque, neles, é possível acessar separadamente a carga e o spin dos elétrons, o que dá origem a uma física inusitada e rica, como a dos líquidos de spin. “No presente trabalho, os elétrons ficam como que congelados no espaço. Assim, sua massa e sua carga não participam da dinâmica a baixas temperaturas. A única contribuição vem do spin”, ilustra Andrade.

A outra explicação diz respeito ao acoplamento spin-órbita. Trata-se de uma manifestação da relatividade restrita em sistemas atômicos e de matéria condensada. Esse efeito acopla o spin do elétron com seu movimento no espaço tridimensional. “Isso é essencial para gerar as interações magnéticas de Kitaev. Um pré-requisito para a relevância desse termo é que o átomo magnético do sistema apresente número atômico bastante elevado. Por isso, os materiais de Kitaev geralmente envolvem irídio [Ir] e rutênio [Ru]”, informa Andrade.

Neste trabalho, o material enfocado foi um óxido de irídio, o H3LiIr2O6. Esse isolante de Mott não apresenta ordem magnética até 50 milikelvin, o que faz dele um promissor candidato a líquido de spin de Kitaev.

“Em nosso trabalho, conseguimos explicar as contradições que havia entre as previsões do modelo de Kitaev pristino e os resultados experimentais obtidos com o H3LiIr2O6. Mostramos que a presença de uma pequena quantidade de vacâncias já é suficiente para explicar os dados experimentais. As vacâncias correspondem à substituição do íon magnético Ir por um não magnético. Como o hidrogênio é um elemento muito leve, é esperado que apareçam esses defeitos no sistema durante o processo de cristalização”, explica Andrade.

E continua: “Além de fornecer um cenário consistente dos experimentos em termos de um líquido de spin de Kitaev desordenado, nosso trabalho propiciou também uma importante previsão: esse material deve apresentar uma fase topológica na presença de um campo magnético externo. No caso, essa fase topológica é caracterizada pela presença, na borda do sistema, de férmions de Majorana que carregam uma corrente de energia quantizada. Esse resultado é impressionante se lembrarmos que estamos falando de um isolante de Mott para o qual as cargas dos elétrons estão congeladas, não podendo, portanto, transportar corrente elétrica".

A existência de férmions de Majorana é algo que tem sido intensamente explorado. Em um trabalho datado de 1937, o físico italiano Ettore Majorana, considerado um dos maiores gênios da história da ciência e que desapareceu aos 31 anos sem deixar vestígios, apresentou a hipótese de uma partícula que teria a si mesma como antipartícula. E sugeriu que o neutrino poderia ser essa partícula.

As pesquisas atuais enfocam não apenas o neutrino, mas também quase-partículas, ou partículas aparentes, constituídas por excitações em sistemas de matéria condensada. Além do interesse que suscitam em física fundamental, essas partículas exóticas, chamadas genericamente de férmions de Majorana, definem uma importante fronteira no campo da informação e computação quânticas, pois poderiam ser utilizadas, por exemplo, para a correção de erros. O trabalho em pauta acrescenta mais uma contribuição para o seu entendimento.

O estudo contou com apoio da FAPESP por meio do projeto “Magnetos frustrados: anisotropia e inomogeneidades”.

O artigo Disorder, low-energy excitations, and topology in the Kitaev spin liquid pode ser acessado em: https://link.aps.org/doi/10.1103/PhysRevLett.129.037204.
 

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