Pesquisadores da Unifesp descrevem como uma enzima encontrada no abacaxi gera no intestino a encefalina, peptídeo normalmente produzido no cérebro e que tem efeito semelhante ao da morfina (imagens: divulgação e Greg Montani-Pixabay)
Pesquisadores da Unifesp descrevem como enzima do abacaxi gera no intestino a encefalina, peptídeo normalmente produzido no cérebro e que tem efeito semelhante ao da morfina
Pesquisadores da Unifesp descrevem como enzima do abacaxi gera no intestino a encefalina, peptídeo normalmente produzido no cérebro e que tem efeito semelhante ao da morfina
Pesquisadores da Unifesp descrevem como uma enzima encontrada no abacaxi gera no intestino a encefalina, peptídeo normalmente produzido no cérebro e que tem efeito semelhante ao da morfina (imagens: divulgação e Greg Montani-Pixabay)
Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – Velha conhecida da indústria farmacêutica, a bromelina – enzima encontrada no abacaxi – acaba de ter seu mecanismo de ação analgésica desvendado.
Pesquisadores da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em estudo apoiado pela FAPESP por meio de um Projeto Temático, descobriram que a bromelina é responsável pela liberação de encefalina – considerada uma morfina endógena – a partir de sua proteína precursora, a proencefalina, que também é encontrada na parede do intestino delgado.
No encéfalo, a liberação de encefalina a partir da proencefalina é bem conhecida pela ciência. Ela ocorre pela ação de proteases específicas – enzimas que quebram proteínas e peptídeos – presentes no tecido cerebral e é uma rota importante para o controle da dor. A encefalina age em receptores opioides, como a morfina.
“É uma questão que nos intrigava: como alguém que ingeria bromelina apresentava resposta analgésica. Sabe-se que essa enzima não pode entrar na circulação sanguínea, uma vez que isso provocaria um choque hipotensor violento, levando o indivíduo à morte [por isso não há administração intravenosa da bromelina para fins terapêuticos]. O efeito, portanto, teria que ocorrer por outro mecanismo, restrito à superfície do intestino”, disse Luiz Juliano, professor titular aposentado da Unifesp e um dos autores do artigo com resultados da pesquisa publicado na revista Peptides.
Juliano conta que há cerca de cinco anos descobriu-se que a proencefalina está presente em outros locais além do cérebro, entre eles o intestino. “Juntamos uma informação à outra e comprovamos com estudos in vivo a participação do conteúdo intestinal no controle da dor”, disse à Agência FAPESP.
Os pesquisadores da Unifesp verificaram, a partir de testes em camundongos, que, ao ingerir a bromelina – encontrada na polpa, mas principalmente no talo do abacaxi –, a enzima libera encefalina, digerindo a proencefalina presente também na parede do intestino delgado. Dessa forma, a encefalina gerada no processo entra na corrente sanguínea e desempenha ação analgésica periférica.
A descoberta abre perspectivas para o estudo da interação entre o conteúdo enzimático do bolo alimentar (e da microflora intestinal) com a parede do intestino na liberação de substâncias bioativas.
Relação entre intestino e cérebro
Os efeitos analgésicos do abacaxi são conhecidos há séculos pelos indígenas nas Américas. Tanto que, conta-se, exemplares da fruta usada para a redução de dor e na cicatrização de ferimentos foram levados para a Europa pelos primeiros navegadores europeus que chegaram ao continente americano.
Séculos depois, verificou-se que a bromelina agia não apenas contra a dor, mas também tinha atividade anti-inflamatória e atuava na quebra de proteínas. Isso permitiu o desenvolvimento de diversos produtos a partir do abacaxi pelas indústrias farmacêutica e alimentícia, para fins digestivos, analgésicos, cicatrizantes ou para amaciar carnes (leia mais em agencia.fapesp.br/28129).
A despeito do sucesso comercial, pouco se sabia sobre a relação dos efeitos analgésicos do abacaxi com seu papel na interface do intestino. As investigações feitas em camundongos pela equipe da Unifesp mostraram que a bromelina age na mucosa do intestino delgado liberando encefalina, que é absorvida e promove ação analgésica.
“A encefalina gerada no intestino atua principalmente na periferia do organismo, onde pode ter propriedades anti-inflamatórias”, disse Juliano.
De acordo com o artigo publicado na revista Peptides, a administração oral de bromelina em camundongos reduziu os níveis de proencefalina em um segmento do intestino delgado (chamado de jejuno) e aumentou os níveis de encefalina circulante.
Foi observada também redução na capacidade dos animais em sentir dor, com o efeito máximo detectado três horas após a administração oral de bromelina (extraída do talo do abacaxi) na dose de 3 mg/kg.
“O curioso foi observar que há um limite. O efeito permanece até certa dose de bromelina e, depois, conforme a dose é aumentada, começa a diminuir até não ser mais possível identificar ação analgésica. Isso ocorre por causa da hidrólise da encefalina, provavelmente no caso de bromelinas comerciais, que não são puras e contêm outras proteases”, disse Juliano.
Para entender melhor essa relação, é preciso compreender como a bromelina decompõe a proencefalina. A bromelina do talo do abacaxi tem alta preferência para quebrar proteínas localizadas logo após sequências de pares de aminoácidos básicos arginina (R) e lisina (K).
Por outro lado, a proencefalina contém cinco sequências de encefalina flanqueadas por pares desses aminoácidos. Após a hidrólise dos aminoácidos, a encefalina é liberada, o que foi confirmado a partir da síntese química de fragmentos da proencefalina tratados com bromelina.
De acordo com o professor Juliano, a preferência da bromelina pelos aminoácidos arginina e lisina, observada inicialmente em estudo de 1999, tem semelhanças com o mecanismo de ação da protease PC2, a principal enzima (convertase) que cliva proencefalina para gerar as encefalinas no cérebro. Essas observações também tiveram a participação do grupo da Unifesp.
“Essa preferência da bromelina pela arginina e pela lisina faz com que ela funcione à semelhança das enzimas específicas no cérebro que geram a encefalina. Nossos estudos mostram que os efeitos de bromelina e morfina são semelhantes. O que não é de se estranhar, pois a morfina age nos mesmos receptores da encefalina. Porém, o neurotransmissor analgésico é produzido de forma endógena no nosso organismo”, disse Juliano.
Segundo o pesquisador, a bromelina pode ainda ser uma ferramenta útil para ampliar o entendimento entre a conexão intestino-cérebro.
“Este trabalho não só explica o mecanismo de ação da bromelina como também nos instiga a examinar a interação do conteúdo intestinal com a parede do intestino, particularmente os elementos enzimáticos. Além dos alimentos, devemos atentar também para a microbiota e seus produtos, que seguramente geram enzimas proteolíticas. Essas podem resultar em respostas fisiológicas de alta relevância, tal como dor e inflamação, e também respostas imunológicas”, disse.
O artigo Enkephalin related peptides are released from jejunum wall by orally ingested bromelain (doi: 10.1016/j.peptides.2019.02.008), de Paulo Eduardo Orlandi-Mattos, Rodrigo Barbosa Aguiar, Itabajara da Silva Vaz Junior, Jane Zveiter Moraes, Elisaldo Luiz de Araujo Carlini, Maria Aparecida Juliano, Luiz Juliano, pode ser lido em www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0196978119300245.
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