Em estudo feito na Unifesp, ratos privados de sono desenvolveram dependência a anfetamina depois de apenas duas sessões de administração da droga (foto: Juanedc / Wikipedia)

Privação de sono potencializa o efeito de drogas e favorece a dependência química
23 de julho de 2018
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Em estudo feito na Unifesp, ratos privados de sono desenvolveram dependência a anfetamina depois de apenas duas sessões de administração da droga

Privação de sono potencializa o efeito de drogas e favorece a dependência química

Em estudo feito na Unifesp, ratos privados de sono desenvolveram dependência a anfetamina depois de apenas duas sessões de administração da droga

23 de julho de 2018
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Em estudo feito na Unifesp, ratos privados de sono desenvolveram dependência a anfetamina depois de apenas duas sessões de administração da droga (foto: Juanedc / Wikipedia)

 

José Tadeu Arantes  |  Agência FAPESP – A privação de sono tornou-se um fenômeno epidêmico em escala planetária. Pesquisa realizada nos Estados Unidos mostrou que a população adulta que dorme seis horas ou menos cresceu em 31% no período compreendido entre 1985 e 2012. Em entrevista ao jornal The Guardian, Matthew Walker, diretor do Centro para Ciência do Sono Humano, da Universidade da Califórnia em Berkeley, destacou que a privação de sono está disseminada na sociedade moderna e afeta cada aspecto de nossa biologia. E mencionou, entre as consequências, enfermidades como obesidade, diabetes, doenças cardíacas, acidente vascular cerebral, doença de Alzheimer e câncer. 

Outra importante consequência acaba de ser demonstrada, em estudo com modelos animais feito por Laís Fernanda Berro e colegas. Trata-se da potencialização que a privação de sono exerce sobre os efeitos da anfetamina, favorecendo o desenvolvimento de padrões comportamentais relacionados à dependência química. Artigo a respeito foi publicado pelos pesquisadores na revista Neuroscience Letters.

“O sono transformou-se em moeda de troca na sociedade contemporânea. Deixamos de dormir para fazer muitas outras coisas: trabalho, diversão, participação em redes sociais etc. E a associação da privação do sono com o uso de drogas psicoestimulantes, como anfetamina, cocaína e outras, tornou-se muito frequente – não apenas em ‘baladas’ e ‘raves’, mas também por parte de profissionais que precisam trabalhar por turnos, como plantonistas de hospitais, caminhoneiros e outros. Nosso estudo mostrou que a privação de sono exacerba o efeito da droga e contribui para a consolidação do quadro de dependência”, disse Berro à Agência FAPESP.

Doutora pela Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp) na área de Medicina e Biologia do Sono, a pesquisadora conclui atualmente pós-doutorado no Centro Médico da University of Mississippi. 

“Os estudos reportados na literatura afirmam que são necessárias quatro sessões para condicionar os animais ao uso de anfetaminas. Nossa pesquisa mostrou que, quando existe privação de sono, bastam duas sessões”, disse. O estudo empregou um método que possibilita investigar a chamada “preferência condicionada por lugar”. 

“Utilizamos um dispositivo composto por dois compartimentos: um com paredes brancas e chão preto; o outro com paredes pretas e chão metálico. Ministramos a droga de abuso – no caso, a anfetamina – em um desses ambientes. No dia seguinte, colocamos o animal, sem administração de droga, no outro ambiente. Com isso, criamos um lugar pareado com os efeitos da droga e um lugar neutro. Depois de algumas sessões, o animal condicionado tende a escolher o ambiente pareado, mesmo que não receba droga alguma”, disse Berro. 

O objetivo do estudo foi verificar se a privação de sono poderia levar ao condicionamento com um número menor de sessões do que as quatro descritas pela literatura. E isso, de fato, ocorreu.

No total, foram utilizados 25 ratos: 13 com privação de sono e 12 no grupo-controle. Após duas sessões de anfetamina, nenhum animal do grupo-controle desenvolveu condicionamento. Mas todos os animais privados de sono desenvolveram. “Isso confirmou nossa hipótese de que a privação de sono é, de fato, potencializadora dos efeitos da anfetamina e contribui para o estabelecimento da dependência química”, disse Berro.

“É claro que é sempre problemático transpor os resultados obtidos com modelos animais para humanos, mas, afinal, é para isso que fazemos experimentos com modelos animais. No caso, nosso experimento permite afirmar que, se uma pessoa estiver privada de sono e fizer uso de anfetamina, ela terá maior propensão a desenvolver o condicionamento entre os efeitos da droga e as ‘pistas ambientais’ – isto é, as características do ambiente”, disse.

Associação entre ambiente e droga

A associação entre os efeitos da droga e o ambiente é algo muito prevalente na vida dos dependentes químicos. A tal ponto que o condicionamento pelas pistas ambientais constitui um dos maiores desafios no tratamento. 

“Mesmo quando dependentes químicos decidem que querem deixar a droga e têm recursos e força de vontade suficientes para passar três meses em uma clínica de reabilitação, limpando o sistema, é muito difícil que, depois de tudo isso, eles possam regressar ao ambiente em que costumavam fazer uso da droga sem experimentar recaídas. Quando as pessoas retornam, as pistas ambientais associadas aos efeitos da droga – que podem englobar desde a audição de uma simples música até o contato com um colega – são suficientes para que elas se lembrem dos efeitos da droga e sintam o impulso de usar de novo”, disse Berro. 

Essa associação entre ambiente e droga é multifatorial. Mas tem uma forte base bioquímica. “Existe uma região bem determinada do cérebro, o núcleo accumbens, na qual a utilização de drogas de abuso provoca um aumento dos níveis de dopamina. Todos os mamíferos possuem essa estrutura cerebral. E o aumento dos níveis de dopamina nessa estrutura está associado à formação de memórias importantes para a sobrevivência”, disse Berro. 

“Alimentação, relação sexual, experiências de luta ou fuga, tudo isso leva a um aumento da dopamina, criando memórias destinadas a perpetuar a vida do indivíduo e a existência da espécie. As drogas de abuso também provocam esse aumento. E é ele que fornece o substrato bioquímico para a associação entre os efeitos recompensadores da droga e as pistas ambientais. Uma vez condicionada, basta que a pessoa entre em contato com o ambiente para já experimentar um aumento de dopamina no núcleo accumbens, que a leva a recordar os efeitos da droga e a querer a droga”, explicou. 

O núcleo accumbens localiza-se no interior do sistema mesolímbico. Trata-se de uma região antiga e primitiva do cérebro. Desde tempos imemoriais, os humanos fazem uso de drogas que aumentam a liberação de dopamina nessa área. O mesmo ocorre com animais. Por isso a dependência química é tão recalcitrante. O córtex pré-frontal, onde existem estruturas associadas à razão e à discriminação, é muito mais recente. Seu poder normativo é fraco comparado às pulsões ancoradas no sistema límbico.

“O principal mecanismo pelo qual a privação de sono potencializa o efeito das drogas de abuso parece estar relacionado também à via dopaminérgica mesolímbica, da qual o núcleo accumbens faz parte. Estudos mostram que a privação de sono em ratos leva a um aumento nos níveis de dopamina no posencéfalo basal, área relacionada ao sono. Ainda não há evidências do aumento de dopamina no núcleo accumbens, mas estudos comportamentais sugerem fortemente isso. A privação de sono faz com que animais apresentem comportamentos que mimetizam ou potencializam aqueles causados por psicoestimulantes”, disse a pesquisadora.

“Além disso, sabe-se que tanto em roedores quanto em humanos a privação de sono altera a disponibilidade de receptores dopaminérgicos no corpo estriado. E, em humanos, também já foi demonstrado que a privação de sono amplifica a reatividade do sistema mesolímbico a estímulos prazerosos. Isso pode constituir uma base bioquímica para o favorecimento da dependência a drogas de abuso”, disse. 

O artigo Sleep deprivation precipitates the development of amphetamine-induced conditioned place preference in rats [https://doi.org/10.1016/j.neulet.2018.02.010], de Laís F.Berro, Sergio B. Tufik, Roberto Frussa-Filho, Monica L. Andersen e SergioTufik, está publicado em https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0304394018300831.

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