O canadense Sidney Altman conta porque a surpreendente descoberta das atividades catalícas do RNA, que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Química de 1989, ainda não resultou na criação de tecnologias genéticas (foto: F. Castro)

Um longo processo
13 de dezembro de 2007

O canadense Sidney Altman conta por que a surpreendente descoberta das atividades catalíticas do RNA, que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Química de 1989, ainda não resultou na criação de tecnologias genéticas

Um longo processo

O canadense Sidney Altman conta por que a surpreendente descoberta das atividades catalíticas do RNA, que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Química de 1989, ainda não resultou na criação de tecnologias genéticas

13 de dezembro de 2007

O canadense Sidney Altman conta porque a surpreendente descoberta das atividades catalícas do RNA, que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Química de 1989, ainda não resultou na criação de tecnologias genéticas (foto: F. Castro)

 

Por Fábio de Castro

Agência FAPESP – A vida seria impossível sem as enzimas, responsáveis pela catálise das reações químicas nas células. Uma enzima específica é necessária, por exemplo, para quebrar as moléculas de amido e transformá-las em glicose.

Até a década de 1980 era predominante entre os cientistas a noção de que todas as enzimas eram proteínas. Mas, em trabalhos independentes, o canadense Sidney Altman e o norte-americano Thomas Cech demonstraram que moléculas de RNA também eram capazes de atividade catalítica e podiam agir como enzimas. A descoberta rendeu à dupla o Prêmio Nobel de Química de 1989.

Os trabalhos de Altman e Cech abalaram um dogma fundamental da bioquímica segundo o qual a informação só fluiria em um sentido: do DNA para o RNA e daí para as proteínas. Desse modo, os ácidos nucléicos seriam apenas moléculas de hereditariedade, enquanto as propriedades de catálise seriam exclusivas das proteínas.

Altman, que é professor do Departamento de Biologia Molecular e Celular da Universidade Yale, e Cech, do Instituto Médico Howard Hughes, descobriram, mais precisamente, as propriedades catalíticas da ribonuclease P (RNase P), enzima que contém uma subunidade catalítica de RNA.

Ao superar o chamado "dogma central", a descoberta também gerou elementos para solucionar um antigo paradoxo: se proteínas só podem ser produzidas a partir da informação genética do DNA, como seria possível o início da vida na Terra, uma vez que as moléculas de DNA só podem ser reproduzidas e decifradas com a ajuda de proteínas? "Provavelmente a vida começou com uma molécula de RNA", aponta Altman.

A descoberta do RNA catalítico também foi acompanhada da expectativa de desenvolvimento de novas ferramentas para tecnologias genéticas, com potencial para criação de novas defesas contra infecções virais: a RNase P e outros fragmentos do RNA poderiam ser utilizados para desativar genes dentro das células.

Até agora nenhuma dessas tecnologias foi desenvolvida. Para o cientista canadense, no entanto, a demora faz parte do processo científico. Em visita ao Brasil para apresentar uma conferência a estudantes do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), Altman concedeu à Agência FAPESP a entrevista a seguir.


Agência FAPESP – O trabalho que identificou a capacidade catalítica do RNA surpreendeu a comunidade científica, rendeu ao senhor o Nobel e causou grandes expectativas. Desde então, quais foram os desdobramentos daquela descoberta?
Sidney Altman – Depois que fiz meu trabalho, assim como Cech fez o dele, muita gente começou a procurar por diferentes tipos de RNA dentro das células. Muitos outros tipos de RNA foram encontrados. Em pouco tempo outros pedaços de RNA catalítico também foram identificados. Nosso trabalho foi importante para mostrar que o RNA pode ter muitas e muitas propriedades diferentes em células importantes. Hoje conhecemos centenas de fragmentos de RNA, sendo que as funções da maioria ainda não são conhecidas. A pesquisa em andamento analisa justamente as descobertas feitas nos últimos 25 anos.

Agência FAPESP – Na época da descoberta se imaginava que ela teria potencial para gerar vários tipos de tecnologias genéticas desenhadas para terapias e medicamentos. Algo já foi desenvolvido nesse sentido?
Altman – Milhões de dólares foram investidos por grandes companhias nesse tipo de pesquisa. Mas, até agora, nenhum desses investimentos se mostrou útil. Principalmente porque é difícil manipular os RNAs nas células ligadas a doenças em humanos. Apesar das dificuldades, esses estudos continuam, muita gente trabalha neles e ainda há esperança de sucesso.

Agência FAPESP – Como seriam essas tecnologias?
Altman – Os estudos envolvem principalmente colocar nas células um pedaço de RNA que desativaria a expressão de outros RNAs importantes para a manifestação de doenças. Mas não se pode imaginar que isso será feito da noite para o dia. A ciência é um processo sempre em construção. No decorrer desse processo chegamos a alguns resultados, abrimos novas perspectivas e, conforme o conhecimento avança, aparecem novas dificuldades.

Agência FAPESP – No caso desses estudos, quais foram as principais dificuldades?
Altman – Imagine que um paciente tenha uma doença no fígado associada à presença de um vírus como o da hepatite B. A doença afeta apenas algumas das células do fígado. A pergunta é: como injetar o RNA que queremos para atacar o RNA viral no fígado? Tentou-se, a princípio, simplesmente injetar o RNA no fígado de camundongos. Em alguns casos, os tumores que cresciam começavam a desaparecer lentamente, mas depois reapareciam. Então, nada garante que a estratégia possa funcionar. Talvez seja preciso pegar o RNA de algumas células hepáticas específicas e continuar a expressar o RNA no fígado.

Agência FAPESP – Além das perspectivas de aplicação tecnológica a descoberta teve impacto no conhecimento sobre a base molecular da vida. O senhor poderia comentar esse aspecto?
Altman – A descoberta teve duas conseqüências importantes. Uma é puramente bioquímica: o que o RNA está fazendo dentro das células, porque está lá, como trabalha com as enzimas e quais são suas funções gerais. São questões de ciência básica. A outra questão tem a ver com a origem da vida na Terra. Verificamos que o RNA não era apenas uma molécula de hereditariedade, mas que também poderia servir como catalisador – isto é, funcionar como uma enzima, responsável pelas reações químicas que possibilitam a vida da célula.

Agência FAPESP – Esse foi o aspecto que abalou as concepções arraigadas da biologia molecular?
Altman – Sim. O chamado dogma central, formulado por Francis Crick, definia que o fluxo de informação vai apenas em um sentido: do DNA para o RNA e daí para a proteína. O RNA seria um simples intermediário entre o DNA e as proteínas. Mas sem enzimas, que pelo dogma deveriam ser todas proteínas, a vida não seria possível. Presumimos que não havia proteínas na época da origem da vida. Quando verificamos que o RNA tinha funções catalíticas, ele podia substituir a proteína. Com isso, reforçamos a hipótese de que as primeiras formas de vida consistiam apenas em um RNA com algum tipo de membrana. Ele é uma longa seqüência de símbolos e tem a informação suficiente para gerar a vida – contanto que faça a catálise.

Agência FAPESP – Quais são hoje suas principais preocupações científicas e sociais?
Altman – Cientificamente, preocupo-me com os desdobramentos da minha pesquisa sobre o RNA. E me sinto realizado com o trabalho que tenho feito como cientista. Quanto ao aspecto social, o que mais me preocupa é a liberdade de pensamento. Talvez não seja um problema no Brasil ou nos Estados Unidos, mas muitos países carecem disso. É preciso que se possa estudar qualquer coisa que se queira, em ciências, artes ou humanidades. As sociedades que apóiam o conhecimento são felizardas. Mas gostaria de fazer uma ressalva: as pessoas dão muita atenção ao que diz um vencedor de Prêmio Nobel. Perguntam-me muita coisa, mas eu não sei nada sobre a sociedade além do que todo mundo sabe.


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