Combinando experimentos em condições extremas e análises teóricas, pesquisadores buscam gerar o conhecimento que permitirá criar, no futuro, uma nova geração de materiais funcionais sustentáveis, utilizáveis em dispositivos de informação quântica ou supercondutores (imagem: representação da estrutura cristalina do material considerado no estudo, o férmion pesado Ce3Pd20Si6 / PNAS)

Transição quântica faz elétron se comportar como se não tivesse spin
23 de outubro de 2019
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Combinando experimentos em condições extremas e análises teóricas, pesquisadores buscam gerar o conhecimento que permitirá criar, no futuro, uma nova geração de materiais funcionais sustentáveis, utilizáveis em dispositivos de informação quântica ou supercondutores

Transição quântica faz elétron se comportar como se não tivesse spin

Combinando experimentos em condições extremas e análises teóricas, pesquisadores buscam gerar o conhecimento que permitirá criar, no futuro, uma nova geração de materiais funcionais sustentáveis, utilizáveis em dispositivos de informação quântica ou supercondutores

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Combinando experimentos em condições extremas e análises teóricas, pesquisadores buscam gerar o conhecimento que permitirá criar, no futuro, uma nova geração de materiais funcionais sustentáveis, utilizáveis em dispositivos de informação quântica ou supercondutores (imagem: representação da estrutura cristalina do material considerado no estudo, o férmion pesado Ce3Pd20Si6 / PNAS)

 

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – As transições de fase comuns são aquelas que ocorrem em função da variação de temperatura. Assim, o gelo muda de fase e se transforma em água líquida a 0º C e a água líquida muda de fase e se transforma em vapor a 100º C. Do mesmo modo, materiais magnéticos tornam-se não magnéticos em temperaturas críticas. Mas existem também transições de fase que independem da temperatura. Estas ocorrem nas vizinhanças do zero absoluto [-273,15° C] e estão associadas às flutuações quânticas.

Um estudo, envolvendo experimentos em condições extremas de temperaturas ultrabaixas e intensos campos magnéticos, acompanhado de interpretação teórica dos resultados experimentais, explorou esse tipo de situação e investigou o ponto crítico quântico manifestando-se em uma transição bastante inusual.

O trabalho, que teve a participação da pesquisadora italiana Valentina Martelli e do peruano Julio Larrea, ambos professores do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), foi publicado no periódico Proceedings of The National Academy of Sciences of The United States of America (PNAS).

A parte experimental, liderada pela professora Silke Paschen, foi desenvolvida nos laboratórios da Technische Universität Wien (Universidade Técnica de Viena), na Áustria, e teve o suporte teórico do grupo coordenado pelo professor Qimiao Si, da Rice University, nos Estados Unidos. “Verificamos e interpretamos evidências de dois pontos críticos quânticos sucessivos, associados a uma dupla ruptura do efeito Kondo”, contou Larrea à Agência FAPESP.

Assim denominado em referência ao físico japonês Jun Kondo (nascido em 1930), o efeito Kondo explica a formação de férmions pesados em compostos metálicos baseados em elementos de terras-raras. Nesses compostos, devido à sua forte correlação, os elétrons comportam-se coletivamente, formando um singleto (um coletivo de partículas distintas que se comportam como uma única partícula) que pode ser representado como o acoplamento do momento magnético localizado do íon da terra-rara com o elétron de condução em torno dele. Essa quase-partícula pode alcançar massas até milhares de vezes maiores do que a massa dos elétrons livres.

No estudo em pauta, o singleto foi rompido duas vezes, em duas ordens magnéticas: uma dipolar, resultante do momento magnético da quase-partícula; e outra quadrupolar, resultante da interação entre seus orbitais eletrônicos.

O experimento foi realizado com o férmion pesado Ce3Pd20Si6, um composto formado por cério (Ce), paládio (Pd) e silício (Si). Larrea deverá prosseguir as investigações, com auxílio da FAPESP por meio do projeto “Um estudo de estados quânticos topológicos e exóticos sob condições extremas”.

“O ponto de partida para essas transições são as fortes correlações que os elétrons têm em certos materiais. São elas que nos possibilitam entender esse tipo de mudança de estado”, disse o pesquisador.

“Há vários tipos de interação coletiva que podem afetar os elétrons. Um dos estados possíveis é o que chamamos de ‘metal estranho’ [strange metal]. Nos férmions pesados, o transporte dos elétrons é análogo ao dos metais comuns, mas os elétrons apresentam-se fortemente correlacionados e comportam-se, coletivamente, como se formassem uma única quase-partícula, que transporta a carga. Mas isso não acontece na transição de fase quântica. Por isso, o estado é chamado de ‘estranho’. O que se observa experimentalmente é que as propriedades físicas, como a resistência elétrica, por exemplo, comportam-se de maneira completamente diferente daquela que apresentam no transporte eletrônico metálico clássico”, explicou.

O fenômeno ocorre em temperaturas extremamente baixas, bem próximas do zero absoluto. Quando a temperatura diminui a esse ponto, as flutuações termodinâmicas praticamente desaparecem e o que se observa são flutuações quânticas. Elas constituem o “meio” no qual se manifestam as interações entre os elétrons.

“Até a publicação de nosso trabalho, o que estava sendo mais observado nos experimentos eram materiais em que a correlação eletrônica conduzia para um magnetismo relacionado com o comportamento do que chamamos de elétron itinerante e ao mesmo tempo localizado. Esses materiais compõem o grupo das terras-raras. Neles se constituem os chamados de férmions pesados. ‘Férmions’ porque os elétrons possuem spin fracionário e obedecem à estatística de Fermi-Dirac. ‘Pesados' porque se correlacionam com uma quase-partícula de grande massa efetiva”, disse Larrea.

“Esses materiais também possuem um momento magnético. Então, além de uma quase-partícula que transporta carga, também se associam a uma quase-partícula com momento magnético blindado pelos elétrons de condução. Cada momento magnético blindado pode estar acoplado a seu vizinho próximo na rede cristalina, produzindo uma ordem magnética em todo o material. No caso do Ce3Pd20Si6, essa ordem é do tipo antiferromagnética, o que equivale dizer que os momentos magnéticos na rede estão acoplados antiparalelamente. No ponto crítico quântico, essa ordem magnética pode ser suprimida sem a influência de um parâmetro de controle termodinâmico, mas por meio da aplicação de um campo magnético. O singleto Kondo se rompe. E o elétron que estava acoplado a essa ordem magnética simplesmente se separa”, disse.

Isso não contradiz os fundamentos da mecânica quântica, mas é bastante diferente daquilo que se aprende nos textos básicos. Como o momento magnético é definido a partir do spin, a supressão da ordem magnética faz com que tudo se passe como se os elétrons ficassem desprovidos de spin.

“Esse ponto crítico quântico, atingido a partir de uma ordem magnética, já havia sido reportado em outros trabalhos. O que tornou nosso trabalho diferente foi que, nele, além da ordem magnética dipolar, o material apresentava também uma ordem magnética quadrupolar, gerada pelos orbitais eletrônicos. Então, nosso diagrama de fase, que é quase um resumo gráfico de todo o estudo, mostra dois pontos críticos quânticos: o primeiro, no qual se rompe a ordem dipolar; e o segundo, no qual se rompe a ordem quadrupolar”, afirmou o pesquisador.

Larrea ressaltou que, além dessa descoberta, os resultados do estudo são importantes também para o entendimento de outros problemas em aberto. Por exemplo, o de saber como os elétrons se organizam coletivamente para produzir supercondutividade. “É necessária uma ordem coletiva para produzir um longo alcance no transporte. Certos tipos de materiais com correlações fortes entre os elétrons podem proporcionar isso. Sabemos agora que essas correlações fortes podem ser suprimidas, para favorecer a formação de novos estados, que apresentam propriedades físicas mensuráveis, mesmo em temperaturas diferentes do zero absoluto”, disse.

O próximo passo é estender a investigação da mudança das correlações entre elétrons com uso de outro parâmetro de controle, a pressão, para que, no futuro, seja possível chegar a um uso tecnológico desses conhecimentos, em domínios como, por exemplo, o da computação quântica.

O artigo Sequential localization of a complex electron fluid, de Valentina Martelli, Ang Cai, Emilian M. Nica, Mathieu Taupin, Andrey Prokofiev, Chia-Chuan Liu, Hsin-Hua Lai, Rong Yu, Kevin Ingersent, Robert Küchler, André M. Strydom, Diana Geiger, Jonathan Haenel, Julio Larrea, Qimiao Si e Silke Paschen, pode ser lido em https://www.pnas.org/content/116/36/17701.

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