O filósofo francês (à direita, na foto com Carl Jung) estabeleceu uma ponte entre o pensamento ocidental contemporâneo e a filosofia e a mística tradicionais islâmicas (Foto: Associacion des amis de Henry et Stella Corbin)
O filósofo francês estabeleceu uma ponte entre o pensamento ocidental contemporâneo e a filosofia e a mística tradicionais islâmicas
O filósofo francês estabeleceu uma ponte entre o pensamento ocidental contemporâneo e a filosofia e a mística tradicionais islâmicas
O filósofo francês (à direita, na foto com Carl Jung) estabeleceu uma ponte entre o pensamento ocidental contemporâneo e a filosofia e a mística tradicionais islâmicas (Foto: Associacion des amis de Henry et Stella Corbin)
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – O filósofo francês Henry Corbin (1889 – 1978) é um nome referencial para quem se interessa pela filosofia e a mística islâmicas. Diretor da cadeira de Estudos Islâmicos da Sorbonne (Universidade de Paris) e fundador da cadeira de Filosofia Iraniana da Universidade de Teerã, ele foi um dos mais respeitados hermeneutas das obras de Avicena (980 – 1037), Sohrawardi (1154 – 1191), Ibn Árabi (1165 – 1240) e Mulla Sadra (1572 – 1640). Foi também o primeiro tradutor para a língua francesa das obras contemporâneas do teólogo suíço Karl Barth (1886 – 1968) e dos filósofos alemães Karl Jaspers (1883 – 1969) e Martin Heidegger (1889 – 1976).
No entanto, no meio acadêmico brasileiro, Corbin ainda é praticamente desconhecido. Para não falar da filosofia e da mística islâmicas, que, ao contrário do que ocorreu na Europa e nos Estados Unidos, ficou aqui fora do foco de interesse e de pesquisa da universidade. Também a área de filosofia comparada, para a qual Corbin deu contribuições consideradas fundamentais, é ainda pouco desenvolvida no Brasil.
A pesquisadora Monica Udler Cromberg deu uma expressiva contribuição para que essas lacunas sejam ao menos em parte preenchidas. Sua tese de doutorado, defendida no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), enfoca os principais tópicos do pensamento de Corbin e sua conexão com conceitos de Heidegger.
Intitulada “Individuação espiritual e hermenêutica imaginal: Henry Corbin e a perspectiva heideggeriana”, a pesquisa foi orientada por Olgária Chain Féres Matos, professora titular do Departamento de Filosofia da USP, e apoiada pela FAPESP.
“O apoio possibilitou que eu rastreasse a obra de Corbin não apenas no Brasil, mas também na França e na Suíça. Seu trabalho oferece condições únicas para uma avaliação da situação cognitiva, existencial e espiritual em que o homem contemporâneo se encontra. E eu procurei estudá-lo não apenas destacando a herança da filosofia e da mística islâmicas, mas também os pontos de contato com o pensamento de Heidegger, cuja leitura foi fundamental para ele”, disse Cromberg à Agência FAPESP.
De especial valor no caso foi o acesso da pesquisadora ao exemplar que pertenceu ao próprio Corbin do livro Sein und Zeit (Ser e Tempo), de Heidegger. Corbin era um grande poliglota, que, além do alemão e de outras línguas ocidentais modernas, dominava também o latim, o grego, o sânscrito, o árabe, o persa (farsi) e o turco. Quando leu Sein und Zeit, ele ficou vivamente impressionado com certos paralelos que descobriu entre conceitos de Heidegger e da mística sufi. E, nas margens do texto alemão, fez significativos comentários em árabe.
O cotejo entre o texto e os comentários oferece pistas importantes para a compreensão de como se configurou o pensamento do filósofo francês. E Cromberg, que também é poliglota, se valeu de seu conhecimento tanto do alemão e do francês quanto do árabe para fazer esse cotejo. “Tive em mãos esse exemplar de Corbin, que atualmente está na biblioteca da École Pratique des Hautes Études, em Paris. Ao traduzir todas as glosas em árabe, constatei que Corbin percebia muitas equivalências entre diversos núcleos dessa obra-chave da filosofia heideggeriana e velhos princípios da mística islâmica”, afirmou.
Fenomenologia e hermenêutica
Segundo a pesquisadora, Corbin estava buscando na filosofia ocidental algum instrumento que lhe permitisse validar as realidades com as quais entrara em contato por meio da mística oriental. E encontrou na fenomenologia do filósofo judeu-alemão Edmund Husserl (1859 – 1938) e na hermenêutica de Heidegger o método que utilizou para acessar o universo da espiritualidade oriental. Além de perceber nelas grandes semelhanças com o tipo de aproximação realizado por filósofos como Avicena e Sohrawardi [o persa Shihab ud-Din Yahya as-Sohrawardi, executado como herege aos 36 anos por pressão de teólogos muçulmanos ultraconservadores].
Para Husserl, a fenomenologia pressupõe um ‘retorno à coisa mesma’, isto é, a percepção de como o fenômeno aparece para a consciência. Assim, o chamado método fenomenológico consiste em colocar entre parênteses todos os pressupostos, todos os pré-conceitos que se possa ter em relação ao fenômeno, para se ater a como ele se mostra naquele instante. Esse procedimento, que Husserl chamou de epoché (“suspensão do juízo”, em grego), possibilitaria a obtenção de um "vislumbre da essência" do fenômeno (Wesensschau, em alemão).
“Se for acessada por meio do método fenomenológico, a espiritualidade oriental, com seus ‘eventos’ visionários e místicos, constitui um objeto de estudo tão real e objetivo quanto qualquer outro”, sublinhou Cromberg.
No seu texto, a pesquisadora citou um elucidativo depoimento do filósofo e escritor iraniano Seyyed Hossein Nasr (nascido em 1933), atualmente professor de Estudos Islâmicos na George Washington University, nos Estados Unidos. Nasr foi amigo pessoal de Corbin e conviveu durante muitos anos com ele na Universidade de Teerã. Ele afirmou que, ao explicar para seus alunos iranianos o que era fenomenologia [termo resultante da junção das palavras gregas phainestain (aparecer) e logos (estudo), isto é, “o estudo daquilo que aparece”], Corbin costumava traduzir o termo ocidental por kash al-mahjub, que, em persa (farsi), significa literalmente “deixar cair o véu para revelar a essência oculta”.
“A ideia da verdade enquanto ‘desvelamento’ (alétheia, em grego) é precisamente um dos principais conceitos da filosofia heideggeriana. Em Heidegger, esse desvelamento, essa retirada dos véus que encobrem a realidade, só pode ocorrer no interior do ente humano, naquilo que o filósofo alemão chamou de Dasein (“Ser-Aí” ou “Ser-no-Mundo”). O ente humano, o Dasein, constituiria a clareira na qual a luz do Ser pode se manifestar”, informou a pesquisadora.
“Dessa forma, também para Heidegger, é no homem e não nas coisas e no mundo – entendido como espaço repleto de objetos – que estaria a verdade do Real. Tanto Heidegger quanto Corbin se recusaram a conceber o ‘mundo’ como algo constituído de um espaço vazio preenchido por objetos, dentre eles os indivíduos, que levariam consigo suas almas ou suas consciências como quem leva um anexo”, prosseguiu.
Encontro com Heidegger
Corbin reuniu-se com Heidegger em Freiburg, na Alemanha, em abril de 1934 e em julho de 1936, enquanto preparava a primeira tradução para o francês de textos do filósofo alemão. Estes foram publicados com o título de Qu'est-ce que la métaphysique? (O que é a metafísica?).
Em uma entrevista radiofônica famosa, Corbin disse que a ideia mais importante que assimilou de Heidegger foi a da hermenêutica como o núcleo mesmo da atividade filosófica. E definiu hermenêutica como a arte ou técnica de compreender, herdada do pensamento grego, e desenvolvida no contexto das três religiões do monoteísmo semita (judaísmo, cristianismo e islamismo) a partir do esforço de interpretação empreendido pelos filósofos judeus, cristãos e muçulmanos para compreender seus respectivos livros canônicos (a Torá judaica, a Bíblia cristã e o Corão islâmico).
“Da busca de compreensão dos livros, evoluiu-se para a busca de compreensão de qualquer fenômeno. E Corbin viu essa busca de compreensão, essa hermenêutica, como o meio de superação de uma enfermidade que ele, a partir de Husserl, chamava de ‘objetivismo’, e que consiste em considerar o mundo como algo dado, e estudá-lo com uma pretensa objetividade, como se o sujeito não estivesse inserido nele”, disse Cromberg.
Conforme a pesquisadora, ao pretender excluir todo elemento subjetivo, considerado espúrio, para chegar à verdade da ‘coisa em si’, o objetivismo teria recalcado o sujeito. A hermenêutica, que Corbin adotou como chave para abrir a porta de acesso ao conhecimento, teria a faculdade de resgatar a subjetividade e aquilo que o filósofo francês chamou de “o mundo da alma”.
“Ao deparar com um objeto, o sujeito será assim um ‘eu’ diante de um ‘tu’; e não um ‘eu’, que finge não estar aí, diante de um ‘isso’. O que é visto deve permanecer vivo enquanto está sendo visto, não pode ser coisificado, reificado, a ponto de que o conhecimento se transforme em necrofilia. A única maneira de mantê-lo vivo é estando vivo, ou seja, estando presente. É precisamente nisso que consiste a hermenêutica”, escreveu Cromberg em sua tese.
”Níveis de compreensão”
Mas há um ponto no qual o pensamento de Corbin se descola de Heidegger. “Tomando a analítica heideggeriana como exemplo, fui levado a ver níveis hermenêuticos que seu programa não havia previsto”, afirmou o filósofo francês. “A existência de ‘níveis de compreensão’, que correspondem a ‘níveis de ser’, é que faz toda a diferença”, explicou Cromberg.
“Para Corbin, não existem apenas ‘distinções horizontais’, maneiras distintas de estar no mundo e de ver o mundo, mas também ‘distinções verticais’, nas quais uma maneira é mais intensa, mais profunda, mais autêntica do que outra. A palavra ‘níveis’ é reveladora de uma hierarquia, de uma visão hierárquica da Realidade”, sublinhou a pesquisadora.
O “processo de individuação” – conceito oriundo da alquimia que Corbin compartilhou com o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875 – 1961), com quem se relacionou pessoalmente – seria uma ascensão nessa escala hierárquica, dos níveis mais baixos aos mais altos, rumo a estágios de consciência cada vez mais intensificados. Porém, ao contrário de Jung, que entendeu tal processo principalmente em termos psicológicos, Corbin, influenciado pela mística sufi, o concebeu de forma mais ampla. Por isso, cunhou a expressão “individuação espiritual”, que englobaria a “individuação psicológica”, mas não se restringiria a ela.
“A individuação em Corbin é o movimento contrário ao da despersonalização, por meio da qual o homem se vê exilado em um mundo, caracterizado como ‘espaço público’, que lhe é cada vez mais alheio. Despersonalizando-se, o homem adquire uma posição central e dominante no planeta, ao mesmo tempo que despovoa o mundo de si mesmo, enquanto individualidade concreta, singular e subjetiva. Ele domina um mundo que já não habita, no sentido próprio do termo. A individuação postulada por Corbin vai na contramão dessa tendência à impessoalidade alienante”, finalizou Cromberg.
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