Estudo conduzido no Instituto de Estudos Brasileiros da USP investigou a contribuição da cena artística para a construção da “paulistanidade” nas primeiras décadas do século 20 (caricatura de Juó Bananère desenhada por Lemmo Lemmi, cujo pseudônimo era Voltolino/Blog da BBM-USP)

Teatro popular teve papel-chave na integração dos imigrantes italianos em São Paulo
29 de abril de 2022

Estudo conduzido no Instituto de Estudos Brasileiros da USP investigou a contribuição da cena artística para a construção da “paulistanidade” nas primeiras décadas do século 20

Teatro popular teve papel-chave na integração dos imigrantes italianos em São Paulo

Estudo conduzido no Instituto de Estudos Brasileiros da USP investigou a contribuição da cena artística para a construção da “paulistanidade” nas primeiras décadas do século 20

29 de abril de 2022

Estudo conduzido no Instituto de Estudos Brasileiros da USP investigou a contribuição da cena artística para a construção da “paulistanidade” nas primeiras décadas do século 20 (caricatura de Juó Bananère desenhada por Lemmo Lemmi, cujo pseudônimo era Voltolino/Blog da BBM-USP)

 

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – A cidade de São Paulo apresentou crescimento populacional explosivo na transição do século 19 para o 20. Em pouco mais de seis décadas, entre 1872 e 1934, a população saltou de aproximadamente 31 mil pessoas para mais de um milhão. A imigração foi o fator decisivo. Em 1920, quase dois terços dos habitantes da capital eram estrangeiros ou descendentes. E mais da metade dos adultos maiores de 15 anos eram italianos. São Paulo tornou-se, depois de Nova York e Buenos Aires, a cidade mais italiana fora da Itália.

Os italianos não só contribuíram para a formação da nascente classe operária e dos movimentos anarquista e comunista, que pretenderam representá-la, como também alteraram profundamente o cotidiano da cidade: sua língua, seus costumes, suas formas de convivência.

Como os recém-chegados foram recebidos pelos antigos habitantes? Que tensões e que compromissos pontuaram o relacionamento dos dois grupos? Como a italianidade contribuiu para a construção de uma paulistanidade?

Um estudo recente, conduzido no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) pela historiadora Virgínia de Almeida Bessa, atualmente professora do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), procurou responder a essas e outras perguntas. E, para isso, seguindo um caminho que ainda não havia sido explorado, investigou o papel do teatro, especialmente do teatro popular, na construção e negociação das identidades na São Paulo da época.

Os resultados foram sistematizados no artigo When the Italians came on the scene: immigration and negotiation of identities in the popular theater of São Paulo in the early twentieth century, publicado como um dos capítulos do livro Italianness and Migration from the Risorgimento to the 1960s, editado por Stéphane Mourlane, professor da Aix-Marseille Université, na França.

“Os viajantes que visitavam São Paulo no período diziam ter a impressão de estarem em uma cidade da Itália, porque tudo parecia ter vindo de lá: a comida, o estilo das moradias e até os anúncios municipais sobre pagamento de impostos, escritos em português e italiano”, diz Bessa.

Um depoimento interessante, mencionado pela pesquisadora, é o da médica e escritora lombarda Gina Lombroso, que visitou São Paulo em 1908 e se surpreendeu com a onipresença italiana na capital: “O caráter mais marcante da cidade é sua italianidade. Se escuta mais falar italiano em São Paulo do que em Turim, Milão ou Nápoles, porque, enquanto entre nós falamos os dialetos, em São Paulo todos os dialetos se fundem sob a influência dos venezianos e toscanos, que são a maioria, e os nativos adotam o italiano como língua oficial”.

A partir da década de 1910, porém, a predominância dos italianos nortistas foi substituída pela dos sulistas, que tiveram seus pontos de origem transferidos do Vêneto, no norte, para a Campânia e Calábria, no sul. “Em decorrência disso, a língua falada pelos imigrantes e descendentes tornou-se um pidgin ítalo-brasileiro, formado pela mistura de vários dialetos sob forte influência do português”, informa Bessa.

A grande maioria desses imigrantes morava nos bairros operários, com concentrações regionais importantes, mas não exclusivas: os calabreses no Bixiga, os napolitanos no Brás, os venezianos no Bom Retiro. “Oriundos de uma Itália recém-unificada, cujo desenvolvimento era marcado por profundas diferenças regionais de caráter econômico, social e cultural, especialmente entre o norte e o sul, esses grupos não compartilhavam inicialmente um sentimento nacional”, escreveu Bessa no artigo em pauta.

E, citando Oswaldo Truzzi, professor titular sênior do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e membro da coordenação da área de Ciências Humanas e Sociais da FAPESP, continuou: “Mais do que procurar por uma suposta identidade italiana trazida pelos imigrantes, seria mais apropriado investigar o processo que levou à construção de uma italianità all’estero [italianidade no exterior]”.

Entre os vários fatores que contribuíram para isso, o teatro desempenhou um papel importante, porém, ambíguo. “No interior da comunidade imigrante, os grupos amadores de teatro reuniam italianos de diversas origens a fim de representar peças em italiano, especialmente de autores ligados ao Risorgimento [Ressurgimento, nome dado ao movimento que resultou na unificação da Itália]. Setenta associações desse tipo chegaram a funcionar ao mesmo tempo todos os finais de semana, promovendo saraus patrióticos. Por outro lado, fora da comunidade imigrante, o teatro contribuiu para divulgar imagens estereotipadas dos italianos, transformados em personagens-tipo caracterizados pela personalidade expansiva e a fala macarrônica”, afirma Bessa.

O veículo mais utilizado na difusão desses estereótipos foi o teatro de revista. Era um gênero bastante popular, que se caracterizava pela sátira aos costumes, às figuras públicas e aos modismos e outros acontecimentos da atualidade. Estruturalmente, consistia em uma sucessão de sketches e de números de canto e de dança, sem ligação necessária entre si, mas amarrados por uma dupla ou trio de personagens, os compères (compadres), que funcionavam como fio condutor.

“Nas revistas ambientadas em São Paulo, que começaram a ser produzidas na última década do século 19, era quase obrigatório que um dos ‘compadres’ fosse um personagem-tipo caipira, morador do interior do Estado de São Paulo, que vinha passar uns dias na capital e ficava embasbacado com a urbanização acelerada da cidade e o grande fluxo imigratório que descaracterizavam o antigo vilarejo colonial. Com o tempo, outro ‘compadre’ da dupla ou trio passou a ser representado pelo personagem-tipo do imigrante italiano”, conta Bessa.

Não foram preservadas fotografias retratando atores caracterizados como italianos. Mas é possível ter uma boa ideia de como esses imigrantes eram representados, por meio das caricaturas publicadas na imprensa da época. A mais famosa delas era a de Juò Bananère (João, Vendedor de Bananas), personagem criado pelo escritor e engenheiro Alexandre Ribeiro Marcondes. Durante quatro anos, Bananère “assinou” uma coluna semanal na revista O Pirralho, na qual comentava, em linguagem macarrônica, acontecimentos políticos cotidianos. A coluna era ilustrada por caricaturas feitas por Voltolino, pseudônimo de Lemmo Lemmi, um descendente de italianos.

O processo de construção de identidades se deu por meio da relação do “italiano” com o “caipira. E Bessa identificou quatro momentos nesse processo, exemplificados por quatro peças levadas à cena em épocas distintas no teatro de revista. Na primeira, “O Boato”, encenada em 1898 por uma companhia carioca, os tipos italianos aparecem como personagens secundários, no papel de vendedores ambulantes em cenas isoladas. A comunicação desses personagens com o “caipira” é bastante ruidosa. A segunda, “Fado e Maxixe”, escrita pelo brasileiro João Phoca e pelo português André Brun e levada ao palco em 1911, já mostra uma certa assimilação da cultura do imigrante: o personagem “caipira” é chamado a cantar um cateretê, gênero musical característico do interior paulista, e acaba fazendo uma miscelânea de quadras populares paulistanas e árias de óperas italianas.

O tipo italiano só aparece pela primeira vez como personagem do trio condutor em 1914, poucos meses antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial, na peça “São Paulo Futuro”. E sua presença, ao lado dos outros dois personagens, “o caipira” e “o soldado”, expressa um momento de relativa tensão. Reclamão, “o italiano” repete o tempo todo o bordão “Ma questo è una porcheria” (Mas isto é uma porcaria), em alusão aos hábitos paulistanos.

Na década de 1930, finalmente, no contexto do confronto da oligarquia paulista com a ditadura de Getúlio Vargas, as diferenças nacionais foram superadas em nome de uma identidade local. Na peça “Civil e Paulista”, que põe em cena um “caipira”, um “italiano” e um “português”, o “italiano” se apresenta como “civil”, em um resgate do discurso da campanha civilista de 1910, e “paulista”, reivindicando sua “paulistanidade”. E os três personagens chegam a um grande acordo.

A revista culmina em uma cena apoteótica em homenagem a Garibaldi, com coristas vestidas de bersaglieri [soldados de infantaria, caracterizados pelo chapéu de abas largas, decorado com plumas negras, que desempenharam papel decisivo no processo de unificação da Itália], tendo ao fundo as bandeiras da Itália, do Brasil e do Estado de São Paulo. “Italianidade, brasilidade e ‘paulistanidade’ se fundem, nesse momento, para dar origem a uma identidade local nova, marcada pelo desejo político de retomada da supremacia de São Paulo”, comenta Bessa.

Segundo a pesquisadora, as quatro peças exemplificam, de maneira singela, mas arguta, o processo de assimilação do imigrante italiano pela cidade de São Paulo. Primeiro, o estranhamento, depois a oposição e finalmente a associação. “O ponto alto dessa associação se daria nos anos 1950, com a figura do compositor, cantor, ator e comediante João Rubinato (1912-1982), consagrado como personagem antológico da cultura ítalo-caipira com o nome artístico de Adoniran Barbosa”, conclui Bessa.

O artigo mencionado nesta reportagem é um dos vários produtos da pesquisa de pós-doutorado “Um palco em disputa: teatro musicado, sociedade e cultura na São Paulo dos anos 1920 e 1930”, realizada por Bessa no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) com apoio da FAPESP. A pesquisadora realizou estágio de pesquisa durante um ano na École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França.

Mais informações sobre o livro Italianness and Migration from the Risorgimento to the 1960s podem ser acessadas em: https://link.springer.com/book/10.1007/978-3-030-88964-7.
 

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