Emília de Godoi (IFCH-Unicamp): "No Baixo Tapajós, não consideramos os moradores meros informantes" (foto: Erika de Faria/Temporal Filmes)
Tema foi desenvolvido pela antropóloga Emília Pietrafesa de Godoi na Escola Interdisciplinar FAPESP 2025: Humanidades, Ciências Sociais e Artes. Ela relatou sua experiência de pesquisa na região da Flona do Tapajós, no Pará
Tema foi desenvolvido pela antropóloga Emília Pietrafesa de Godoi na Escola Interdisciplinar FAPESP 2025: Humanidades, Ciências Sociais e Artes. Ela relatou sua experiência de pesquisa na região da Flona do Tapajós, no Pará
Emília de Godoi (IFCH-Unicamp): "No Baixo Tapajós, não consideramos os moradores meros informantes" (foto: Erika de Faria/Temporal Filmes)
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Na fronteira da monocultura da soja na Amazônia, comunidades comprometidas com a prática de sistemas agrícolas tradicionais (SATs) preservam a memória do passado, sustentam o meio ambiente e mostram um caminho para o futuro. “Esses sistemas desempenham papel fundamental na produção das paisagens e na manutenção da sociobiodiversidade”, afirmou a antropóloga Emília Pietrafesa de Godoi, professora do Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp). Ela apresentou a conferência “Sistemas agrícolas tradicionais como herança cultural e ambiental” na Escola Interdisciplinar FAPESP 2025: Humanidades, Ciências Sociais e Artes.
Godoi desenvolve atualmente, com apoio da FAPESP, pesquisa sobre SATs na região do Baixo Tapajós, no Pará, articulando-os como patrimônio cultural e ambiental. Sua equipe atua principalmente na Floresta Nacional (Flona) do Tapajós e em seu entorno, em comunidades como Jamaraquá, Maguari, São Domingos, Santa Cruz, Revolta e Jatobá da Volta Grande, em sinergia com as organizações das comunidades locais, como as associações agroecológicas de mulheres Amabelas e Flores do Campo. “Desde o início, o desenho do trabalho exigiu a combinação de muitos olhares. Temos antropólogos, economistas, ecólogos, geógrafos, uma pessoa especializada em direito ambiental e pesquisadores da área de biologia. Mas o que estamos fazendo não é só uma pesquisa interdisciplinar. É também uma pesquisa colaborativa entre distintos regimes de conhecimento. Sem a participação das populações locais, é impossível levar adiante o trabalho”, disse.
Um eixo central da proposta é reconhecer os moradores como pesquisadores locais. “Temos falado muito em interlocução entre campos de conhecimento, mas não temos considerado suficientemente a colaboração entre esses distintos regimes. No Baixo Tapajós, não consideramos os moradores meros informantes”, sublinhou Godoi.
“Não chegamos lá dizendo ‘vamos fazer isso ou aquilo’. Antes de iniciar as atividades, visitamos cada comunidade para apresentar o projeto e ouvir as demandas. A partir dessas conversas, foram estruturadas oficinas com temas de interesse dos moradores, como associativismo. Além das oficinas, organizamos intercâmbios entre as comunidades e entre os moradores e pesquisadores universitários. Encontros em Santarém, Campinas e na Universidade Federal do Oeste do Pará [Ufopa] colocaram ribeirinhos, quilombolas, produtores agroecológicos e acadêmicos na mesma roda de conversa. Estamos agora elaborando um livro, com contribuições de cada participante. Esse processo reforça uma demanda que vem crescendo entre indígenas e comunidades tradicionais: serem reconhecidos como coautores.”
O ponto de partida conceitual da conferência foi o reconhecimento dos SATs como patrimônios. No Brasil, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) já reconheceu, por exemplo, os SATs de populações indígenas do Rio Negro e de comunidades quilombolas do Vale do Ribeira como patrimônio cultural. A região estudada por Godoi ainda não foi patrimonializada. “Em nosso caso, eles estão profundamente ligados às chamadas ‘terras pretas de índios’, que aportam uma dimensão temporal profunda, como remanescentes de sociedades pré-coloniais”, explicou Godoi.
"Memória da terra" e "memória na terra"
Enquanto a arqueologia “olha para baixo”, escavando as formações de terras pretas para desenterrar fragmentos de cerâmicas e outros vestígios das populações ancestrais, como relatou Eduardo Neves em sua conferência na Escola Interdisciplinar FAPESP 2025, a antropologia “olha para cima”, para ver o que as populações atuais fazem com essas terras. “Grande parte dos SATs na região da Flona e do entorno se faz nas terras pretas, porque estas são extremamente férteis. E, quando falam de suas vidas, as pessoas com quem trabalho contam histórias com a terra”, sublinhou.
Daí a complementaridade, proposta por Godoi, entre a “memória da terra” – isto é, a memória que a terra guarda, revelada por fragmentos cerâmicos, antigos poços, aterros, montículos – e “memória na terra” – inscrita por cultivos, sítios e roças manejadas por gerações de famílias. “Quando estamos com os moradores locais, somos convidados a visitar lugares onde a terra guarda uma memória secular. Eles reconhecem que, ali, estiveram outras populações e desenrolaram-se outras histórias de vida”, conta a pesquisadora.
Outra dimensão fundamental dos SATs é a das micropaisagens domésticas: hortas, jiraus, canteiros de plantas medicinais, jardins com espécies ornamentais, cercados por árvores frutíferas ao redor da casa. “É uma paisagem feminina, porque manejada principalmente por mulheres, mesmo que os homens também trabalhem nela. Uma interlocutora local resumiu a potência desse universo dizendo que a família tinha uma ‘farmácia viva’ no sítio”, lembrou Godoi.
Os SATs trazem também a ideia de uma cadeia intergeracional no manejo da terra e na produção da paisagem. A roça que está sendo trabalhada agora foi plantada pelo pai ou pelo avô e deverá ser transmitida, como legado, ao filho e ao neto. “O entendimento dos mais velhos sobre os pomares é o de que eles expressam uma cadeia alimentar intergeracional de longa duração. O cacau e o teperebá [cajá] que hoje se come ou se bebe em forma de suco provêm do mesmo pé que alimentou o avô e que deverá ser deixado para o neto. Um agricultor de São Domingos foi questionado pelos vizinhos: por que plantar árvores frutíferas se ‘não tinha para quem deixar’? A resposta veio quando nasceu seu neto, Benjamin. Ele me disse, feliz, que agora plantava para o Benjamin”, comentou Godoi.
A relação não utilitária explica também o regresso daqueles que partem, em busca de melhores condições de vida. “Histórias de migração e retorno também são incorporadas à terra. Um morador de Jamaraquá, o senhor Edson, passou 20 anos em Manaus e voltou em 2015. Ele me disse: ‘Chegou um dia de voltar para a raiz. Essa raiz, essa vontade, esse conhecimento eu não perdi. Estou recuperando o que meu pai fez’. E desenhou na terra sua roça, explicando: ‘Uma parte para colher em seis meses, outra para um ano, e no meio as frutíferas. No mesmo modelo que meu pai deixou para nós’”, observou Godoi.
A floresta e as roças formam um contínuo: a mata fornece alimentos, mudas e sementes comestíveis, fibras e outras sementes para o artesanato, enquanto as roças mantêm uma combinação de cultivos de ciclos curto, médio e longo. “Os ribeirinhos advertem: ‘Nossa roça é para ter o que comer e vender nas feiras’. As famílias participam em alguma medida do mercado, vendendo em feiras locais, em Santarém e Alter do Chão, ou atendendo políticas públicas de compra de alimentos, mas preservam áreas de produção voltadas prioritariamente para autoconsumo e troca, baseadas na reciprocidade”, explica Godoi.
Ameaças
Toda essa paisagem sociobiodiversa vem sendo ameaçada pela monocultura da soja, que avança inclusive sobre áreas próximas à Flona e ao longo da BR-163. “As pessoas afirmam que a terra está cercada de ‘sojeiros’. A mosca-branca que ataca as plantas – melancias, por exemplo – é associada à soja pelos agricultores. Quando há pulverização de agrotóxicos, o veneno, espalhado pelo vento, afeta as pessoas, os animais e as plantas”, relata Godoi.
Mesmo dentro da Flona, área formalmente protegida, as comunidades percebem alterações profundas. “Eles dizem que, antes, as árvores tinham o tempo certo de produção e recuperação; agora está tudo variado. As mangueiras produzem menos e as mangas caem do pé antes de amadurecer”, diz a pesquisadora.
Outro exemplo mostrado pela pesquisadora: a foto de uma castanheira solitária cercada por um campo de soja, nas cercanias da comunidade Revolta. “A castanheira é a árvore-símbolo do Pará e espécie-chave dos sistemas florestais amazônicos. Sabemos, por estudos ecológicos, que ela depende de polinização cruzada. Uma árvore isolada dificilmente produz frutos. Precisa de plantas companheiras e de polinizadores, como as abelhas grandes, também afetadas pelos agrotóxicos. A árvore está lá, porque a castanheira é protegida pela lei, mas seu ciclo de vida foi completamente alterado. A literatura mostra que a distribuição, o adensamento e o rejuvenescimento das populações de castanheiras são favorecidos pela relação de longa duração com as populações humanas amazônicas.”
O projeto também passou a incorporar análises laboratoriais sobre contaminação por agrotóxicos. Em sua última ida ao campo, a pesquisadora voltou com um cooler cheio de amostras de terra das roças, igarapés e mel de abelha. “Levei tudo para o laboratório de química analítica da Unicamp, e estamos comprando, com o apoio da FAPESP, os reagentes para fazer a análise de glifosato”, contou.
Para a antropóloga, este é um exemplo emblemático da colaboração entre diferentes campos da ciência e entre diferentes regimes de conhecimento. “Há certos problemas impossíveis de serem tratados sem essa interlocução entre vários campos da ciência, sem reconhecer que as populações locais são produtoras de conhecimento e guardiãs de um patrimônio ambiental e cultural que vai muito além dos nossos indicadores convencionais”, concluiu.
A Agência FAPESP licencia notícias via Creative Commons (CC-BY-NC-ND) para que possam ser republicadas gratuitamente e de forma simples por outros veículos digitais ou impressos. A Agência FAPESP deve ser creditada como a fonte do conteúdo que está sendo republicado e o nome do repórter (quando houver) deve ser atribuído. O uso do botão HMTL abaixo permite o atendimento a essas normas, detalhadas na Política de Republicação Digital FAPESP.