Peneirando o passado: ao se degradar com a ação do tempo, as conchas que constituem os sambaquis liberam carbonato de cálcio (calcita), que permite a conservação de restos orgânicos de animais e plantas presentes no sítio arqueológico (foto: Bárbara Valle)

Arqueologia
Sambaquis revelam transformações na biodiversidade e na alimentação dos povos da Amazônia
17 de outubro de 2025

Missão arqueológica franco-brasileira conduz estudo de monumentos de conchas e terra no Baixo Amazonas; achados iniciais foram apresentados durante o Fórum Brasil-França “Florestas, Biodiversidade e Sociedades Humanas”

Arqueologia
Sambaquis revelam transformações na biodiversidade e na alimentação dos povos da Amazônia

Missão arqueológica franco-brasileira conduz estudo de monumentos de conchas e terra no Baixo Amazonas; achados iniciais foram apresentados durante o Fórum Brasil-França “Florestas, Biodiversidade e Sociedades Humanas”

17 de outubro de 2025

Peneirando o passado: ao se degradar com a ação do tempo, as conchas que constituem os sambaquis liberam carbonato de cálcio (calcita), que permite a conservação de restos orgânicos de animais e plantas presentes no sítio arqueológico (foto: Bárbara Valle)

 

Elton Alisson | Agência FAPESP – Nos últimos anos têm sido identificados na Amazônia monumentos de conchas e terra, construídos há milhares de anos por populações indígenas coletoras e pescadoras. Ao escavar e estudar esses sítios arqueológicos, conhecidos como sambaquis, pesquisadores brasileiros e franceses têm encontrado vestígios das transformações na biodiversidade e nas práticas alimentares dos povos que ocuparam a floresta.

Alguns achados iniciais da missão arqueológica franco-brasileira, liderada por pesquisadores vinculados ao Museu Nacional de História Natural (MNHN) da França, em Paris, foram apresentados durante o Fórum Brasil-França “Florestas, Biodiversidade e Sociedades Humanas”, que ocorreu entre os dias 1º e 2 de outubro, no auditório da FAPESP.

Organizado pelo MNHN, em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e a FAPESP, o evento teve como objetivo discutir a biodiversidade florestal, os ecossistemas e suas relações com as sociedades humanas, do passado e do presente.

“Normalmente, os sambaquis são locais de memória, que foram visitados, reconstruídos e reocupados ao longo de milhares de anos, desde cerca de 3 mil anos atrás. Essa longa duração de ocupação nos permite estudar as transformações ao longo do tempo na biodiversidade e nas práticas alimentares dos povos originários que viviam no entorno deles”, disse à Agência FAPESP Gabriela Prestes Carneiro, pesquisadora do MNHN e coordenadora do projeto. A arqueóloga é uma das pesquisadoras associadas a um projeto financiado pela FAPESP sobre povos indígenas e o meio ambiente na Amazônia antiga que revelou que o bioma foi densamente povoado no passado e que a ação humana moldou a floresta existente hoje (leia mais em: agencia.fapesp.br/39387).


Gabriela Prestes Carneiro, pesquisadora do Museu Nacional de História Natural da França, durante o Fórum Brasil-França, na FAPESP: sambaquis são locais de memória que foram visitados, reconstruídos e reocupados desde cerca de 3 mil anos atrás (foto: Daniel Antônio/Agência FAPESP)

De acordo com Carneiro, os sambaquis mais conhecidos no Brasil estão localizados predominantemente em áreas litorâneas, especialmente no Sul e no Sudeste, mas também são encontrados em outras regiões do país, como no Vale do Ribeira (situado no sul do Estado de São Paulo e no leste do Estado do Paraná), além de em outras partes do mundo.

Mais recentemente, sambaquis também começaram a ser identificados na Amazônia, em locais como o litoral do Salgado, na foz do rio Amazonas, além do sudoeste e do Baixo Amazonas – esta última, na porção mais baixa do rio, na região de integração do Estado do Pará.

Por meio de um projeto apoiado inicialmente pelo Instituto Serrapilheira e, atualmente, pelo Ministério da Europa e dos Negócios Estrangeiros (órgão responsável pelas relações exteriores da França), Carneiro e um grupo de pesquisadores brasileiros iniciaram um estudo de sambaquis no sítio arqueológico do Munguba, localizado em uma área de várzea entre os rios Tapajós e Xingu.

“Esse sítio arqueológico foi descoberto por um pescador e, desde 2022, começamos a estabelecer contato com as famílias que vivem no entorno dele. As primeiras datações daqueles sambaquis remontam a cerca de 3.500 anos, e ainda não está claro quais eram suas funções. Alguns são cemitérios e outros, locais de morada”, disse Carneiro.

As dimensões dos sambaquis no Baixo Amazonas também são bastante distintas: alguns estão a poucos centímetros e outros a um ou dois metros acima do nível da água, descreveu a pesquisadora.

“Não conhecemos muito bem esses sítios, mas o que sabemos por meio das primeiras datações é que eles tiveram ocupação contínua ao longo do tempo e que foram construídos principalmente com conchas. Provavelmente, as conchas eram fonte de alimento, mas também foram utilizadas como recurso para a construção desses monumentos”, afirmou Carneiro.

Reconstituição da microfauna

Ao se degradar com a ação do tempo, as conchas que constituem os sambaquis liberam carbonato de cálcio. O composto químico, conhecido popularmente como calcita, permite a conservação de restos orgânicos de animais e plantas também presentes no sítio arqueológico, explicou a pesquisadora.

“Isso permite que a gente possa estudar sementes, grãos, escamas de peixes e restos de anfíbios, serpentes, mamíferos, morcegos e roedores presentes nos sedimentos. A análise dessa microfauna no sítio arqueológico possibilita termos uma ideia sobre a transformação daquele ambiente ao longo do tempo”, disse Carneiro.

Alguns vestígios de alimentos consumidos no passado identificados pelos pesquisadores nos sambaquis do Baixo Amazonas foram de diversas espécies de moluscos, atualmente não consumidas. Um deles é o uruá (Sultana sultana), que era consumido após ser picado e cozido e utilizado no preparo de farinha pelas populações tradicionais.

“Identificamos várias espécies de moluscos, muitos deles não consumidos atualmente. Mas, ao conversar com as populações tradicionais da região do Baixo Amazonas, muitas delas ainda se recordam dessas espécies”, disse Carneiro.

Os pesquisadores também encontraram, pela primeira vez em um sítio arqueológico, mandíbula e vértebras de peixe-boi (Trichechus), cujos relatos de consumo da carne na região são bastante recentes.

Outros restos de animais encontrados pelos pesquisadores foram de espécies de peixes conhecidas como bacus-pedra (Oxydoras niger e Doradidae) e tamoatá (Hoplosternum littorale). Em comum, essas espécies de peixes têm muitas espinhas.

“Hoje, raramente encontramos essas espécies nos mercados de peixes da região, mas nos sítios arqueológicos elas estão muito presentes”, afirmou Carneiro.

Reintrodução de práticas alimentares

Segundo a arqueóloga, que é responsável pela coleção de peixes do MNHN, em razão de transformações sociais e ambientais, muitas das práticas alimentares dos povos tradicionais da Amazônia têm passado por mudanças, como a substituição da carne de peixe pela de frango congelado e por alimentos industrializados.

Por meio de dados obtidos de estudos arqueológicos como o que estão conduzindo no Baixo Amazonas, pesquisadores de outras áreas, como da etnobiologia (o estudo da dinâmica das relações entre as pessoas e a biota) e da nutrição, têm desenvolvido projetos com o intuito de promover a reintrodução de plantas consumidas no passado na merenda escolar de escolas públicas no município de Tefé, no Amazonas, por exemplo.

“Podemos utilizar esses dados para tentar reintroduzir não só alimentos, mas também práticas alimentares do passado no presente”, avaliou.

Os pesquisadores, contudo, têm corrido contra o tempo, uma vez que os sítios arqueológicos onde realizam escavações têm sido ameaçados pela passagem de navios cargueiros, transportando principalmente soja, muito próximos às margens do rio onde estão localizados os sambaquis.

“A passagem desses navios também acaba destruindo os materiais dos pescadores ribeirinhos que colocam suas armadilhas próximas desses sítios arqueológicos”, contou a pesquisadora.
 

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