Posição de destaque do Brasil na pesquisa e no tratamento do câncer deve muito ao professor Brentani, destacam cientistas no primeiro aniversário da morte do professor emérito da FMUSP e ex-diretor-presidente do CTA da FAPESP

Ricardo Brentani: legado para o futuro
29 de novembro de 2012

Posição de destaque do Brasil na pesquisa e no tratamento do câncer deve muito ao professor Brentani, destacam cientistas no primeiro aniversário da morte do professor emérito da FMUSP e ex-diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP

Ricardo Brentani: legado para o futuro

Posição de destaque do Brasil na pesquisa e no tratamento do câncer deve muito ao professor Brentani, destacam cientistas no primeiro aniversário da morte do professor emérito da FMUSP e ex-diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP

29 de novembro de 2012

Posição de destaque do Brasil na pesquisa e no tratamento do câncer deve muito ao professor Brentani, destacam cientistas no primeiro aniversário da morte do professor emérito da FMUSP e ex-diretor-presidente do CTA da FAPESP

 

Por José Tadeu Arantes

Agência FAPESP – Há um ano, quando os calendários registravam a data de 29 de novembro de 2011, o cientista Ricardo Renzo Brentani (1937-2011) viveu, como de hábito, um dia extremamente ativo e criativo, dialogando com colaboradores, respondendo a múltiplas solicitações profissionais e idealizando novos projetos de pesquisa.

Naquela noite, enquanto se vestia para jantar com a esposa, a química Maria Mitzi Brentani, e um casal de notáveis ex-alunos, Renata Pasqualini e Wadih Arap, ambos atuando no Centro de Câncer M.D. Anderson da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, um infarto, tal qual um raio inesperado em céu azul, interrompeu aos 74 anos sua luminosa trajetória.

Professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e detentor de numerosos prêmios e condecorações, Brentani acumulava, na ocasião, as funções de diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP, presidente da Fundação Antônio Prudente, que mantém o Hospital A.C. Camargo, e coordenador do Centro Antonio Prudente para Pesquisa e Tratamento do Câncer, um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP. Fora, anteriormente, diretor do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer.

Nascido em 21 de julho de 1937, em Trieste, Itália, filho de Segismundo e Gerda Brentani, concluiu o curso secundário no Instituto Mackenzie em 1955, graduou-se pela FMUSP em 1962 e doutorou-se pela FMUSP em 1966, tendo como orientador Isaias Raw. Deixou quatro filhos e 10 netos.

Com mais de 300 artigos científicos publicados em periódicos de alto impacto, entre eles as revistas Nature e Science, Brentani era referência mundial no estudo do câncer.

Com um talento único para compartilhar ideias, formar pesquisadores e encaminhar a pessoa certa para o lugar certo, deixou atrás de si toda uma geração de cientistas excepcionais, reunidos em vários grupos de trabalho, nas áreas de epidemiologia, imunologia, biologia celular, genética e genômica do câncer, bioinformática, neurobiologia, patologia molecular e pesquisa clínica. E é esse um de seus maiores legados.

“Conversar com Brentani era prazeroso como um passeio no parque”, lembra, com saudade, um desses herdeiros, o médico e bioquímico Roger Chammas, que o substituiu como professor titular de Oncologia na Faculdade de Medicina da USP.

É difícil confinar em palavras uma personalidade tão inquieta e polivalente como a de Ricardo Brentani. Era famoso pela linguagem franca e as tiradas inteligentes com que pontuava sua ágil conversação. Mas, para além do senso de humor e das frases espirituosas, havia o visionário, capaz de vislumbrar, na mais tênue pista, a possibilidade de avanço do conhecimento científico.

Havia também o líder, capaz de mobilizar talentos e amealhar recursos para transformar aquela remota possibilidade em realidade concreta, e cumprir todo o ciclo que vai da pesquisa básica à aplicação e da ciência médica à arte de atender bem o paciente.

E havia ainda o estrategista, capaz de ver o processo científico em seu conjunto, definir prioridades e formular políticas, como bem demonstrou em seu trabalho na FAPESP.

“Como diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo, Brentani deu uma contribuição inestimável à FAPESP”, disse Celso Lafer, presidente da Fundação.

“E isso porque ele trouxe para a FAPESP duas de suas características mais notáveis: a do grande pesquisador, com reconhecida originalidade em sua área de atuação; e a do grande administrador, com um histórico de sucesso à frente do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, do Hospital A.C. Camargo e da disciplina de Oncologia na Faculdade de Medicina da USP”, disse.

“Além disso, possuía uma personalidade marcante. Conviver e conversar com ele era uma experiência fascinante. Qualquer que fosse o tema, ele sempre acrescentava algo novo, iluminando um ângulo diferente ou fazendo um comentário peculiar”, disse Lafer.

Novo sequenciador

Emmanuel Dias-Neto, chefe do Laboratório de Genômica Médica do Centro de Pesquisas do Hospital A.C. Camargo, destaca a faceta empreendedora da personalidade multifacetada de Brentani.

“Há um ano, exatamente na data em que o professor faleceu, passamos o dia inteiro juntos, discutindo novos projetos. Seu grande interesse era transformar a capacidade de ler o genoma em benefício direto para o paciente”, disse.

“Todas as manifestações de câncer estão associadas a alterações no DNA. E a perspectiva de utilizar as informações presentes no genoma para a prevenção ou o tratamento era uma promessa que acalentávamos há 15 anos. Os grandes obstáculos eram o tempo excessivamente longo demandado pelo sequenciamento e o custo elevadíssimo do processo. Mas sabíamos que o desenvolvimento tecnológico iria encurtar o tempo e baratear o custo”, disse Dias-Neto.

“Naquela data, então, o professor Brentani estava animadíssimo, pois havia obtido o financiamento para a aquisição de um novo sequenciador, único em toda a América Latina, capaz de fazer em 4 horas um trabalho que antes durava anos e de reduzir o custo desse trabalho de US$ 5 bilhões para US$ 2 ou 3 mil. Exatamente um ano depois, esse sequenciador está sendo instalado em nosso laboratório”, disse.

Segundo Dias-Neto, dentre as muitas realizações de Brentani, esta é uma que gostaria de destacar. “Com esse equipamento, será possível colocar a genômica diretamente a serviço do paciente. Já não é mais apenas a pesquisa pioneira, mas sua aplicação, em escalas de tempo e de custo perfeitamente viáveis. Estamos falando do sequenciamento do genoma completo de uma pessoa. Se quisermos sequenciar um único gene, o tempo e o custo serão muitíssimo menores”, destacou.

Primeira cadeira de Oncologia

É instigante saber que essa nova facilidade no atendimento médico teve como ponto de partida o projeto de sequenciamento genético da bactéria Xylella fastidiosa, cofinanciado pela FAPESP.

O projeto do sequenciamento da Xylella, concluído em novembro de 1999, reuniu 35 laboratórios e quase 200 pesquisadores. Nele, o laboratório agora chefiado por Dias-Neto desempenhou um papel de coordenação fundamental.

“Um laboratório voltado para a pesquisa e o tratamento do câncer humano inteiramente envolvido no sequenciamento genético de uma bactéria que causava doença em frutas cítricas: era preciso alguém com a visão de conjunto de Brentani para ligar uma ponta à outra e entender o alcance de uma iniciativa como essa”, disse Dias-Neto.

Pois o que ocorreu, graças àquele projeto pioneiro e aos que se seguiram, foi a criação de uma comunidade de pesquisadores altamente qualificada, uma comunidade que, hoje, é capaz de colocar a genômica a serviço do paciente, não apenas na prevenção e tratamento do câncer, mas em muitas outras áreas também.

É possível quantificar, ao menos parcialmente, essa comunidade. “São mais de 400 os mestres e doutores especializados em câncer formados na USP ou na Fundação Antonio Prudente e os estudos na área correspondem a aproximadamente 8% dos projetos financiados pela FAPESP”, disse Chammas.

Claro que formidável recurso não se deve somente à atuação de Brentani. Outros deram e continuam dando contribuições fundamentais. Mas ele foi o pioneiro.

“Ao ocupar, em 1981, a primeira cadeira de Oncologia em uma universidade brasileira, Brentani inaugurou e institucionalizou uma área. Na USP, além da graduação, a disciplina foi muito importante na construção do programa de pós-graduação. E, somada ao trabalho desenvolvido por ele no Instituto Ludwig e no A.C. Camargo, produziu a massa crítica que faz com que, hoje, o Brasil ocupe uma posição de destaque na pesquisa e tratamento do câncer”, disse.

Generosidade intelectual

Para além de qualquer consideração menor sobre competitividade internacional, essa massa crítica reveste-se de uma enorme importância social, pois, em função do envelhecimento da população e da exitosa diminuição da taxa de mortalidade causada por acidentes vasculares, a previsão é que o câncer venha a constituir, na década de 2020, a principal causa de mortes no país.

Essa integração da pesquisa básica com a prática clínica também é enfatizada por Fernando Augusto Soares, diretor do Departamento de Anatomia Patológica do A. C. Camargo, presidente da Comissão de Pós-Graduação da mesma instituição e atual coordenador do CEPID Antonio Prudente para Pesquisa e Tratamento do Câncer.

“Do meu ponto de vista, esse foi o maior legado do professor Brentani. Nesse, como em outros aspectos, ele foi um visionário, transformando o A.C. Camargo em um hospital capaz de produzir ciência e de aplicar o conhecimento científico produzido no atendimento dos pacientes”, disse.

“Isso foi algo absolutamente pioneiro no Brasil: dotar um hospital privado de estrutura de pesquisa, com cursos de pós-graduação stricto sensu reconhecidos, com pesquisadores em seu corpo funcional. Brentani inaugurou, no fim dos anos 1990, um caminho que seria seguido, depois, por outros grandes hospitais brasileiros. Pesquisas inovadoras sobre o câncer de cabeça e pescoço, sobre o câncer de predisposição familial (que corresponde a 10% dos casos) e outras geraram procedimentos de rotina no hospital”, disse.

“Como pesquisador, sua última grande contribuição se deu no entendimento do mecanismo da metástase, do metabolismo da célula tumoral. Seu derradeiro artigo científico sobre o assunto, produzido coletivamente, foi publicado post-mortem, no início de 2012. Mas sua atuação ultrapassava em muito o âmbito da pesquisa pontual. Nos últimos anos, ele havia se transformado em um grande mentor, acolhendo, enriquecendo e encaminhando as ideias que vários pesquisadores lhe apresentavam. Todos os dias, discutíamos algum projeto novo”, disse Soares.

Soares elogia a extrema generosidade intelectual de Brentani. “Seu privilegiado intelecto era um campo fértil de ideias, e ele as entregava, com total desapego, aos que poderiam levá-las adiante. O importante era fazer a roda do conhecimento girar, em benefício da humanidade. Graças a essa capacidade de transmitir ideias e delegar responsabilidades, numerosos pesquisadores se projetaram na cena científica nacional e internacional”, disse.

Posição de destaque

Luisa Lina Villa, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, chefe do laboratório de Biologia Molecular do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) e coordenadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do HPV (Vírus do Papiloma Humano), é uma das herdeiras intelectuais de Brentani.

“Tinha acabado de terminar o doutorado no Departamento de Bioquímica da USP quando o conheci. Brentani encontrou meu primeiro mentor, Sérgio Olavo Pinto da Costa, e disse: ‘Estou procurando alguém para me ajudar em uma coisa que está começando, a engenharia genética’. O Sérgio respondeu: ‘Eu tenho uma pessoa que não soltaria por nada deste mundo. Mas, hoje, não posso oferecer um cargo a ela. Por isso, ela está graciosamente no meu laboratório’”, disse.

“Então, o Brentani me chamou para trabalhar no Laboratório de Oncologia Experimental da FMUSP. Três anos depois, foi fundado o Instituto Ludwig e ele me levou para lá. Tivemos uma história de sucesso. O papel dele foi fundamental para mim e para centenas de outros pesquisadores no país.”

Ela se emociona ao recordar. “O legado de Brentani ultrapassa o que a maioria de nós, muito menores, é capaz de realizar. Ele foi além da pesquisa: formou pessoas, mudou a visão da ciência brasileira, contribuiu decisivamente para que o Brasil conquistasse uma posição de destaque no cenário científico internacional”, disse.

“Estou falando de uma atuação que se estendeu por mais de 40 anos. O notável é que fez tudo isso de forma muito discreta. Nunca se prevaleceu da autoridade ou quis aparecer. Mas interagiu com tantas pessoas, e em tantos níveis, que modificou a ciência brasileira. Não tenho dúvidas de que foram suas conversas de final de tarde, sua participação nos colegiados, seu trabalho na FAPESP que propiciaram essa mudança. Claro que houve a contribuição de muitos outros. Mas ele trouxe algo mais: a preocupação com a pesquisa ética, com a pesquisa de qualidade, com a pesquisa inovadora, capaz de superar a visão rotineira”, disse Villa.

Esse carisma, que fazia de Brentani uma ave rara, era algo que se manifestava não apenas no âmbito estrito da atividade científica, mas nas múltiplas instâncias da vida.

Pesquisa sobre o príon

Liana Moraes, convidada por Brentani para assumir a presidência da Rede Voluntária do A.C. Camargo e hoje integrante da Diretoria Executiva da instituição, afirma com conhecimento de causa: “Ele foi um mestre para mim”.

“Além da retidão de caráter e da extrema capacidade, estava sempre disponível para ajudar os outros. Era firme no comando. Não admitia nenhum tipo de desvio, nem passava a mão na cabeça da incompetência. Mas quem precisasse de orientação ou de apoio em alguma situação difícil tinha certeza de poder contar com ele. Por mais ocupado que se encontrasse, recebia a pessoa em sua sala e dedicava a ela toda a atenção. Além disso, tinha um extraordinário senso de humor. Acho mesmo que o senso de humor era sua melhor qualidade. Com ela, era capaz de responder às questões mais desafiadoras com sabedoria”, disse.

Moraes descreve um homem sentimental, que se emocionava ao falar da esposa, dos filhos e dos netos. “Ele tinha uma devoção pela esposa, a Mitzi, que poucas vezes vi igual. Mas não misturava família com trabalho, nem colocava seus interesses pessoais acima dos interesses da instituição”, disse.

“Viajamos juntos ao exterior como representantes do A.C. Camargo e, a cada viagem, eu ficava admirada com a reverência com que ele era recebido nos maiores centros científicos. Nós, que nos acostumamos a tratá-lo com informalidade, não tínhamos ideia do reconhecimento e do prestígio que ele possuía no exterior”, disse.

Tal prestígio era fruto de uma sólida carreira científica. Um exemplo é o estudo sobre o príon, uma de suas grandes contribuições à ciência. Essa proteína, produzida pelo organismo, despertou o interesse de Brentani há cerca de 15 anos, em uma época em que poucos pesquisadores davam atenção ao assunto e havia muitas ideias equivocadas a respeito.

Graças ao trabalho realizado por ele e colaboradores, como a bioquímica Vilma Martins e o biólogo Sandro de Souza, na época no Instituto Ludwig, e pelo bioquímico Vivaldo Moura Neto, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sabe-se hoje que o príon celular controla e organiza a passagem de informações do meio externo para o interior das células – uma função absolutamente fundamental.

O potencial dos estudos sobre o príon e temas correlatos, aos quais se somaram, como parceiros, pesquisadores como Rafael Linden, da UFRJ, e Iván Izquierdo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, encontra-se longe do esgotamento.

As pesquisas evidenciaram que a atuação dessa proteína está associada não apenas ao mecanismo de doenças raras, como as encefalopatias espongiformes, mas também à formação da memória, à resposta do sistema imunológico às inflamações e à reação das células cardíacas à agressão química.

E – o que é ainda mais promissor em termos de resultados para a saúde pública – pode ser uma peça fundamental no quebra-cabeça da doença de Alzheimer, que atinge uma em cada três pessoas com mais de 85 anos de idade.

Não fosse por outros motivos, bastaria a vereda do príon para fazer com que, um ano após sua morte, falar de Brentani não seja falar do passado, mas do futuro.
 

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