Na região do médio Araguaia, no Mato Grosso, índios da etnia tapirapé deixam na língua portuguesa as marcas da cosmologia do povo hoje restrito a apenas 560 indivíduos
Na região do médio Araguaia, no Mato Grosso, índios da etnia tapirapé deixam na língua portuguesa as marcas da cosmologia do povo hoje restrito a apenas 560 indivíduos
Agência FAPESP - "Meu amigo Fernando Henrique, estou escrevendo para você organizar a área indígena." Tal intimidade com o ex-presidente da República foi manifestada por uma menina tapirapé, de 13 anos, incentivada pela professora de português a relatar em uma carta-denúncia as dificuldades enfrentadas pelo seu povo.
Trazer o interlocutor para perto e tratá-lo com proximidade é característica da oralidade dos índios tapirapé. "Na linguagem deles não existem formas de tratamento específicas para autoridades. O respeito aos índios mais velhos e sábios é mostrado por atitudes cotidianas", disse Maria Gorete Neto, lingüista do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL/Unicamp), à Agência FAPESP.
Três anos morando em aldeias na região do médio Araguaia, no Mato Grosso, deram à pesquisadora empirismo para reconhecer a influência da língua tapirapé no português usado pelos índios. A experiência de lecionar o idioma oficial brasileiro aos habitantes mais antigos do país acabou incentivando a dissertação de mestrado Construindo interpretações para entrelinhas: cosmologia e identidade étnica nos textos escritos em Português, como segunda língua, por alunos indígenas tapirapés, defendida em fevereiro de 2005.
Maria Gorete analisou 30 textos de alunos de 5ª a 8ª séries do ensino fundamental. Nas cartas, redações e bilhetes os jovens apresentavam um jeito próprio de se manifestar na segunda língua. Questões aparentemente estilísticas se mostraram recorrentes nos textos, levando a pesquisadora a identificar o "jeito tapirapé de falar português". "Percebemos a resistência ao colonizador feita de forma estratégica e muito sutil", explica.
Na gramática desse povo, a mobilidade sintática é muito flexível. O adjetivo pode vir no início da frase e o sujeito no fim. O sujeito e objeto são colocados antes ou depois do verbo. Mas todos se entendem. Partículas presentes na língua indígena permitem a um tapirapé dizer algo do tipo "a menina mordeu o cachorro", sem risco de o interlocutor pensar que o cão de fato foi ferido.
As marcas da língua-mãe e o modo de ver o mundo sempre aparecem na fala de quem aprende um segundo idioma. No caso dos tapirapés, os temas preferidos são a abundância de comida, suas crenças e, principalmente, a alegria. Segundo a pesquisadora, a alegria é o mote da vida da etnia e está associada ao estar junto e partilhar.
Entre os habitantes das duas últimas aldeias, uma nas proximidades da cidade de Santa Teresinha e outra em Confresa, ambas no Mato Grosso, não se nega um pedido feito por uma pessoa próxima. Conduta também refletida nos textos dos alunos da professora Gorete.
Quanto à menina que escreveu ao presidente, pedindo que ele ajudasse nas questões de sua terra, ela se apresentou ao governante com a mesma intimidade que lidaria com um dos últimos 560 remanescentes de sua etnia.
A Agência FAPESP licencia notícias via Creative Commons (CC-BY-NC-ND) para que possam ser republicadas gratuitamente e de forma simples por outros veículos digitais ou impressos. A Agência FAPESP deve ser creditada como a fonte do conteúdo que está sendo republicado e o nome do repórter (quando houver) deve ser atribuído. O uso do botão HMTL abaixo permite o atendimento a essas normas, detalhadas na Política de Republicação Digital FAPESP.