Português revisto
09 de setembro de 2005

Na região do médio Araguaia, no Mato Grosso, índios da etnia tapirapé deixam na língua portuguesa as marcas da cosmologia do povo hoje restrito a apenas 560 indivíduos

Português revisto

Na região do médio Araguaia, no Mato Grosso, índios da etnia tapirapé deixam na língua portuguesa as marcas da cosmologia do povo hoje restrito a apenas 560 indivíduos

09 de setembro de 2005

 

Por Karin Fusaro

Agência FAPESP - "Meu amigo Fernando Henrique, estou escrevendo para você organizar a área indígena." Tal intimidade com o ex-presidente da República foi manifestada por uma menina tapirapé, de 13 anos, incentivada pela professora de português a relatar em uma carta-denúncia as dificuldades enfrentadas pelo seu povo.

Trazer o interlocutor para perto e tratá-lo com proximidade é característica da oralidade dos índios tapirapé. "Na linguagem deles não existem formas de tratamento específicas para autoridades. O respeito aos índios mais velhos e sábios é mostrado por atitudes cotidianas", disse Maria Gorete Neto, lingüista do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL/Unicamp), à Agência FAPESP.

Três anos morando em aldeias na região do médio Araguaia, no Mato Grosso, deram à pesquisadora empirismo para reconhecer a influência da língua tapirapé no português usado pelos índios. A experiência de lecionar o idioma oficial brasileiro aos habitantes mais antigos do país acabou incentivando a dissertação de mestrado Construindo interpretações para entrelinhas: cosmologia e identidade étnica nos textos escritos em Português, como segunda língua, por alunos indígenas tapirapés, defendida em fevereiro de 2005.

Maria Gorete analisou 30 textos de alunos de 5ª a 8ª séries do ensino fundamental. Nas cartas, redações e bilhetes os jovens apresentavam um jeito próprio de se manifestar na segunda língua. Questões aparentemente estilísticas se mostraram recorrentes nos textos, levando a pesquisadora a identificar o "jeito tapirapé de falar português". "Percebemos a resistência ao colonizador feita de forma estratégica e muito sutil", explica.

Na gramática desse povo, a mobilidade sintática é muito flexível. O adjetivo pode vir no início da frase e o sujeito no fim. O sujeito e objeto são colocados antes ou depois do verbo. Mas todos se entendem. Partículas presentes na língua indígena permitem a um tapirapé dizer algo do tipo "a menina mordeu o cachorro", sem risco de o interlocutor pensar que o cão de fato foi ferido.

As marcas da língua-mãe e o modo de ver o mundo sempre aparecem na fala de quem aprende um segundo idioma. No caso dos tapirapés, os temas preferidos são a abundância de comida, suas crenças e, principalmente, a alegria. Segundo a pesquisadora, a alegria é o mote da vida da etnia e está associada ao estar junto e partilhar.

Entre os habitantes das duas últimas aldeias, uma nas proximidades da cidade de Santa Teresinha e outra em Confresa, ambas no Mato Grosso, não se nega um pedido feito por uma pessoa próxima. Conduta também refletida nos textos dos alunos da professora Gorete.

Quanto à menina que escreveu ao presidente, pedindo que ele ajudasse nas questões de sua terra, ela se apresentou ao governante com a mesma intimidade que lidaria com um dos últimos 560 remanescentes de sua etnia.


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