Testes mostraram que o Morbillivirus não infecta facilmente células humanas (foto: Luiz Gustavo Góes/IPSP)

Virologia
Pesquisadores isolam vírus ‘parente’ do sarampo em morcegos da América Latina
28 de julho de 2025

Trabalho é fruto de 14 anos de pesquisa, período em que foram analisados no Brasil e na Costa Rica mais de 1.600 morcegos, incluindo hematófagos, insetívoros e frugívoros. Descoberta inédita amplia o conhecimento sobre risco potencial à saúde pública

Virologia
Pesquisadores isolam vírus ‘parente’ do sarampo em morcegos da América Latina

Trabalho é fruto de 14 anos de pesquisa, período em que foram analisados no Brasil e na Costa Rica mais de 1.600 morcegos, incluindo hematófagos, insetívoros e frugívoros. Descoberta inédita amplia o conhecimento sobre risco potencial à saúde pública

28 de julho de 2025

Testes mostraram que o Morbillivirus não infecta facilmente células humanas (foto: Luiz Gustavo Góes/IPSP)

 

Luciana Constantino | Agência FAPESP – Um grupo de pesquisadores do Brasil, da Costa Rica e da Europa conseguiu, pela primeira vez, isolar e cultivar em laboratório a partir de morcegos hematófagos da América Latina vírus do gênero Morbillivirus, que pertencem ao mesmo grupo do sarampo humano (Measles virus) e da cinomose canina (Canine distemper virus), considerados extremamente contagiosos.

O achado é essencial para entender e ampliar o conhecimento sobre a diversidade desses patógenos na natureza e seu potencial risco à saúde pública. Isolando um vírus, é possível estudá-lo em detalhes, analisar sua estrutura, genética e modo de infecção, abrindo novas frentes para desenvolvimento de testes diagnósticos, fármacos e vacinas.

O trabalho é fruto de 14 anos de pesquisa, período em que foram analisados no Brasil e na Costa Rica mais de 1.600 morcegos, incluindo hematófagos (que se alimentam de sangue), insetívoros e frugívoros.

O resultado foi publicado na edição de junho da revista Nature Microbiology, uma das mais importantes na área, onde foi destaque de capa e tema do editorial. No texto, a revista ressalta a importância desse tipo de estudo para que o novo Acordo sobre Pandemias, aprovado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em maio deste ano, seja implementado.

Embora houvesse sinais genéticos de Morbillivirus em morcegos, nenhum deles havia sido até então isolado de amostras clínicas. Isso limitava os estudos sobre sua biologia, mecanismos de infecção e risco de transmissão, entre outros aspectos.

Desta vez, o grupo conseguiu realizar o sequenciamento genético completo de diversas amostras com a identificação das novas linhagens virais. Depois disso, para uma dessas linhagens descobriu-se como o vírus interage com as células hospedeiras.

Uma das barreiras enfrentadas foi a necessidade de desenvolver linhagens celulares específicas que pudessem expressar receptores compatíveis com os vírus, já que os encontrados em morcegos não utilizam os mesmos receptores celulares que o sarampo (como SLAMF1, também chamado de CD150, e Nectin-4). Por meio de engenharia genética, os pesquisadores superaram essa dificuldade.


Um Desmodus rotundus, morcego hematófago, mesma espécie de onde foi isolado o Morbillivirus sequenciado na pesquisa (foto: Cristiano de Carvalho/Unesp Araçatuba)

Em vários órgãos dos morcegos – como rins, pulmão, fígado, intestino e coração – foram encontradas altas concentrações virais, indicando infecções sistêmicas, geralmente não letais para os animais, porém semelhantes às provocadas pelo vírus do sarampo em humanos. A maioria dos patógenos foi detectada em morcegos neotropicais, reforçando o papel desses mamíferos como reservatórios naturais.

“Uma das riquezas desse trabalho foi sequenciar diferentes Morbillivirus de morcegos, demonstrando que esses animais neotropicais são reservatórios importantes de uma vasta gama desses vírus, extremamente contagiosos e causadores de doenças importantes em animais e em humanos”, explica à Agência FAPESP um dos autores do artigo, o biólogo Luiz Gustavo Góes, do Institut Pasteur de São Paulo (IPSP), uma associação sem fins lucrativos com sede na Universidade de São Paulo (USP). “O segundo ponto foi detectar, por meio do isolamento de células, que esse vírus não consegue utilizar o receptor CD150 humano, o que é uma informação muito boa no sentido de que ele, no momento, não demonstra ter capacidade de infectar hospedeiros humanos.”

A pesquisa recebeu apoio da FAPESP por meio de três projetos (13/11006-0, 14/15090-8 e 17/20744-5).

Vigilância viral para potenciais adaptações

Também autora do estudo e pesquisadora do IPSP, Angélica Cristine Almeida Campos destaca que a presença do Morbillivirus em morcegos não representa ameaça imediata, mas a partir dos resultados será possível minimizar riscos no futuro. “Os testes mostraram que o vírus não infecta facilmente células humanas. Porém, como todo vírus, é capaz de se adaptar, aumentando o risco de infecções”, ressalta.

As análises filogenéticas mostraram que os vírus encontrados estão mais próximos da origem da família dos Morbillivirus do que as linhagens atualmente conhecidas, como a do sarampo. Isso fornece pistas valiosas sobre como surgiram e evoluíram ao longo do tempo.

Os cientistas identificaram Morbillivirus em macacos silvestres (saguis) encontrados mortos no Brasil. Embora a causa das mortes não tenha sido confirmada, as análises genéticas revelaram similaridade com Morbillivirus de morcegos. Os vírus dos primatas conseguiram utilizar o receptor SLAMF1, o que sugere a possibilidade de transmissão entre espécies.

Ao longo da história evolutiva dos Morbillivirus, as análises indicam saltos entre espécies, como de morcegos para porcos e macacos. Dados do estudo reforçam a hipótese de que os morcegos são espécie-chave na disseminação entre mamíferos, destacando a necessidade de fortalecer a vigilância viral em áreas de alta biodiversidade.

Já os testes de neutralização mostraram que anticorpos produzidos em infecções anteriores de sarampo ou de cinomose canina conseguiram combater os vírus isolados dos morcegos. Essa descoberta sugere algum grau de imunidade cruzada, ou seja, uma “proteção” adquirida em uma infecção anterior que pode, mais tarde, proteger contra outros agentes infecciosos.

Colaboração internacional

Assinado por uma equipe internacional, o artigo tem como autor correspondente o pesquisador Jan Felix Drexler, da Charité-Universitätsmedizin Berlin, e conta com a participação de cientistas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP) e de outras instituições da América Latina e Europa.

Em 2012, Drexler já havia publicado um artigo com outros pesquisadores identificando 66 novos paramixovírus em uma amostra mundial de 119 espécies de morcegos e roedores, apontando esses animais como hospedeiros (leia mais em: www.nature.com/articles/ncomms1796). A grande família de vírus Paramyxoviridae inclui alguns dos patógenos humanos e pecuários mais importantes, como sarampo, cinomose, caxumba, parainfluenza, doença de Newcastle, vírus sincicial respiratório e metapneumovírus.

“Esse trabalho demonstra quanto são importantes esses laços colaborativos entre diferentes laboratórios e países. A pesquisa é fruto dessas diversas colaborações”, ressalta Góes, que atualmente desenvolve um projeto para estudar paramixovírus em morcegos neotropicais.

Apoiado pela FAPESP (25/06459-2 e 22/13054-0), o projeto analisa a diversidade genética e a ecoepidemiologia de paramixovírus em morcegos coletados na Mata Atlântica, incluindo áreas urbanas, rurais e florestais. O bioma é considerado um hotspot de biodiversidade, servindo de hábitat para mais de 100 espécies de morcegos.

O artigo Ecology and evolutionary trajectories of morbilliviruses in Neotropical bats pode ser lido em www.nature.com/articles/s41564-025-02005-8.
 

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