A pós-doutoranda Rafaela Rosa-Ribeiro foi à Europa para desenvolver um projeto sobre o vírus zika, mas decidiu adaptar seus planos em meio à epidemia causada pelo SARS-CoV-2 (foto: arquivo da pesquisadora)
A pós-doutoranda Rafaela Rosa-Ribeiro foi à Europa para desenvolver um projeto sobre o vírus zika, mas decidiu adaptar seus planos em meio à epidemia causada pelo SARS-CoV-2
A pós-doutoranda Rafaela Rosa-Ribeiro foi à Europa para desenvolver um projeto sobre o vírus zika, mas decidiu adaptar seus planos em meio à epidemia causada pelo SARS-CoV-2
A pós-doutoranda Rafaela Rosa-Ribeiro foi à Europa para desenvolver um projeto sobre o vírus zika, mas decidiu adaptar seus planos em meio à epidemia causada pelo SARS-CoV-2 (foto: arquivo da pesquisadora)
Karina Toledo | Agência FAPESP – A bióloga Rafaela Rosa-Ribeiro é pós-doutoranda no Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, onde estuda – com apoio da FAPESP – vias de morte celular induzidas pelo vírus zika em vários tipos de célula. Em 2019, iniciou um estágio de pesquisa no Departamento de Doenças Infecciosas e Neurociência do Ospedale San Rafaelle – hospital situado em Milão, na Itália. O projeto é supervisionado por Elisa Vicenzi, coordenadora do primeiro grupo italiano – e o segundo no mundo – que isolou o SARS-CoV, vírus que emergiu em 2002 na China, onde causou os primeiros casos de SARS, a síndrome respiratória aguda grave.
O SARS-CoV se disseminou por cerca de 30 países, infectou mais de 8 mil pessoas e causou cerca de 800 mortes. No entanto, desde 2004, nenhum novo caso de SARS foi relatado. Agora, diante da emergência de um novo coronavírus – o SARS-CoV-2, causador da COVID-19 –, o grupo de Vicenzi está iniciando estudos voltados a testar fármacos que demonstraram em testes anteriores potencial para combater vírus respiratórios. Outra linha de investigação visa entender quais vias de sinalização são ativadas em células infectadas pelo SARS-CoV-2. Serão realizados experimentos com células humanas e também de morcegos, animais considerados reservatórios de várias espécies de coronavírus e que não desenvolvem sintomas da infecção.
Em entrevista concedida à Agência FAPESP por telefone, Rosa-Ribeiro, que está em Milão, apresentou um escopo dos projetos que serão conduzidos na Itália durantes as próximas semanas e contou como tem sido a experiência de lidar com a epidemia. Segundo o Repositório Oficial do Departamento de Proteção Civil italiano, foram confirmados, de 24 de fevereiro a 16 de março, 27.980 casos de COVID-19 e 2.158 mortes. Ao todo 12.876 pessoas foram hospitalizadas e 1.851 precisaram de terapia intensiva. Somente entre os dias 15 e 16 de março foram 2.470 novos casos positivos.
Agência FAPESP – Você foi para a Itália desenvolver um projeto sobre o vírus zika, mas agora está envolvida também em estudos sobre o novo coronavírus. Os dois projetos serão conduzidos em paralelo?
Rafaela Rosa-Ribeiro – Sim, não pude deixar a oportunidade passar. Nosso grupo de pesquisa é pequeno. Somos cinco pessoas e os alunos não estão podendo vir ao hospital. Como pós-doutoranda estou dando suporte em tudo que posso. Acabei me envolvendo na idealização de alguns estudos sobre o novo coronavírus. Claro que a pesquisa sobre o zika é a minha prioridade, mas algumas facilities não estão funcionando e, então, será preciso aguardar tudo isso passar para dar continuidade aos experimentos. A Itália está realmente parada, é algo impressionante. Enquanto isso, vou aproveitar para mapear o máximo de informação possível sobre o novo coronavírus.
Agência FAPESP – Quais estudos estão sendo iniciados sobre o SARS-CoV-2?
Rosa-Ribeiro – São dois. Em parceria com empresas farmacêuticas vamos testar algumas drogas contra o vírus. Em outra frente, vamos avaliar in vitro como o vírus infecta macrófagos e monócitos, dois tipos de célula do sistema imunológico. Já estamos isolando vírus de diferentes pacientes para ter um estoque no laboratório. Em breve começaremos a isolar as células tanto de pessoas infectadas como de indivíduos saudáveis. Queremos ver qual resposta é ativada nessas células após a infecção. Como a expressão gênica se altera, quais citocinas [proteínas que atuam como sinalizadores do sistema imune] são liberadas. A ideia é mapear as vias de sinalização de morte celular acionadas pelo vírus. O meu projeto sobre o zika também tem como foco as vias de sinalização de morte celular.
Agência FAPESP – Por que é importante estudar as vias de sinalização de morte celular?
Rosa-Ribeiro – Para entender o mecanismo da doença e identificar alvos para possíveis intervenções. Quando ocorre a morte celular, a replicação do vírus é inibida. Precisamos saber se a célula consegue iniciar o processo de morte celular com facilidade ou se o vírus tem mecanismos para inibi-lo, como faz o vírus do herpes, por exemplo. Além disso, há vários tipos diferentes de morte celular. Algumas são ‘silenciosas’, como é o caso da apoptose. Outras causam o extravasamento do conteúdo celular e induzem uma forte reação inflamatória. Por um lado isso é ruim, pois causa dano ao tecido, mas por outro alerta o sistema imune, que manda mais células de defesa ao local. Ao entendermos o que acontece durante a infecção pelo novo coronavírus, podemos identificar vias de sinalização importantes de serem moduladas por um fármaco, por exemplo. Além disso, também vamos estudar o que ocorre quando o vírus infecta as células de morcego. Esses animais são reservatórios de várias espécies de coronavírus, mas não desenvolvem sintomas. Talvez isso ocorra porque as vias de sinalização ativadas pelo vírus nos morcegos são diferentes. É algo que queremos entender.
Agência FAPESP – O estudo com drogas será in vitro ou in vivo? Ambos serão conduzidos paralelamente?
Rosa-Ribeiro – Sim, infelizmente terá de ser feito tudo muito rapidamente. Todos os estudos serão in vitro, ainda não temos planos de usar modelos animais. Existem algumas drogas que mostraram potencial para combater vírus respiratórios, entre eles o causador da SARS. Minha supervisora chegou a participar de alguns desses estudos no passado, mas quando o SARS-CoV parou de circular os investimentos em pesquisa diminuíram. Agora temos de praticamente recomeçar do zero.
Agência FAPESP – Por que a Itália demorou para sequenciar os genomas virais dos pacientes infectados?
Rosa-Ribeiro – A Itália é um país ainda mais burocrático que o Brasil. Aqui não é permitido usar em pesquisa amostras coletadas para diagnóstico, mesmo se o paciente autorizar. Antes é preciso obter aprovação de um comitê de ética. As primeiras amostras da Itália ficaram concentradas em Roma, em uma instituição governamental responsável por fazer a contraprova dos casos positivos. Demorou para eles obterem autorização para fazer o sequenciamento. Além disso, essa instituição não tinha acesso à tecnologia que permite fazer o sequenciamento rápido, como foi feito no Brasil [leia mais em: agencia.fapesp.br/32637]. Eles sequenciaram pelo método tradicional, que é mais demorado. Agora já há cerca de cinco genomas sequenciados aqui na Itália.
Agência FAPESP – E com base nesses genomas é possível chegar a alguma conclusão?
Rosa-Ribeiro – Se olharmos todos os genomas sequenciados em conjunto, parece haver um cluster europeu – que reúne amostras da Itália, da Alemanha, da França, da Holanda e também as duas do Brasil [de pessoas infectadas na Europa] –, outro cluster chinês e um terceiro norte-americano. Mas são diferenças muito pequenas, nada capaz de alterar a capacidade do vírus de infectar células, por exemplo. Agora que já há transmissão comunitária no Brasil será preciso sequenciar mais amostras para ver como será o perfil do país.
Agência FAPESP – Já é possível traçar o histórico da epidemia na Itália?
Rosa-Ribeiro – Não. O paciente-zero – dentro dos primeiros casos de transmissão comunitária no país – não foi identificado. Sabemos que o paciente-um procurou ajuda em um hospital e, mesmo com sintomas, não foi submetido ao teste em um primeiro momento e foi liberado. Isso porque a orientação da OMS [Organização Mundial da Saúde] na época era testar apenas quem tivesse histórico de viagem a um país de risco ou de contato com pessoas que estiveram nesses países. Esse paciente foi atendido no início de fevereiro na cidade de Codogno [a cerca de 60 quilômetros de Milão]. Quando se identificou a transmissão comunitária, não foi feito um bloqueio rápido na região. As atividades foram parando aos poucos. Primeiro foram isoladas 11 cidades na região da Lombardia, isso foi na época do Carnaval. O restante da região norte manteve a rotina durante uma semana e meia. Recomendava-se apenas para as pessoas manterem distância de um metro uma das outras e ficarem em casa se estivessem com sintomas. Quando se optou por isolar toda a região norte a situação já estava bem complicada. No dia seguinte, todo o país entrou em isolamento. A recomendação que podemos dar com base nessa experiência é que, assim que um foco da doença for identificado, devem ser adotadas imediatamente medidas para diminuir a circulação de pessoas. Fechar escolas, universidades, bares, restaurantes, cancelar shows e eventos, evitar viagens e evitar o transporte público. Os sintomas serão brandos para 80% dos infectados, mas as pessoas precisam ter consciência de que ao circular pela cidade ajudam a espalhar o vírus. Se muitas pessoas se infectarem em um curto período de tempo, a possibilidade de surgirem muitos casos severos simultaneamente aumenta e o sistema de saúde não vai dar conta. Lavar as mãos e restringir a circulação de pessoas são as únicas medidas eficientes.
Agência FAPESP – Qual é a situação hoje dos hospitais italianos?
Rosa-Ribeiro – Aqui no Ospedale San Raffaele conseguiram doações para fazer uma ala nova, meio pré-fabricada, para alocar pacientes com COVID-19. Mas o sistema de saúde como um todo está sobrecarregado, principalmente na região norte. A taxa de letalidade no país está em 7,3%, pois somente os casos graves estão chegando aos hospitais. Os profissionais de saúde estão tendo de escolher quem tratar, pois não há equipamento de ventilação e UTIs [Unidades de Terapia Intensiva] suficientes para todos.
Agência FAPESP – Existe alguma expectativa sobre quanto tempo ainda deve durar o isolamento?
Rosa-Ribeiro – Quando fecharam toda a região norte falaram em um mês e já se passaram duas semanas. Mas há muitos médicos infectados e faltam equipes para atender os pacientes com COVID-19 e também os acidentados e os portadores de outras doenças. Até os residentes, que inicialmente foram dispensados para evitar a contaminação, foram recrutados. Hoje se sabe que o processo de entubar os pacientes em estado grave faz com que muitos aerossóis contendo o vírus se espalhem pelo hospital. Fomos aprendendo à medida que tudo foi acontecendo.
Agência FAPESP – Qual é o protocolo hoje?
Rosa-Ribeiro – Agora os pacientes infectados ficam em área isolada e todos que lidam com eles parecem astronautas. Devem tirar a roupa de proteção antes de circular por outras áreas do hospital. Todo mundo está de máscara, até secretárias, porteiros e também as pessoas nas ruas. Os laboratórios estão trabalhando apenas com 10% da força de trabalho. Hoje os testes só são aplicados em pessoas com sintomas severos para confirmar o diagnóstico antes da internação. Quem tem sintomas brandos é orientado a ficar em casa. Pode receber a visita do médico da família – um serviço oferecido pelo sistema público de saúde – ou receber orientação sobre qual remédio tomar para amenizar os sintomas.
Agência FAPESP – Já se fala sobre o que será feito depois que passar o pico da epidemia?
Rosa-Ribeiro – Por enquanto a preocupação ainda é apagar o incêndio, mas sabemos que o estrago vai ser grande. No Brasil há uma diferença de classe social exorbitante e as pessoas com menos condições muitas vezes não podem parar de trabalhar. Quem puder ficar em casa deve ficar. Já faz duas semanas que não vejo meus amigos e não tenho família aqui. Na primeira semana de isolamento passei cinco dias sem ver qualquer pessoa. É um clima bem pesado.
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