Caetano Galindo é professor da Universidade Federal do Paraná (foto: Letícia Moreira)
Em entrevista à Agência FAPESP, o linguista, escritor e tradutor Caetano Galindo fala sobre o impacto das mídias digitais, os vieses de gênero e raça da língua portuguesa e os desafios da tradução. Ele apresentará, nesta sexta-feira, a 9ª Conferência FAPESP 2024
Em entrevista à Agência FAPESP, o linguista, escritor e tradutor Caetano Galindo fala sobre o impacto das mídias digitais, os vieses de gênero e raça da língua portuguesa e os desafios da tradução. Ele apresentará, nesta sexta-feira, a 9ª Conferência FAPESP 2024
Caetano Galindo é professor da Universidade Federal do Paraná (foto: Letícia Moreira)
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Caetano Galindo é, hoje, um nome referencial nas áreas de linguística, criação literária e tradução. Seu livro Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português (Companhia das Letras, 2023) transforma aquilo que poderia ser um tema árido (a origem e a complexa evolução de nosso idioma) em uma leitura fascinante. E sua tradução da principal obra de James Joyce, Ulysses (Companhia das Letras, 2012), foi contemplada com o Prêmio Jabuti e com os prêmios da Academia Brasileira de Letras (ABL) e da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).
Nascido em Curitiba, em 1973, Galindo é professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Sua principal produção ensaística é o guia Sim, eu digo sim: uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce (Companhia das Letras, 2016). E sua produção ficcional inclui a coleção de contos Sobre os canibais (Companhia das Letras, 2019), o romance Lia: cem vistas do monte Fuji (Companhia das Letras, 2024) e a peça de teatro Ana Lívia, que estreou em São Paulo no ano passado, com direção de Daniela Thomas e Bete Coelho e Georgette Fadel no elenco.
No terreno da tradução, ele já recriou em português autores como J. D. Salinger, Thomas Pynchon, David Foster Wallace, Alice Munro e outros, além de O diário do Beagle, de Charles Darwin.
Galindo será o convidado do nono evento da série Conferências FAPESP 2024. Agendada para sexta-feira (25/10), às 10 horas, no Auditório da FAPESP, a conferência tem por título “Latim em Pó: o que nossa língua pode nos ensinar sobre democracia, poder, diferença e convívio”, o qual, por si só, é suficientemente instigante.
Nesta entrevista à Agência FAPESP, ele fala sobre as transformações atuais do idioma, os vieses de gênero e raça da língua portuguesa, os desafios da tradução e muitas outras coisas.
Agência FAPESP – No seu livro Latim em pó, você enfatiza a mudança como característica fundamental das línguas – algo contra o qual é tolice lutar. Estamos agora diante de fatores de mudança que operam em uma escala e em uma velocidade sem precedentes: a comunicação on-line, a internet, as mídias sociais etc. Como tudo isso está impactando o idioma?
Caetano Galindo – A mudança linguística depende da inovação. E a inovação frequentemente é um fato pontual: tem origem em um falante, em um momento, um contexto, um ambiente. A partir desse momento, ela precisa se difundir. É como um contágio. E a difusão dessa inovação se dá a partir de redes de contato. Em uma sociedade como a nossa, a possibilidade de uma pandemia, como se viu, é muito maior, porque as pessoas estão situadas em redes mais densas e estão se movimentando muito mais. O mundo todo se transformou numa espécie de grande rede de contato e de contágio. No caso da mudança linguística, isso também está acontecendo. E com o fator ainda mais complicado de que há uma questão hierárquica envolvida aqui. O inglês, hoje, tem um domínio sobre a situação sociolinguística mundial que nenhum outro idioma jamais teve. Então, junte essas duas coisas, a preponderância gigantesca do inglês e a interconexão em alta velocidade, e você tem de fato mecanismos muito novos para toda a situação linguística global. Vamos falar só do português do Brasil: o português do Brasil hoje está exposto a mecanismos de mudança mais intensos, mais acelerados e ainda não compreendidos plenamente. Alguma coisa nisso, inclusive, eu acho que é boa. É bom, é bacana ver isso acontecendo. A comunicação nas redes sociais ainda é bastante feita por escrito – já não tão necessariamente depois da virada do Facebook para o Instagram, para o TikTok, mas ainda muito baseada no texto escrito – e isso, nas últimas décadas, está fazendo com que mais atores, mais pessoas, mais agentes da história da língua alterem o texto escrito em português. A liberdade ortográfica está sendo afetada por isso, os usos, os padrões, as construções gramaticais. Inovações, tendências que antes seriam mais invisíveis, mais nichadas, agora circulam um pouco mais rápido. Isso também pode gerar, de um lado, uma pressão de mudança, mas, do outro, uma pressão de reação, de controle, por parte da eterna polícia gramatical, da eterna polícia linguística. Então, sim, são fatores novos, são fatores inéditos e a gente ainda vai ter de ver, vai levar algum tempo para conhecer os frutos possíveis de tudo isso.
Agência FAPESP – Você acha que estamos perdendo diversidade linguística, assim como estamos perdendo biodiversidade? Ou esta é uma opinião conservadora que não consegue apreender corretamente o que se ganha em troca?
Galindo – Nós estamos indiscutivelmente perdendo diversidade linguística. Primeiro, se pensarmos em idiomas, vivemos hoje uma extinção em massa de idiomas pelo mundo. O mundo ainda fala milhares de idiomas, provavelmente algo perto de 7 mil idiomas. Mas há quem estime que, até o final do século, poderemos ter a extinção de talvez 80% desses idiomas, na medida em que eles se transformam com a centralidade de apenas alguns, a maior urbanização, a comunicação chegando a vários grupos e fazendo com que seja economicamente mais interessante tentar passar para os filhos as grandes línguas de cultura, e não a língua do seu pequeno grupo tradicional. Esses idiomas tradicionais estão se tornando instrumentos pouco interessantes para o contato cultural; pouco interessantes nesse sentido econômico, bruto. É óbvio que, com a extinção deles, se perde uma diversidade enorme, se perde muita cor, muita variedade, muita informação – e há muito o que lamentar nisso. O que se ganha em troca? Ganha-se uma comunicabilidade maior, uma possibilidade maior de comunicação, uma centralização maior de informação. Eu acho que talvez não caiba muito lamentar ou celebrar, são fatores como que naturais da mudança linguística e da situação que a gente vive no mundo de hoje. O que dá para lamentar, isto sim, é o lado da violência, porque, com imensa frequência, esses idiomas estão se perdendo porque os seus falantes estão sendo silenciados, quando não mortos – no caso, por exemplo, das línguas indígenas, das línguas originárias de vários lugares. Nesse caso, o que estamos vendo é a associação do glotocídio, como se costuma dizer, da morte intencional de um idioma, com a morte de uma população, de uma cultura. E, então, temos um outro tipo de perda envolvida.
Agência FAPESP – A geração atual lê percentualmente menos do que as anteriores? Ou está lendo outras coisas, menos consagradas, mas não menos importantes?
Galindo – Esta pergunta é complicada. Primeiro, porque eu não tenho dados, não tenho números. O que vou dizer aqui são impressões. E depende do que se lê, não é? Eu acho que tivemos um recrudescimento, uma intensificação da atividade de leitura e de escrita ao longo, por exemplo, da minha vida. Isso graças aos computadores, graças ao e-mail, graças às redes sociais. Muita comunicação se fez por escrito na minha geração. Já na geração dos meus pais, por exemplo, se você não tivesse uma profissão estritamente ligada à escrita ou à leitura, podia passar muito tempo sem precisar ler ou escrever coisa alguma. A comunicação oral era ainda mais central para o cotidiano. A gente passou por uma virada grafocêntrica durante um período. Porém, isso também está se desfazendo agora. Então, não sei exatamente estimar. Mas ainda acho que hoje os jovens leem, passam um tempo decodificando caracteres escritos, com mais frequência do que se fazia algum tempo atrás. Agora, se a sua pergunta é sobre literatura, sobre o que as pessoas leem – por que, quando a gente pergunta ‘você lê? você gosta de ler?’, a gente está geralmente pensando em literatura –, então, estamos vivendo uma outra virada complicada. Por mais que a qualidade e a integralidade de ensino nunca tenham se universalizado de verdade no Brasil, a gente viveu, nas últimas décadas, um aumento do acesso da população como um todo a esses recursos: à alfabetização mais plena, à literatura. Basta ver, por exemplo, os números de visitantes da última Bienal de São Paulo, os números de vendas de alguns autores, a grande circulação de livros, o interesse por livros. Tudo ainda muito marginal, ainda fracional em relação ao tamanho da população, ao poder de compra da população brasileira, ainda uma coisa insignificante dentro do nosso panorama cultural e de entretenimento, mas eu acho que tem havido uma certa ampliação. O que acontece, no entanto, é que essa ampliação não se deu nos quadros do que nós, a geração ultrapassada, consideraríamos ‘literatura’: a literatura que a gente lê, que a gente estuda, que a gente gosta de promover. O fato de que a Câmara Brasileira do Livro resolveu, no Prêmio Jabuti, dividir o prêmio do romance em ‘romance literário’ e ‘romance de entretenimento’ é algo que eu acho muito significativo. Existe, sim, um mercado grande, existe movimentação, existe interesse, existe uma popularização, existe uma ‘popificação’ do mundo da literatura, mas a literatura talvez com ‘L’ maiúsculo – para estabelecer aqui uma postura quase preconceituosa – está virando uma arte de nicho. O que está circulando mesmo, o que está gerando interesse, o que está movimentando dinheiro, inclusive, são outros tipos de uso do mecanismo da prosa literária, aquilo que a gente chamaria anteriormente de ‘romance de entretenimento’, como diz o Jabuti, ‘romance de gênero’, ‘literatura pop’, por assim dizer. Me parece, às vezes, que é quase como se a gente estivesse vendo a literatura se transformar no que, para a minha geração, para a geração mesmo anterior à minha, foi a situação do cinema, em que você tinha o cinema dito ‘de arte’, que ocupava uma fatia pequena do mercado, e tinha o cinema como grande máquina de entretenimento, de circulação de narrativas. Talvez a gente esteja vendo alguma coisa parecida acontecendo na literatura.
Agência FAPESP – É notável esse grande interesse pelo romance de entretenimento. A ponto de um livro como Velar por ela, de Jean-Baptiste Andrea, que é um puro romance de entretenimento, com peripécias surpreendentes e viradas espetaculares a cada página, ter ganho o Prêmio Goncourt de 2023 – o Goncourt que é aquele monstro sagrado da cultura francesa. Como você explica esse movimento?
Galindo – A gente tem uma necessidade constante de entretenimento. Essas obras sempre tiveram sucesso, isso não é estranho. O que eu acho algo estranho é o fato de essas obras – eu não conheço o romance de que você está falando, infelizmente – estarem ocupando um espaço – e eu tenho consciência de que esta minha frase talvez soe elitista – estarem ocupando o espaço que a gente considerava reservado a outro tipo de produção. E, aqui, vou me arriscar num palpite sociológico maior: acho que a gente tem uma crise de maturidade em curso. Estamos vendo gostos, estilos, atividades que até a minha geração seriam consideradas adolescentes, imaturas, sendo transformados, sendo gourmetizados, tudo sendo considerado cult: filme de super-herói, Game of Thrones... De repente, a gente tem toda uma área do mundo do entretenimento, da arte, em que me parece – e aqui eu falo como um velho ranzinza – que as pessoas desistiram, ou não se interessam mais por um processo que seria aquele de amadurecer, ir adiante, seguir para outras formas de arte. Elas continuam com os mesmos interesses que tinham na adolescência, mas resolveram glamurizar esses interesses e transformá-los em produtos de pretenso alto nível, por assim dizer, e isso tem acontecido em muitos, muitos campos. Fique bem claro: eu não tenho nada contra esse tipo de entretenimento, sou um superleitor de romance policial, por exemplo, acho que cada coisa é o que é, e precisa ser o que é e ocupar o seu lugar. O que eu acho um pouquinho complicado é essa pretensa elevação dessas outras formas a um lugar que não é o delas. Ninguém ganha com isso, nem os leitores, nem os produtores dessas formas de arte, nem aqueles que estão fazendo a outra coisa, o resto, que está virando talvez um nicho.
Agência FAPESP – Uma questão que foi durante muito tempo desconsiderada, mas que agora se tornou explosivamente relevante, é a dos vieses da língua portuguesa: viés de raça, viés de gênero etc. Para quem precisa escrever profissionalmente, como é o caso dos jornalistas, tornou-se um desafio escapar dessas armadilhas, porque não é só uma questão de vocabulário, o que seria até fácil de resolver, mas também uma questão de sintaxe, o que é bem mais complicado.
Galindo – Eu acho interessantíssimo que a sociedade esteja discutindo essas coisas. E a sociedade está discutindo essas coisas nos seus próprios termos, frequentemente perguntando as opiniões dos linguistas, dos profissionais, mas se engajando ativamente na discussão. Não há um evento a que um profissional da linguística seja convidado em que não acabe surgindo uma pergunta sobre esses assuntos. É o grande assunto do momento. Acho bacana que a sociedade esteja discutindo o idioma, esteja interessada no idioma. E acho bacana também, acho fundamental, que certas revisões estejam sendo feitas, na tentativa de apontar para o quanto existe de preconceito, de exclusão, de violência, de racismo, de sexismo encravados dentro do próprio idioma. É sempre esclarecedor a gente entender de onde as coisas vieram e entender o quanto estruturas aparentemente neutras com frequência carregam marcas de dominação, de opressão, de violência. Eu já não tenho tanta clareza quanto ao interesse de se policiar esses usos, acho uma fronteira complicada. É caso a caso. Nem sempre eu acho preciso dizer que tal palavra, que tal expressão nunca mais poderá ser usada. Ao contrário, acho que, às vezes, ela deve poder ser usada, e que isso deve ser comentado. Acho óbvio, também, que, exposto a toda a informação relevante e de qualidade, cada falante, cada usuário possa decidir por si só se gostaria ou não de ver essa palavra empregada. Por outro lado, nesse boom do ‘vamos rever essas questões e policiar esses usos’, acabam ocorrendo também muitos equívocos. A ideia de que ‘criado-mudo’ ou ‘fazer nas coxas’ são expressões dos tempos da escravidão, por exemplo, é uma falácia. São fake news que circulam e ganham muita atenção de repente. E aí a gente começa a ter uma polícia paranoica, obsessiva por apontar o dedo, que é tudo o que de ruim sempre existiu na polícia da ‘norma culta’, na polícia do ‘gramatiquês’, agora do outro lado da equação, agora do lado da defesa de uma outra postura linguística e política. Acho que estamos vivendo um processo necessário. Acho que a gente deve celebrar o grau de amadurecimento que a sociedade brasileira atingiu em relação a essas coisas complicadas, difíceis. A gente está pensando nelas, está pensando de maneira mais aguda no nosso passado, na grande cicatriz da escravidão na história do Brasil… a gente está pensando na nossa exclusão de gênero, a gente está pensando nas questões identitárias em geral. Eu acho isso tudo muito importante, muito interessante. Não sou e ninguém é capaz de prever os resultados. No momento, o que me interessa é a bagunça, é o caos, é ver fervilhar, eu quero ver isso acontecendo, mas não sei, e ninguém sabe, no que isso pode vir a dar.
Agência FAPESP – Você acha que soluções do tipo ‘todes’ e ‘amigues’ vieram para ficar ou são apenas um modismo passageiro?
Galindo – É muito difícil prever. Já há bastante tempo se fala dessas questões, mas até hoje essas formas não conseguiram passar de um limiar de nicho, não tomaram a sociedade, não mudaram a estrutura da língua. Ao contrário do que alguns conservadores enlouquecidos diziam temer, elas nunca ameaçaram mudar a estrutura da língua, mas se transformaram em sinalizadores. A pessoa que diz ‘agradeço a todos, todas e todes’ está sinalizando uma postura, está dizendo a que veio, está dizendo de que lado ela está. Ela não está, em 99,99% dos casos, advogando por uma mudança total e completa da estrutura gramatical da representação da língua portuguesa, até porque isso é inviável, até porque não é assim que as coisas acontecem, até porque não é uma vontade política articulada que vai alterar o funcionamento de um idioma, nunca foi; são casos raríssimos na história da humanidade em que alguma coisa dessa natureza passou perto de acontecer. É mais uma bandeira, é mais chamar a atenção para uma questão. E nesse sentido é mais do que válido. O que eu acho sensacional nessa história é que, por mais que haja uma reação exagerada, nunca houve um movimento articulado de se criar projetos de lei para obrigatoriedade da linguagem neutra ou da linguagem inclusiva, mas rapidamente alguns conservadores começaram a esboçar projetos de lei para proibição da linguagem neutra e da linguagem inclusiva! É interessante ver de que lado está o poder, quem é que está, como de costume, manejando as armas nessa história. Mas o bacana é que, no fundo, no fundo, mesmo as reações mais negativas, mesmo as reações que estão equivocadas na sua base, nas suas suposições e na violência da sua reação, acabam concedendo uma vitória. Porque a grande vitória do movimento LGBTQIAPN+, do feminismo, das, entre muitas aspas, ‘minorias raciais’ é que essas coisas sejam discutidas: o objetivo é fazer as pessoas falarem nisso, é lembrar que essas questões existem, é colocar esses assuntos em discussão. O objetivo é dar visibilidade, constatar a existência, por exemplo, de pessoas trans no nosso corpo político. E cada pessoa que está negando veementemente essa conversa toda, mas mantendo a conversa viva, está concedendo essa vitória: a discussão está acontecendo, as pessoas estão visibilizadas, o assunto está na berlinda, está na sociedade.
Agência FAPESP – Essa questão dos vieses está escandalosamente presente naquela que talvez seja a mais importante expressão literária do Brasil: as letras das canções da música popular brasileira. Muitas dessas letras estão impregnadas de misoginia, de racismo, de violência. O que você pensa disso?
Galindo – É muito complicado, não é? Eu gosto de dizer que, talvez, a canção popular, o modelo de canção de três ou quatro minutos, veiculada de forma pop no mundo, tenha sido a grande forma de arte do século 20. E, ao contrário do que diz nosso tradicional complexo de vira-lata, o Brasil é líder nessa história. Nós somos realmente muito bons nisso, a gente tem um patrimônio absurdo na canção popular. E temos muito do que nos orgulhar. Mas é um patrimônio de bases populares e, como tal, ele arrasta consigo toda uma série de visões, de preconceitos, de vieses que essa sociedade carregou. Assim, vamos ter, no patrimônio do samba, no patrimônio da música popular brasileira, muitas situações, muitos momentos de que a gente se envergonharia hoje, coisas que a gente não gostaria de repetir. E, é claro, precisamos pensar sobre essas coisas. Eu não acho nunca que a gente deva cancelar, proibir, eliminar, mas acho que é necessário pensar sobre isso tudo. De novo, o mais interessante é que haja discussão, que não haja vontade de censura, de polícia, de corte. Mas, hoje, a gente já não pode mais fingir que não percebe certas coisas. Então, vamos aproveitar esta oportunidade para discutir.
Agência FAPESP – Em 2014, o intelectual português Antonio Nóvoa apresentou uma palestra na Universidade Estadual do Paraná, na qual fez um longo elogio da palavra ‘obrigado’, dizendo que, entre as principais línguas ocidentais, só em português se agradece nesse nível tão profundo de gratidão, capaz de expressar um vínculo de obrigação entre uma pessoa e outra. O paradoxal é que exatamente por isso muitos jovens deixaram de usar a palavra ‘obrigado’ e, quando agradecem, dizem ‘gratidão’. Será que isso tem a ver com um afrouxamento dos vínculos interpessoais que caracterizaria aquilo que o filósofo Zygmunt Bauman chamou de ‘modernidade líquida’?
Galindo – Eu não acredito que isso vá tão longe assim. Sim, eu acho bonita a imagem de que, ao dizer ‘obrigado’, eu expresso um forte vínculo em relação ao outro, eu passo a lhe dever alguma coisa. E acho que algumas pessoas começaram a perceber isso como algo, sei lá, servil ou inadequado, e trocaram por ‘gratidão’. Então, como de costume, volto a falar de sinalizadores. Acho que as pessoas que usam ‘gratidão’ não conseguiram o que elas queriam, que é se livrar desse lado servil e colocar a coisa em outro lugar, o que elas conseguiram foi criar um sinalizador, como se dissessem: ‘eu sou o tipo de pessoa que diz gratidão em vez de dizer obrigado’. É como ser o tipo de pessoa que diz ‘gratiluz’ em vez de obrigado. A linguagem é complicada, a linguagem não é objetiva como as pessoas às vezes pensam que é. Eu não consigo abrir o capô, mexer em dois parafusos e alterar o que eu queria alterar. Eu sempre acabo fazendo outra coisa, acabo lidando com imagens, com projeções, com personas. Isso é muito forte e, no fim das contas, é engraçado. As pessoas acham que estão disputando uma batalha e, na verdade, estão disputando outra, que é uma batalha de imagens: que imagem eu quero que você tenha de mim? Como eu quero controlar a imagem que você tem de mim? Não sei se isso tem a ver com afrouxamento de vínculos interpessoais, como você levantou, tem a ver talvez com uma generalização do vínculo interpessoal: não a ideia desse um a um, pessoa a pessoa, mas de indivíduo e audiência. Parece que, hoje, as pessoas talvez estejam mais interessadas em performar, como se diz por aí. Performar numa ágora virtual, em que os rostos e os nomes dos interlocutores não são definidos. Isso talvez tenha alguma ligação com esse tipo de fenômeno.
Agência FAPESP – Quando tiraram o latim do currículo, algumas pessoas comemoraram. Mas isso foi, sob vários aspectos, um empobrecimento. Agora, seria interessante, e muito conveniente, que ao menos alguns rudimentos de nheengatu e de yorubá fossem acrescentados ao currículo, para dar às novas gerações uma visão um pouco mais inclusiva da formação cultural brasileira. É mais uma ideia quixotesca ou faz sentido?
Galindo – Não, não acho uma ideia quixotesca. Faz muito sentido. A professora Yeda Pessoa de Castro, na Bahia, gosta de lembrar o tamanho do absurdo que é o fato de não existir no Brasil uma habilitação em letras yorubá ou em letras kikongo ou kimbundu ou, muito especialmente talvez, em tupi ou nheengatu. A gente tem habilitações em árabe, em japonês, em coreano, em polonês, em russo, em alemão, mas a gente não tem um curso de letras tupi funcionando, por exemplo, em uma grande universidade federal do Brasil. Isso diz muito sobre a nossa relação com o passado, diz muito sobre o quanto essa história precisa ser revista, repensada, requentada, recolocada, e eu acho que não faria mal a absolutamente ninguém. No nosso currículo aqui, mais recente, na Federal do Paraná, por exemplo, na área de Estudos da Tradução, a gente criou uma disciplina de poéticas indígenas em tradução e os alunos vão ser expostos a esses textos, a esses discursos, vão ter rudimentos dessas línguas, das línguas indígenas colocadas na sua frente. Alguns dos professores que trabalham nessa área têm também tentado se aprofundar nas línguas africanas. Mas, voltando, os alunos precisam, sim, ser expostos a esse tipo de coisa. Isso é muito importante: é fundamental. Eu acho que seria devido, seria adequado, seria elogioso se tentar pelo menos incluir alguma noção do que são esses idiomas, como eles são, qual o papel que eles tiveram na formação do português no Brasil e o que o conhecimento deles pode trazer para a gente até hoje.
Agência FAPESP – Vamos falar de outra área na qual você deu uma contribuição importantíssima: a tradução. O Ulysses e Grande Sertão: Veredas tinham a fama de serem livros intraduzíveis. No entanto, Curt Meyer-Clason traduziu Grande Sertão: Veredas para o alemão e você traduziu Ulysses para o português. E ainda escreveu um guia para a visitação da obra. Como é traduzir um livro intraduzível?
Galindo – Eu gosto de dizer para os alunos que a ideia frequentemente repetida da intraduzibilidade de uma ou outra obra, ou da poesia, ou desse ou daquele gênero literário, tende a trombar com o fato de que alguém sempre acaba indo lá e traduzindo. E um determinado público aceita essa tradução como válida e insiste em se relacionar com aquele texto como se ele fosse o original. A tradução tem essa mania de desmentir os discursos da intraduzibilidade. O discurso da intraduzibilidade, especialmente na literatura, é muito engraçado, porque, se você for olhar as coisas no miúdo, vai chegar à conclusão de que todo e qualquer texto é intraduzível. Se você colocar, por exemplo, o nível de exigência no grau 11, nenhum texto é traduzível. Mas a tradução continua existindo. Então, o conceito de intraduzibilidade, como o de incomunicabilidade, acaba não servindo para grandes coisas. E, se você baixar do grau 11, vai muito facilmente descobrir que todos os textos são traduzíveis. Vai depender sempre de que conceito de tradução, para que público, em que mercado, com que tipo de ressalva, às vezes, ou de aparato, mas as coisas se fazem. O Ulysses e o Grande Sertão são livros muito difíceis de traduzir. São livros que demandam muito trabalho de pesquisa, muito trabalho de criação, de ataque, de violência contra a própria língua do tradutor. Você tem que mexer no português com muita violência e muita criatividade para produzir um bom Ulysses em português. E tem uma assimetria envolvida nisso também, porque, se eu estou traduzindo Ulysses do inglês para português, estou me beneficiando do fato de traduzir da língua mais veiculada do mundo para a minha, que eu conheço bem direitinho. Então, eu estou em uma posição mais tranquila do que a pessoa que está traduzindo um livro difícil de uma cultura ‘menor’, entre muitas aspas, para uma cultura ‘maior’. A Alison Entrekin, que vai publicar em 2026 a tradução do Grande Sertão: Veredas em inglês, está numa posição muito pior que a minha, porque está traduzindo um texto de uma cultura menos exposta, menos conhecida, menos visível, um livro com uma fortuna crítica, por mais que muito grande, muito menor do que a do Ulysses. Ela está sobre os ombros de gigantes mais baixos do que os gigantes que me permitiram traduzir Ulysses. E está lidando com o fato de ter que apresentar não só um livro e uma linguagem, mas uma cultura completamente desconhecida para os falantes de inglês. Isso não é verdade na outra mão. Nós temos uma familiaridade muito maior com aquela cultura, com aquelas culturas. Então, como é traduzir um livro intraduzível? Em um certo sentido, é, aparentemente, e de forma paradoxal, muito libertador, porque no momento em que você começa a trabalhar em um lugar no qual fica claro para todos os envolvidos, editores, autores, tradutores e leitores, que a exigência de total correspondência ou de quase total correspondência é uma quimera, você se vê dotado de muita margem de manobra. E essa margem de manobra é concedida e aquiescida por todas essas partes. Todo mundo sabe, por exemplo, que para traduzir um soneto metrificado, rimado, com anagramas, um soneto acróstico, você vai ter de tomar algumas liberdades para conseguir realizar a sua tarefa, que é muito complicada. Todo mundo sabe que uma ginasta que está fazendo exercício na trave de equilíbrio não vai poder fazer certas coisas que ela faria no solo e você não espera mais aquilo dela. Você sabe que ela está lidando com uma situação mais restrita e mais complicada. E é bonito trabalhar nesses regimes, é bonito trabalhar restrito, eu acho agradável. E libera para algumas outras coisas, libera para um grau de invenção maior. Dito tudo isso, eu só devo registrar que o Finnegans Wake, o romance final do Joyce, este sim é um livro que coloca a questão da intraduzibilidade em outro patamar. Tanto que é um livro que eu estou tentando traduzir há quase 20 anos e simplesmente desisti de responder às perguntas sobre quando vou entregar, se vou entregar, o que vai acontecer. É um livro que coloca a questão da significação em outro plano, a questão da leitura em outro plano. É difícil saber se dá para ler o Finnegans Wake, é difícil saber se ele quer ser legível, se o projeto dele é esse, se a intenção de uma boa leitura do Wake é ler o livro de fato, no sentido tradicional de entender o livro. Será que dá para entender o Wake, será que ele quer dizer alguma coisa clara? É tudo muito complicado, mesmo no inglês. Como é que você traduz tudo isso, como é que você aceita expor para o seu público um livro dizendo que esse livro é o equivalente funcional do original? O grande Paulo Henriques Britto sempre lembra que o objetivo da tradução literária é fornecer um texto B que, para alguém que não seja capaz de ler o texto A, funcione de maneira tal que a pessoa possa ler apenas B e dizer sem mentir que leu A: tipo eu li a Anna Karenina e não leio russo, eu li O Amor no Novo Milênio, de Can Xue, e não leio mandarim. Funciona assim. Mas, no caso do Wake, eu e todos os tradutores nos colocamos em uma posição muito complicada, eu não sei se consigo dizer honestamente que as traduções que eu já produzi permitem esse procedimento, e eu não sei se alguém vai poder saber algum dia.
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