Dia da retirada dos 80 baldes, utilizados nas armadilhas de interceptação e queda para captura de animais. O pesquisador Felipe Augusto Zanusso Souza é o último à direita (foto: Jordana Ferreira/Inpa)

Pesquisa de campo
O desafio de planejar uma expedição científica à Amazônia
21 de novembro de 2024

Felipe Augusto Zanusso Souza, pós-doutorando no Laboratório de Ecologia e Evolução de Vertebrados do Inpa, detalha à Agência FAPESP como é organizar uma missão a campo em área remota da floresta tropical

Pesquisa de campo
O desafio de planejar uma expedição científica à Amazônia

Felipe Augusto Zanusso Souza, pós-doutorando no Laboratório de Ecologia e Evolução de Vertebrados do Inpa, detalha à Agência FAPESP como é organizar uma missão a campo em área remota da floresta tropical

21 de novembro de 2024

Dia da retirada dos 80 baldes, utilizados nas armadilhas de interceptação e queda para captura de animais. O pesquisador Felipe Augusto Zanusso Souza é o último à direita (foto: Jordana Ferreira/Inpa)

 

Bruna Bopp | Agência FAPESP – Uma expedição científica começa muito tempo antes do dia de embarque. No caso da missão à Estação Ecológica (Esec) de Maracá, em Roraima, realizada no âmbito do projeto “Mudanças climáticas e a sociobiodiversidade amazônica: perspectivas da herpetofauna”, da Iniciativa Amazônia+10, foram ao menos seis meses de planejamento conjunto (leia mais em: agencia.fapesp.br/53352).

"Decidimos em março que a ida a campo aconteceria entre setembro e outubro, ainda considerado o período chuvoso no Estado, ideal para as pesquisas com anfíbios e répteis. Com isso definido, demos entrada nos processos de autorização e licenciamento necessários junto às instituições responsáveis", conta Felipe Augusto Zanusso Souza, pós-doutorando no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e responsável pela logística da expedição, que foi liderada pela pesquisadora Fernanda Werneck, também do Inpa.

A seguir, Souza descreve com detalhes as etapas de organização do trabalho de campo, que reuniu mais de 28 pessoas, entre elas 20 pesquisadores, e teve duração de 28 dias em uma área isolada de Roraima, a Ilha de Maracá, a cerca de 130 quilômetros de Boa Vista.


(imagem: Agência FAPESP/montagem feita com imagens do Google Maps)

Licenças e autorizações

O primeiro passo de qualquer expedição deve ser a articulação com as instituições responsáveis pela gestão da área onde se pretende realizar a pesquisa, para poder dar entrada nos processos de autorizações e licenciamentos necessários. Como nossa missão aconteceria em uma unidade de conservação sob gestão federal, a primeira conversa ocorreu com os analistas responsáveis pela realização das pesquisas na Estação Ecológica de Maracá. Também foi necessário o registro da expedição no SISBiO [sistema de atendimento a distância que permite a pesquisadores solicitar autorizações para coleta de material biológico e realização de pesquisa em unidades de conservação federais e cavernas] e no Comitê de Ética no Uso de Animais (Ceua) do Inpa, bem como solicitar a autorização para transporte desses indivíduos para a Coleção Científica de Anfíbios e Répteis do Inpa.

É importante destacar o caráter técnico-científico da expedição e a importância dessa dimensão burocrática, que precisa ser encaminhada o quanto antes para garantir que a equipe envolvida na expedição esteja devidamente autorizada em tempo.

Enquanto as autorizações eram solicitadas, foi feita a articulação com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que administra e fiscaliza a Esec Maracá e nos apoiou em todas as etapas da expedição. Foram realizadas diversas reuniões de alinhamento tanto do ponto vista técnico quanto logístico, para garantir aspectos como as datas de entrada e troca de equipes, a reserva do alojamento nas datas da expedição, apoio da equipe local e no contato com fornecedores.

A articulação com o ICMBio foi fundamental para o desenho das próximas etapas da expedição, que envolveu a definição dos objetivos e a dimensão dos trabalhos de pesquisa e da equipe de pesquisadores que estaria em campo. Também foi importante a indicação de contatos de assistentes de campo locais, com experiência e conhecimento da realidade da região, para dar apoio durante os trabalhos da expedição. Os assistentes são moradores da região que já atuam em atividades de pesquisa e monitoramento desenvolvidas pelo ICMBio. Nesse tipo de missão, é fundamental contar com o apoio de pessoas que conhecem o local e o contato antecipado foi fundamental para garantir que estivessem disponíveis na data. Nesse período, também foi realizada a articulação com a equipe responsável por garantir o funcionamento da cozinha durante a expedição.

Ao mesmo tempo, identificamos e entramos em contato com fornecedores de materiais e prestadores de serviços necessários antes, durante e depois do campo. Isso envolveu, por exemplo, a compra de suprimentos ainda em Manaus, o transporte das equipes até Boa Vista, a hospedagem até a saída para a Esec, o transporte até a Esec, compra de reagentes [como álcool e formol] para o desenvolvimento das pesquisas, empresas de fretes para envio dos materiais e equipamentos de pesquisa etc.

Reconhecimento do terreno

Os assistentes de campo são peça fundamental em qualquer expedição. Os que envolvemos na missão à Esec Maracá moram na Terra Indígena Boqueirão. Diversos moradores têm um histórico de atuação na Esec a partir de outras iniciativas do ICMBio, o que faz com que conheçam bastante as características e dinâmica da Unidade de Conservação. Hoje essa atividade é uma alternativa de renda para muitos deles.

Dois ajudantes de campo acompanharam a expedição ao longo dos 28 dias. Nos momentos mais intensos, de montagem e desmontagem das armadilhas – os três primeiros dias e os dois últimos –, foram contratados mais quatro auxiliares. Esse incremento da equipe foi importante para otimizar o processo de instalação das armadilhas, já que a captura dos animais era ponto de partida para o começo dos experimentos e pesquisas durante a expedição.

Chegamos no dia 4 de setembro de 2024 na Esec e fizemos o reconhecimento do local; no dia 5, instalamos as armadilhas de interceptação e queda, que são enterradas no solo; e, no dia 6, podemos dizer, a captura de animais já estava sendo iniciada, garantindo tão logo o começo da pesquisa. Foi importante garantir essa agilidade no começo do trabalho de campo.

Meses antes, as equipes de pesquisa já tinham feito o reconhecimento prévio da região, com estudo das áreas ideais e as espécies de anfíbios e répteis que poderiam ser encontradas na Unidade de Conservação.

A proposta era instalar uma linha com armadilhas em um ambiente de terra firme e outra mais próxima da área de vegetação aberta, conhecida como lavrado.

Pelas imagens de satélite, foram identificadas algumas áreas potenciais e interessantes. Porém, ao chegar a campo, identificamos que uma das áreas de interesse ainda estava bastante alagada, o que inviabilizaria a instalação de armadilhas no local. Os assistentes apontaram uma alternativa: outra trilha, um pouco mais longa, mas que atendia aos interesses da pesquisa.

Esse tipo de troca aconteceu o tempo inteiro durante a viagem.

Em dois momentos, o grupo de pesquisadores fez o que chamamos de “Laboratórios de Portas Abertas". Convidamos todas as pessoas que estavam na base, equipes do ICMBio, da Força Nacional, das frentes de fiscalização, os assistentes de campo e de cozinha, para apresentar as pesquisas que estávamos desenvolvendo. Nesses momentos, apresentamos o contexto e a importância da pesquisa focada nos impactos das mudanças climáticas nos anfíbios e répteis, como funcionavam as armadilhas instaladas nas trilhas e os experimentos ecofisiológicos realizados nos laboratórios. Foi uma oportunidade interessante de intercâmbio de conhecimento com as pessoas com as quais estávamos convivendo diariamente na base e que tinham curiosidade de saber sobre as pesquisas desenvolvidas pela equipe.

Esse intercâmbio foi bastante interessante com os assistentes de campo, que não tinham trabalhado com anfíbios e répteis antes. Ao final dos trabalhos, eles já estavam encontrando animais na vegetação e identificando algumas espécies pelo nome. Isso demonstra o envolvimento e a proatividade dessas pessoas, que levarão esse conhecimento para outras missões a serem desenvolvidas na região. É incrível observar o comprometimento deles com a conservação daquele lugar!

Segurança

A base do ICMBio na Esec Maracá é protegida pela Força Nacional de Segurança Pública. Por isso, as entradas e saídas das equipes do ICMBio são escoltadas por policiais armados. A cada 15 dias, o ICMBio tem um sistema de troca de equipe da base, tanto de seus funcionários como os da Força Nacional. Por recomendação do ICMBio, nos organizamos para entrar e sair da Esec junto com essas trocas. Por isso, tivemos alguns membros da equipe que permaneceram na Esec os 14 primeiros dias da expedição, outros que chegaram na segunda quinzena e alguns que permaneceram os 28 dias de missão.


Duas equipes se revezaram durante 28 dias na Esec Maracá, sempre com escolta da Força Nacional de Segurança Pública.
Na foto, time que conduziu a expedição nas primeiras duas semanas (foto: David Ayronn/BIOTA Cerrado)

O comboio saiu em 4 de setembro, às 7 horas da manhã, de Boa Vista em direção a Maracá. Todas as vezes em que foi necessário utilizar a balsa para atravessar o rio que dá acesso à estação, houve o acompanhamento dos profissionais da Força Nacional. Em alguns dias realizamos a busca ativa de espécies de lagartos na região do entorno da Esec.

No âmbito da equipe, adotamos outras medidas de segurança, como nunca sair sozinho para as trilhas, sempre avisar alguém da coordenação para onde estava indo e, sempre que possível, ir acompanhado pelos assistentes de campo. Como não havia sinal de celular, foram utilizados radiocomunicadores para facilitar a interação das equipes tanto em campo como na própria base. A comunicação externa foi garantida por uma internet a rádio mantida pelo próprio ICMBio.

A coordenadora da expedição também providenciou uma caixa de primeiros socorros para garantir que, em situações de problemas, como sintomas de resfriados, as pessoas pudessem ser medicadas.

Outro aspecto que envolveu a segurança foi a manutenção de um veículo 4x4 alugado, disponível durante toda a expedição. Apesar da dinâmica da Esec não demandar a presença de um veículo, optamos por garantir essa estratégia de modo que, em caso de alguma urgência ou de necessidade logística, como a compra de algo, estivesse disponível.

Alimentação

Não é qualquer profissional que consegue dar conta da alimentação diária de uma equipe de mais de 25 pessoas por quase 30 dias. O cozinheiro que nos acompanhou é considerado um dos melhores da região. Ele nos ajudou com a lista de compras, fez a estimativa da quantidade de alimentos, elaborou o cardápio, levando sempre em conta as restrições alimentares dos membros da equipe. E ainda nos acompanhou no mercado e na feira livre dois dias antes de embarcarmos.

Tudo precisa ser pensado, desde a compra das frutas e vegetais, que não poderiam estar muito maduros para durar o maior tempo possível, até o armazenamento das carnes para garantir sua qualidade.

A alimentação foi composta de alimentos básicos, para garantir a energia necessária da equipe, mas com toques de criatividade do grupo de cozinheiros, que caprichou e incrementou com receitas regionais com açaí e o tradicional “Peixe à Delícia”, prato tradicional de peixe frito ao molho branco e queijo. Além de sobremesas e bolo para os aniversariantes do mês!

Na bagagem

Numa viagem para uma área isolada, todos os equipamentos, alimentos, materiais precisam estar previstos na bagagem, já que, no lugar, não há a opção de sair para comprar ou buscar algo.

Dessa forma, além da compra dos alimentos, também levamos muitos equipamentos de laboratório, câmeras fotográficas, baldes para as armadilhas, ferramentas, balanças de precisão, álcool, formol, produtos de limpeza, caixas de isopor e um gerador reserva. Cada equipe também trouxe os seus próprios materiais para experimentos, além das bagagens pessoais.

Não à toa, ao verificar o volume de material a ser carregado, optamos por alugar um caminhão para viabilizar o transporte. No total, fomos em um carro 4x4, uma van para o transporte de passageiros e um caminhão para o transporte dos materiais e mantimentos.

Ao chegar ao rio Uraricoera, que faz o limite da Ilha de Maracá, carregamos a balsa e, do outro lado do rio, fizemos o transbordo em inúmeras viagens de carro para conseguir levar todos os materiais até a base. Em virtude de a estrada de acesso até a base estar muito ruim, o caminhão não pôde atravessar a balsa.


Travessia de balsa sobre o rio Uraricoera para chegada na Ilha de Maracá. Equipamentos, material de pesquisa,
suprimentos, pessoas e veículos foram embarcados para travessia
(foto: Jordana Ferreira/Inpa)

Experiência para a vida

Para alguns pesquisadores, esta expedição foi a primeira oportunidade de estar na Amazônia. Então, semanas antes da viagem, encaminhamos documentos com orientações e recomendações, como vestimentas adequadas, botas, repelente e protetor solar. Também sugerimos que levassem lanterna, roupas de cama e redes, além de seus próprios medicamentos.

Para mim, essa foi a maior expedição que já organizei, o que trouxe desafios e uma oportunidade incrível de aprendizado. Já tinha certa experiência com logística de campo, mas liderar uma operação de grande escala, envolvendo múltiplas instituições e uma equipe diversa, foi algo novo. Contar com a experiência da coordenadora Fernanda Werneck foi essencial para estruturar e garantir que tudo ocorresse conforme o planejado. Juntos conseguimos garantir o sucesso da missão.

No total, foram nove pesquisadores do Amazonas, uma de Roraima, dois de São Paulo, três do Paraná, quatro de Brasília e um da Paraíba, além dos seis mateiros, o cozinheiro e sua ajudante. É importante destacar que o trabalho de campo envolve, além da pesquisa, a logística e o trabalho colaborativo em equipe.

A desmobilização, por exemplo, começou quatro dias antes da saída da Esec, o que implicou a retirada das armadilhas, limpeza, organização, empacotamento em caixas, de modo a garantir que o retorno de todo o material ocorra em perfeito estado e possa ser utilizado nas próximas expedições.

E o mais importante: armazenar adequadamente os animais e as amostras biológicas coletadas, garantindo que cheguem a Manaus, possam ser tombados na Coleção Científica de Anfíbios e Répteis do Inpa e virar objeto de estudos e pesquisas futuras.

Prestação de contas

Cada Fundação de Amparo à Pesquisa [FAP] envolvida na Iniciativa Amazônia+10 possui estratégias distintas de prestação de contas. Como os pagamentos precisam ser realizados individualmente por pesquisador coordenador, é importante que os documentos fiscais que comprovem os gastos estejam adequados às exigências. Para isso, tinha sempre comigo as informações necessárias de cada FAP de forma a garantir que o prestador de serviço emitisse a nota fiscal de acordo com as exigências das instituições. A expedição contou também com cofinanciamento do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico].

Com base na nossa experiência, estas são algumas dicas para organizar expedições futuras:

- Definir data ou período ideal para a expedição, considerando as condições climáticas, bem como os objetivos e equipe a ser envolvida - Fazer o alinhamento institucional com os responsáveis pela gestão da área onde a expedição será realizada e parceiros importantes - Obter as licenças e autorizações necessárias - Planejar a expedição em etapas/blocos de prioridade: deslocamento da equipe, hospedagem, alimentação, fornecedores etc. - Garantir o envolvimento de assistentes locais e, se possível, capacitar jovens da comunidade para colaborar na pesquisa - Antecipar a contratação de alguns serviços que podem ser essenciais para a expedição, tais como transporte, locação de carros/barcos, hotéis etc. - Criar um checklist compartilhado de materiais e equipamentos para evitar esquecimentos. Essa lista deve ser a mais completa possível, incluindo as compras a serem realizadas [para pesquisa, alimentação, limpeza da base etc.] e os serviços que serão necessários durante a expedição; 
- Ter um núcleo de coordenação da expedição que possa compartilhar as dificuldades e pensar em soluções alternativas em caso de necessidade de mudanças de planos; 
- Garantir que, caso seja necessário, os responsáveis pela logística da expedição possam estar dedicados antecipadamente, inclusive com o deslocamento para a região alguns dias antes de modo a organizar previamente o que for possível - Ficar atento às rubricas de recursos disponíveis para a realização da expedição, às formas de pagamento disponíveis e às exigências de prestação de contas da agência financiadora; 
- Garantir que a alimentação seja suficiente e atenda às restrições da equipe. É fundamental que a equipe esteja bem alimentada para desempenhar os trabalhos da melhor forma possível - Antecipar possíveis problemas durante a expedição e propor soluções. Por exemplo, para o desenvolvimento das nossas pesquisas era essencial garantir o fornecimento de energia. A Esec é atendida pelo fornecimento de energia, além de possuir um gerador em caso de falha da rede. No entanto, caso as duas alternativas falhassem, tínhamos um gerador portátil que poderia manter o laboratório funcionando por horas caso a energia na estação acabasse; 
- Criar, na medida do possível, um ambiente harmônico entre as equipes, de modo a evitar conflitos interpessoais. Em expedições de longa duração, é normal que em alguns dias algumas pessoas estejam mais cansadas ou introspectivas; respeite e esteja atento a esses sinais; 
- Buscar dicas com pessoas que têm experiência nesse tipo de expedição. Elas são sempre bem-vindas e ajudam muito a antecipar possíveis imprevistos

Expedições como essa não apenas ampliam o conhecimento científico, mas também fortalecem laços entre pesquisadores e comunidades locais, promovendo uma conservação mais integrada e colaborativa na Amazônia.

A expedição em números

28 dias
28 pessoas
3 horas de distância de Boa Vista
285 quilos de carne
70 quilos de arroz
55 galões de 20 litros de água
5 bujões de gás
20 pontos de armadilhas de interceptação e queda, totalizando 80 baldes
400 indivíduos, amostras biológicas e dados ecológicos associados coletados
• Mais de R$ 140 mil em custos totais aproximados.
 

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