Celacanto exposto no Museu Nacional de História Natural, nos Estados Unidos: em trabalhos futuros, pesquisadores pretendem analisar as semelhanças dos músculos cranianos do peixe com os de tetrápodes, como anfíbios e répteis (foto: NRF-SAIAB 34464, Coelacanth, SAIAB. Imagem cedida para a FAPESP pelo NMNH SI)

Evolução
Novo exame de peixe considerado ‘fóssil vivo’ muda a compreensão da evolução craniana dos vertebrados
30 de abril de 2025

Pesquisadores reanalisaram a musculatura do crânio do celacanto, pertencente a um grupo presente na Terra há 400 milhões de anos, e concluíram que muitas estruturas haviam sido descritas incorretamente. Estudo foi divulgado hoje na Science Advances por pesquisadores da USP e da Smithsonian Institution

Evolução
Novo exame de peixe considerado ‘fóssil vivo’ muda a compreensão da evolução craniana dos vertebrados

Pesquisadores reanalisaram a musculatura do crânio do celacanto, pertencente a um grupo presente na Terra há 400 milhões de anos, e concluíram que muitas estruturas haviam sido descritas incorretamente. Estudo foi divulgado hoje na Science Advances por pesquisadores da USP e da Smithsonian Institution

30 de abril de 2025

Celacanto exposto no Museu Nacional de História Natural, nos Estados Unidos: em trabalhos futuros, pesquisadores pretendem analisar as semelhanças dos músculos cranianos do peixe com os de tetrápodes, como anfíbios e répteis (foto: NRF-SAIAB 34464, Coelacanth, SAIAB. Imagem cedida para a FAPESP pelo NMNH SI)

 

André Julião | Agência FAPESP – O celacanto é conhecido como “fóssil vivo”, uma vez que sua anatomia pouco mudou nos últimos 65 milhões de anos. Apesar de ser um dos peixes mais estudados da história, ele ainda reserva surpresas que podem mudar a própria compreensão da evolução dos vertebrados. É o que revela estudo publicado hoje (30/04) na revista Science Advances por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Smithsonian Institution, nos Estados Unidos.

Num novo exame da musculatura craniana do celacanto africano (Latimeria chalumnae), os autores fizeram descobertas que demonstraram que apenas 13% das novidades evolutivas musculares previamente identificadas para as maiores linhagens de vertebrados estavam corretas. Ao mesmo tempo, o estudo identificou nove novas transformações evolutivas relacionadas a inovações na alimentação e respiração desses grupos.

“Em última instância, ele é ainda mais similar aos peixes cartilaginosos [tubarões, raias e quimeras] e tetrápodes [aves, mamíferos, anfíbios e répteis] do que se pensava. E ainda mais distinto dos peixes de nadadeira raiada, que são cerca de metade dos vertebrados viventes”, conta Aléssio Datovo, professor do Museu de Zoologia (MZ-USP) apoiado pela FAPESP, que liderou o estudo.

Dentre as novidades evolutivas apontadas erroneamente como presentes nos celacantos, estão músculos responsáveis pela expansão ativa da chamada cavidade bucofaringeana, que vai da boca à faringe. Esse conjunto de músculos está diretamente relacionado à captura de alimento e à respiração. Porém, o estudo demonstrou que esses supostos músculos em celacantos eram, na verdade, ligamentos, estruturas incapazes de contração.

Os peixes de nadadeira raiada (actinopterígeos) e os de nadadeira lobada (sarcopterígeos) separaram-se de um ancestral comum cerca de 420 milhões de anos atrás. Os sarcopterígeos incluem peixes como o celacanto e os peixes pulmonados, mas também todos os outros tetrápodes, pois evoluíram de um ancestral aquático: mamíferos, aves, répteis e anfíbios.

Nos peixes de nadadeira raiada, como as carpas de aquário, por exemplo, é fácil notar que a boca se desloca de tal forma a sugar os alimentos. Essa capacidade deu ao actinopterígeos uma imensa vantagem evolutiva, tanto que hoje eles compõem cerca de metade de todos os vertebrados viventes.

Essa é uma diferença fundamental para os demais peixes, como o celacanto e os tubarões, por exemplo, que se alimentam primordialmente mordendo as presas.

“Nos estudos anteriores, era dado que esse conjunto de músculos que daria maior capacidade de sucção estava presente também nos celacantos e, portanto, teria evoluído no ancestral comum dos vertebrados ósseos, o que mostramos agora não ser verdade. Isso só surgiu pelo menos 30 milhões de anos depois, no ancestral comum dos peixes de nadadeira raiada viventes”, aponta Datovo.


Um dos autores do estudo, Aléssio Datovo posa ao lado de um exemplar de celacanto exposto no Museu Nacional de História Natural, da Smithsonian Institution (foto: arquivo pessoal)

Bastidores

Os celacantos são peixes extremamente raros de se encontrar na natureza, uma vez que vivem cerca de 300 metros abaixo da superfície da água e passam o dia dentro de cavernas submarinas.

Parte da explicação para ter mudado tão pouco desde a extinção dos dinossauros é justamente essa: sem predadores, num ambiente relativamente protegido, as alterações no seu genoma foram lentas, como mostrou estudo de 2013 publicado na revista Nature.

Há cerca de 400 milhões de anos na Terra, os celacantos eram conhecidos primeiro apenas por fósseis. Somente em 1938 foi encontrado um animal vivo, para espanto dos cientistas. Em 1999, outra espécie foi descrita (Latimeria chalumnae) nos mares da Ásia.

Dada a raridade de exemplares presentes em museus, os pesquisadores da USP e do Museu Nacional de História Natural, da Smithsonian Institution, tiveram de ser perseverantes para conseguir que alguma instituição cedesse animais para serem dissecados.

Finalmente, o Field Museum, de Chicago, e o Virginia Institute of Marine Science, ambos dos Estados Unidos, concordaram em emprestar um exemplar cada. O mérito por ter conseguido o empréstimo, segundo Datovo, é de G. David Johnson, coautor do artigo.

Nascido em 1945, Johnson, “provavelmente o maior anatomista de peixes de seu tempo”, segundo Datovo, faleceu em novembro de 2024, após um acidente doméstico, enquanto o estudo estava em processo de revisão.

Contribuição

“Diferentemente do que possa parecer, a dissecção de um exemplar não significa destruí-lo, desde que ela seja bem-feita”, afirma Datovo.

O pesquisador, que faz esse tipo de estudo há mais de 20 anos, levou seis meses para separar todos os músculos e ossos cranianos do celacanto. Agora, essas estruturas estão preservadas e podem ser estudadas individualmente por outros cientistas, sem que um novo animal precise ser dissecado.

Ao ver com os próprios olhos cada músculo e nervo, os autores puderam apontar com certeza o que realmente havia na cabeça do celacanto, indicar estruturas nunca descritas e corrigir erros, alguns repetidos na literatura científica por mais de 70 anos.

“Havia muitas contradições na literatura. Quando finalmente conseguimos examinar os exemplares, detectamos uma quantidade de erros maior do que imaginávamos. Por exemplo, 11 estruturas descritas como músculos eram, na verdade, ligamentos ou outros tipos de tecido conjuntivo. Isso tem uma consequência drástica para o funcionamento da boca e da respiração, porque músculos performam movimento, enquanto ligamentos apenas o transmitem”, explica.

Pela posição ocupada pelos celacantos na árvore da vida dos vertebrados, a descoberta impacta o entendimento da evolução craniana em todos os outros grandes grupos de vertebrados.

Com as informações, o pesquisador recorreu a imagens de microtomografia em três dimensões de crânios de outros grupos de peixes, extintos e viventes. Essas imagens são disponibilizadas por outros pesquisadores que estudam anatomia de peixes quando realizam escaneamentos 3D.

A partir das imagens dos ossos cranianos de outros peixes de linhagens completamente extintas, Datovo e Johnson puderam inferir onde se encaixariam os músculos encontrados nos celacantos, elucidando a evolução desses músculos nos primeiros vertebrados com mandíbula. Em trabalhos futuros, Datovo pretende analisar as semelhanças com os músculos dos tetrápodes, como anfíbios e répteis.

O artigo Coelacanths illuminate deep-time evolution of cranial musculature in jawed vertebrates pode ser lido em: www.science.org/doi/reader/10.1126/sciadv.adt1576.

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