Pedro Vieira, fotografado por sua filha, Catarina, perto do Perimeter Institute, em Waterloo, no Canadá (foto: Catarina Vieira)

Entrevista
Nova abordagem do modelo bootstrap busca definir o espaço das teorias possíveis
13 de setembro de 2023

Tema reuniu pesquisadores de vanguarda em conferência realizada em São Paulo. Idealizador do evento, o premiado físico Pedro Vieira fala à Agência FAPESP

Entrevista
Nova abordagem do modelo bootstrap busca definir o espaço das teorias possíveis

Tema reuniu pesquisadores de vanguarda em conferência realizada em São Paulo. Idealizador do evento, o premiado físico Pedro Vieira fala à Agência FAPESP

13 de setembro de 2023

Pedro Vieira, fotografado por sua filha, Catarina, perto do Perimeter Institute, em Waterloo, no Canadá (foto: Catarina Vieira)

 

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Para discutir não uma teoria específica, mas o espaço das teorias possíveis, a conferência Bootstrap 2023 reuniu pesquisadores de vanguarda, pós-doutores e estudantes no Instituto Sul-Americano para Pesquisa Fundamental (ICTP-SAIFR), um centro apoiado pela FAPESP e sediado no Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp), em São Paulo. No total, cerca de 200 pessoas participaram das três semanas da reunião, que se desdobrou em palestras, cursos e debates livres.

A palavra bootstrap (cadarço de bota, em inglês) foi usada pela primeira vez em física nos anos 1960. Utilizado pelo norte-americano Geoffrey Chew (1924-2019) e outros, o termo era uma brincadeira com a expressão “erguer-se no ar puxando os cadarços das próprias botas”. Isso é evidentemente impossível, mas o que se pretendia transmitir era a ideia de autoconsistência, de algo capaz de ficar de pé por si mesmo. E buscava nomear a tentativa de construir uma teoria quântica de campo baseada em suposições muito gerais sobre as partículas que constituiriam a matéria.

Tal empreendimento provocou, de início, grande entusiasmo. Mas foi posteriormente abandonado. No início da segunda década deste século, uma nova abordagem bootstrap, bem mais abrangente, voltou a ganhar força. E hoje constitui uma das fortes linhas de investigação científica. Essa revisão tem como principais protagonistas os integrantes da Colaboração Bootstrap, que se reuniu na conferência.

A colaboração foi criada pelos físicos Pedro Vieira e Leonardo Rastelli. Contemplado com alguns dos mais importantes prêmios internacionais (leia mais em: agencia.fapesp.br/27061/ e agencia.fapesp.br/31451), o português Vieira divide seu tempo entre o ICTP-SAIFR e o Perimeter Institute, no Canadá. Durante sua última passagem por São Paulo, ele falou à Agência FAPESP sobre o modelo bootstrap, a colaboração e a conferência.

Agência FAPESP – Como surgiu a Colaboração Bootstrap?
Pedro Vieira – Foi em 2011. Leonardo Rastelli e eu estávamos passeando a pé pelas ruas de Copenhague [Dinamarca] e conversávamos sobre um artigo fantástico que acabara de ser publicado. Nele, os autores mostravam que qualquer teoria que pudesse ser reduzida a uma equação na qual um conjunto de termos positivos fosse igual a zero teria de ser, necessariamente, uma teoria impossível. Porque é impossível somar apenas termos positivos e obter zero. A ideia era incrivelmente simples e nós estávamos intrigados em saber como, a partir de algo tão óbvio, eles haviam conseguido chegar a resultados concretos muito interessantes. Eu disse para Rastelli: vamos juntar esse pessoal todo para pensar nessas ideias, que parecem promissoras. Foi assim que organizamos nossa primeira conferência, no Perimeter Institute, no Canadá, onde ainda trabalho. Essa conferência, extremamente informal, chamou-se “Back to Bootstrap” [De volta ao Bootstrap]. Reuniu, na época, 20 pessoas e foi a semente do que é, hoje, nossa colaboração.

Agência FAPESP – Desde essa época a colaboração cresceu muito, não foi?
Vieira – Sim. Na conferência que acabamos de realizar no ICTP-SAIFR tivemos cerca de 200 participantes: pesquisadores trabalhando em várias frentes de atuação, pós-doutores, estudantes. Nosso grande salto ocorreu em 2016, quando concorremos e fomos contemplados com uma bolsa internacional da Simon Foundation. Essa fundação, sediada nos Estados Unidos, acolhe apenas uma nova colaboração por ano. Mas oferece bolsas de muitos milhões de dólares para cada pesquisador principal. Somos atualmente 14 pesquisadores principais na Colaboração Bootstrap. E cada um de nós recebeu bastante dinheiro para contratar pós-doutorandos, atrair alunos, organizar conferências. Esse apoio nos deu um enorme empurrão. Porém, fizemos questão de manter uma característica que é nossa marca desde o início: a informalidade. Nossas conferências talvez sejam as únicas reuniões científicas internacionais da atualidade que não usam PowerPoint e outros recursos audiovisuais. O expositor faz sua apresentação no quadro-negro e pode ser interrompido a qualquer momento pela audiência. Não queremos que a formalidade prejudique o processo criativo.

Agência FAPESP – E essa informalidade criativa também se manifesta no temário das conferências?
Vieira – Sim. São muitos subcampos e perspectivas diferentes englobados pela ideia de bootstrap, tendo como único critério princípios muito gerais de simetria e autoconsistência e as questões ainda não resolvidas da física quântica como o tema central. Nesta última conferência, foram três semanas de intensa interação, com palestras e cursos no período da manhã e discussões livres e apresentações espontâneas no período da tarde.

Agência FAPESP – O foco na autoconsistência, que você mencionou, está na base da própria ideia de bootstrap e foi a principal motivação do “bootstrap histórico”, vamos chamar assim. Sabemos que esse bootstrap dos anos 1960 foi abandonado nas décadas seguintes. Em que o novo bootstrap se diferencia do anterior?
Vieira – A ideia por trás dessa palavra é, como você disse, a da autoconsistência, isto é, de utilizar princípios muito básicos, muito gerais, que toda a comunidade científica aceita, para, apenas com base nesses princípios, diferenciar o que é possível do que é impossível. Nas abordagens usuais da física, sabemos exatamente com que teoria estamos trabalhando, qual material estamos estudando, quais são suas propriedades, como seus vários componentes interagem uns com os outros etc. No bootstrap é diferente: não conhecemos a teoria. Por exemplo, não sabemos qual é a teoria que descreve a gravitação quântica; não sabemos quais são as regras que descrevem alguns materiais perto das chamadas transições de fase, quando as interações ficam mais intensas. Então, em vez de tentarmos estudar uma teoria particular, buscamos estudar o espaço de todas as teorias possíveis. É uma grande mudança, que se tornou viável por várias razões, entre elas, a possibilidade de utilizar simulações computacionais. Definimos os princípios gerais, em relação aos quais existe um grande consenso, e, depois, deixamos que os computadores testem as teorias que não violem esses princípios. Isso, que podemos fazer hoje graças aos atuais recursos computacionais, não podíamos fazer nos anos 1960 e 1970, quando se pensou em bootstrap pela primeira vez. Outra razão pela qual o bootstrap foi abandonado nos anos 1970 foi porque, naquela altura, se formulou a cromodinâmica quântica, a teoria que descreve a interação forte, que descreve o núcleo atômico. Quando foi estabelecida a cromodinâmica quântica e, de forma mais geral, quando foi estabelecida a teoria quântica de campos, passamos a ter uma lista de regras de como calcular. Então, com base nessas ferramentas, os físicos se puseram a calcular um grande conjunto de eventos. Havia muito trabalho a fazer. E a ideia de buscar teorias alternativas foi abandonada. A questão é que essas regras funcionam muito bem quando não estão em pauta acoplamentos fortes. Por exemplo, se lançamos um elétron contra o outro, sabemos que suas trajetórias vão sofrer desvios. E conseguimos calcular, com muitos dígitos, o valor desses desvios. A imagem que temos é a de que os elétrons se desviam porque jogam fótons um no outro. Jogam um fóton, dois fótons, três fótons, quatro fótons. Porém, existe sempre uma situação predominante, que é a de jogar um fóton. Esse é o efeito dominante. Os outros são efeitos secundários. Mas há muitas outras situações em física em que as coisas não acontecem assim. São situações em que todos os efeitos são igualmente importantes. Por exemplo, no interior do núcleo, onde interagem quarks e glúons. Também nesse caso, os quarks estão a jogar glúons uns nos outros. Mas não basta estudar um glúon ou dois glúons ou três glúons ou quatro glúons. É preciso estudar tudo ao mesmo tempo. E isso não sabemos fazer. Assim, chegamos a um ponto em que nos deparamos com esses problemas mais difíceis. Ou, para dar outro exemplo, quando queremos estudar efeitos extremos em gravitação quântica, como aqueles que ocorrem no interior dos buracos negros, nos quais os efeitos quânticos e da relatividade são tão fortes que nossas técnicas normais não funcionam. Não sabemos fazer as contas. De fato, o acoplamento fraco diz respeito a uma quantidade ínfima de fenômenos, em contraste com enormes possibilidades. Essa quantidade ínfima não consegue abarcar muitos dos fenômenos físicos mais importantes e interessantes com os quais nos deparamos hoje, desde a força nuclear forte até a supercondutividade em alta temperatura. Isso nos fez voltar ao bootstrap.

Agência FAPESP – Como é essa volta? O que está sendo feito?
Vieira – Por um lado, tentamos desenvolver novos métodos matemáticos para estudar teorias em que o acoplamento é forte. Por outro lado, e ao mesmo tempo, estudamos o espaço das teorias, mapeando o que é possível e o que é impossível. Nesse mapeamento, a ideia principal que utilizamos é aquela que lhe falei, de manipular a teoria para tentar extrair dela uma equação em que a soma de vários termos positivos resulte em zero. Se isso acontece, classificamos essa teoria como impossível. No começo, ninguém achava que isso nos levaria muito longe. A opinião predominante era a de que esse método só nos permitiria excluir teorias ridículas, patológicas, que não fazem o menor sentido. Mas a grande surpresa foi que, ao fazermos esses cálculos computacionais, descobrimos que quase tudo é impossível. É como um jogo de batalha naval em que quase tudo é água. Os barcos são minúsculos. E realmente tão pequenos que podem ser identificados com muitos dígitos. Atualmente, para algumas teorias, esse método é a melhor técnica computacional que existe. Porque as regiões possíveis são menores do que a incerteza que existe em outros métodos mais tradicionais. A partir do bootstrap, podemos obter uma previsão. E, depois, voltar à teoria convencional e melhorá-la para recalcular, com precisão ainda maior, o resultado obtido. É uma via de mão dupla. E um dos cursos que tivemos em nossa conferência tratou exatamente desse vaivém entre o bootstrap e as teorias convencionais.

Agência FAPESP – Você já recebeu importantes prêmios internacionais por seu trabalho em teoria de cordas. Como você concilia o bootstrap com a teoria de cordas?
Vieira – Quando o bootstrap começou, nos 1960 e 1970, a ideia era estudar física de partículas: o que acontece quando ocorre espalhamento de prótons, de nêutrons, de píons. E surgiu a proposição de não considerar nenhuma partícula como elementar, de estabelecer uma democracia entre as partículas e tentar, democraticamente, tratar da mesma forma todas elas. No bootstrap atual, nem sempre a noção de partícula é fundamental. Até porque a noção de partícula assume, em certo sentido, que o acoplamento seja fraco, pelo menos quando as partículas estão bem longe umas das outras. Só faz sentido falar em um elétron se o elétron estiver isolado. Quando estudamos um material em que todas as partículas interagem entre si fortemente, não cabe mais a noção de partícula, porque já não há nenhuma partícula livre: são milhões de partículas agindo ao mesmo tempo. Os comportamentos tornam-se coletivos. E a forma de pensar é mais a de correlação entre sinais. Eu tenho um material complicado, coloco um sinal no ponto x e o que isso afeta o ponto y? Quando falamos em material podemos estar imaginando literalmente uma pedra magnetizada – como quando estudamos física de baixas energias – ou o próprio espaço-tempo com inúmeras partículas interagindo fortemente entre elas – como quando estudamos física de altas energias. No bootstrap, pesquisadores dessas áreas tão distintas trabalham juntos, desenvolvendo ferramentas semelhantes para atacar problemas fisicamente muito diferentes. Em particular, na física de altas energias, uma das candidatas para descrever o que se passa é a teoria de cordas. Porém, a própria teoria de cordas pode beneficiar-se muito do bootstrap. Isso porque mesmo em teoria de cordas não sabemos o que acontece quando várias cordas interagem umas com as outras em regimes com fortes efeitos quânticos. Que regras são possíveis? Que teorias de cordas podem existir consistentemente? Se eu tiver uma teoria de cordas que possa ser expressa por uma equação em que todos os termos sejam positivos e a soma resulte igual a zero, essa teoria de cordas não pode existir! E, quando descobrimos ilhas de possibilidades, imediatamente queremos voltar para o papel e procurar entender que teoria de cordas poderá geral estes resultados do bootstrap. Assim, pessoal de cordas e pessoal do bootstrap têm aprendido muito uns com os outros. Foi, em particular, o que ocorreu nesta última conferência, realizada em São Paulo.
 

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