Módulo óptico digital do sistema de detecção do KM3NeT, fotografado por submarino a 3050 m de profundidade (imagem: KM3NeT/divulgação)

Física
Neutrino mais energético já observado é mensageiro de evento astrofísico extremo
12 de março de 2025

O experimento que realizou a detecção, a colaboração europeia KM3NeT, é complementar ao megaprojeto Dune, que tem expressiva participação de cientistas e técnicos de instituições brasileiras

Física
Neutrino mais energético já observado é mensageiro de evento astrofísico extremo

O experimento que realizou a detecção, a colaboração europeia KM3NeT, é complementar ao megaprojeto Dune, que tem expressiva participação de cientistas e técnicos de instituições brasileiras

12 de março de 2025

Módulo óptico digital do sistema de detecção do KM3NeT, fotografado por submarino a 3050 m de profundidade (imagem: KM3NeT/divulgação)

 

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – O neutrino mais energético de que se tem notícia foi detectado no fundo do mar Mediterrâneo: uma partícula cósmica com energia de aproximadamente 220 pétaeletrons-volts (PeV). Para se ter ideia, essa energia é cerca de mil vezes maior do que a das partículas geradas pelo Grande Colisor de Hádrons (LHC), o maior acelerador de partículas do mundo. O evento, denominado KM3-230213A, foi observado pela colaboração europeia KM3NeT em fevereiro de 2023. E a descoberta foi finalmente tornada pública em fevereiro deste ano, por meio de um artigo publicado na revista Nature com forte repercussão na mídia.

Os pesquisadores ainda não sabem de onde veio o tal neutrino. A suposição é a de que possa ter-se originado em fontes astrofísicas extremas, como blazares ou interações de raios cósmicos com o fundo cósmico de micro-ondas.

Blazar é um núcleo ativo de galáxia, tendo no centro um buraco negro supermassivo, com massa variando de milhões a bilhões de vezes a massa do Sol. A matéria (gás e poeira), atraída pelo buraco negro, forma um disco de acreção ao seu redor, cujo movimento gera intensa radiação eletromagnética. Uma parte do material colapsa no buraco negro e outra parte ricocheteia e é rebatida, produzindo dois jatos de partículas, ortogonais ao disco de acreção, que viajam pelo espaço em velocidades próximas à da luz. Quando um desses jatos está alinhado com a linha de visão da Terra, o núcleo galáctico é classificado como blazar. Os blazares constituem algumas das fontes de radiação mais energéticas do Universo conhecido.

Quanto ao fundo cósmico de micro-ondas (CMB, conforme as iniciais da denominação em inglês), ele seria a radiação remanescente do Big Bang, preenchendo todo o Universo a uma temperatura baixíssima, de aproximadamente 2,7 kelvin (K). Raios cósmicos, com energias superiores a 5 × 10¹⁹ eV, podem interagir com fótons do CMB por meio de processos como a produção de píons. Essas interações, que podem ocorrer relativamente perto da Terra em termos cosmológicos, contribuem para a produção de neutrinos de alta energia.

Seja uma dessas a origem ou qualquer outro fenômeno cósmico ainda desconhecido, a descoberta do neutrino superenergético foi recebida com entusiasmo pela comunidade científica, pelo que pode aportar de conhecimentos sobre o Universo.

O KM3NeT (Cubic Kilometre Neutrino Telescope) é uma infraestrutura de pesquisa europeia localizada nas profundezas do mar Mediterrâneo, com detectores instalados em profundidades de até 3,5 mil metros. Consiste em dois sistemas de detecção principais: o ARCA (Astroparticle Research with Cosmics in the Abyss), situado próximo à costa da Sicília, na Itália, desenhado para detectar os neutrinos mais energéticos; e o ORCA (Oscillation Research with Cosmics in the Abyss), situado perto de Toulon, na França, desenhado para detectar neutrinos de baixa energia. A descoberta do KM3-230213A foi realizada por meio do ARCA. O detector é composto por um conjunto de módulos ópticos digitais (DOMs), ancorados no fundo do mar, cada qual contendo 31 tubos fotomultiplicadores.

É preciso dizer que o KM3NeT e o Dune, que conta com importante participação brasileira e já foi objeto de várias reportagens da Agência FAPESP, não são projetos concorrentes, mas complementares (leia mais em: agencia.fapesp.br/52629 e agencia.fapesp.br/25451).

“Eles são experimentos diferentes”, diz o físico Ettore Segreto, um dos líderes do sistema de fotodetecção do Dune. “O KM3NeT está voltado para a detecção de neutrinos de altíssima energia, que chegam aleatoriamente do espaço exterior. O que pretendemos fazer com o Dune são medições de extrema precisão. Trabalhamos com neutrinos que são gerados na própria Terra, pelo acelerador do Fermilab [Fermi National Accelerator Laboratory, dos Estados Unidos]. O acelerador está localizado no Estado de Illinois e o feixe de neutrinos produzido é detectado em uma enorme estrutura subterrânea, no estado de Dakota do Sul. Temos total controle do processo. E queremos saber sobre as transformações sofridas por essas partículas depois de viajarem 1,3 mil quilômetros debaixo da terra”, informa o pesquisador.

E explica que, enquanto o KM3NeT busca correlacionar as detecções de neutrinos com eventos astrofísicos extremos, como blazares, interações de partículas com o fundo de micro-ondas e outras, inserindo-se na chamada astronomia multimensageira, o Dune tem um foco bastante diferente: está voltado principalmente ao estudo das propriedades fundamentais do próprio neutrino.

Vale lembrar que existem diferentes tipos ou sabores (flavors) de neutrinos. A transformação de um tipo em outro, chamada de “oscilação”, ocorre espontaneamente durante a propagação dos neutrinos pelo espaço. Ela pode fornecer a chave para a compreensão de um fenômeno denominado “violação da simetria de carga-paridade dos léptons” (charge-parity violation ou CPV). Segundo o modelo hegemônico sobre a formação do Universo, foi essa violação de simetria que produziu, logo depois do Big Bang, um pequeno excedente de matéria em relação à antimatéria. E é esse excedente que compõe, atualmente, o Universo conhecido.

A oscilação dos neutrinos é um dos principais focos de atenção do megaprojeto Dune, que deverá fazer duas medições: uma na saída do feixe de neutrinos, em Illinois; a outra na chegada, em Dakota do Sul. O sofisticado sistema de fotodetecção que fará essas medições tem como componente fundamental o dispositivo X-Arapuca, concebido por Segreto e sua esposa Ana Amélia Bergamini Machado, ambos sediados atualmente na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

O X-Arapuca é, basicamente, uma pequena caixa, com paredes internas espelhadas, dotada de uma janela. Como o próprio nome diz, consiste em uma armadilha para capturar a luz. Os fótons conseguem entrar nele, mas não conseguem sair. Foi idealizado de modo a proporcionar uma fotodetecção eficiente em sistemas de grande escala, como os tanques de argônio líquido que serão utilizados no Dune.

“As partículas geradas pelos neutrinos interagem com o argônio líquido, fazendo o material cintilar. A função do Arapuca é facilitar a detecção dessa cintilação, e, a partir dela, registrar a passagem dos neutrinos. A luz produzida pelos átomos de argônio líquido tem comprimento de onda de 127 nanômetros. Utilizamos, então, na entrada do X-Arapuca, um filtro constituído por materiais orgânicos que absorvem fótons em uma banda de frequências e os reemitem em outra. Esse filtro modifica o comprimento de onda para 350 nanômetros. Com isso, os fótons conseguem entrar, porque a janela do X-Arapuca é transparente para esse comprimento de onda. Mas, uma vez lá dentro, usamos um segundo filtro para fazer o comprimento de onda mudar para 430 nanômetros. E os fótons não conseguem sair”, descreve Segreto.

Além dos objetivos diferentes, o KM3NeT e o Dune fazem a detecção da passagem dos neutrinos em materiais bastante diferentes: o argônio líquido extremamente puro, resfriado a -184°C, no caso do Dune; e a água do mar, com suas variações de composição e temperatura, no caso do KM3NeT. “Há um terceiro experimento, o IceCube, instalado perto do Polo Sul, que utiliza um quilômetro cúbico de gelo instrumentalizado com fotomultiplicadores para detectar neutrinos de alta energia”, conta Segreto. Seja para entender a composição do Universo, seja para elucidar os mistérios sobre sua origem, esses experimentos todos convergem, fazendo do neutrino uma das bolas da vez da pesquisa científica contemporânea.

Oito curiosidades sobre os neutrinos

1- Neutrinos têm carga elétrica nula e massa muito pequena (pelo menos seis ordens de grandeza menor do que a massa do elétron);
2- Como consequência da baixíssima massa, sua velocidade é muito próxima da velocidade da luz;
3- Os três tipos de neutrinos conhecidos experimentam apenas a ação das forças fraca e gravitacional;
4- São as mais numerosas partículas com massa da matéria comum;
5- São produzidos em função do chamado decaimento beta por diversas fontes: aceleradores, reatores nucleares, estrelas etc. O ser humano também emite neutrinos;
6- Devido à baixa probabilidade de interação, é estimado que apenas um neutrino proveniente do Sol deva interagir com uma pessoa em toda a sua vida, apesar de o fluxo dessas partículas na Terra ser da ordem de 100 bilhões por centímetro quadrado por segundo;
7- Atualmente são conhecidos três tipos (ou sabores) de neutrinos. Ao se propagar ao longo do espaço, o neutrino pode oscilar entre esses tipos;
8- Há hipóteses de que possa haver mais sabores. Em particular, há predições teóricas que apontam para a existência do chamado neutrino estéril, que só interagiria por meio da força gravitacional.

O artigo Observation of an ultra-high-energy cosmic neutrino with KM3NeT pode ser acessado em: www.nature.com/articles/s41586-024-08543-1.
 

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