Em pesquisa que acompanha nascidos em 2015 e 2016 no município de Cruzeiro do Sul, no Acre, mais da metade dos entrevistados relatou que passou fome no mês anterior; ocorrência de sintomas apresentou relação ainda com vulnerabilidade social, escolaridade e cor da pele das mães (foto: Bárbara Prado)
Em pesquisa que acompanha nascidos em 2015 e 2016 no município de Cruzeiro do Sul, no Acre, mais da metade dos entrevistados relatou que passou fome no mês anterior; ocorrência de sintomas apresentou relação ainda com vulnerabilidade social, escolaridade e cor da pele das mães
Em pesquisa que acompanha nascidos em 2015 e 2016 no município de Cruzeiro do Sul, no Acre, mais da metade dos entrevistados relatou que passou fome no mês anterior; ocorrência de sintomas apresentou relação ainda com vulnerabilidade social, escolaridade e cor da pele das mães
Em pesquisa que acompanha nascidos em 2015 e 2016 no município de Cruzeiro do Sul, no Acre, mais da metade dos entrevistados relatou que passou fome no mês anterior; ocorrência de sintomas apresentou relação ainda com vulnerabilidade social, escolaridade e cor da pele das mães (foto: Bárbara Prado)
André Julião | Agência FAPESP – A insegurança alimentar contribui, em muito, para uma criança apresentar sintomas da COVID-19. A conclusão é de um estudo realizado por pesquisadores brasileiros publicado nesta segunda-feira (18/07) na revista PLOS Neglected Tropical Diseases.
Os resultados foram obtidos no âmbito do “Estudo MINA – materno-infantil no Acre: coorte de nascimentos da Amazônia ocidental brasileira”, realizado desde 2015 no município de Cruzeiro do Sul, no Acre, com apoio da FAPESP (leia mais em: https://agencia.fapesp.br/36352/ e https://agencia.fapesp.br/38817/).
“Entre as crianças com evidências sorológicas de infecção anterior por SARS-CoV-2, aquelas cujos domicílios passaram fome no mês anterior às entrevistas apresentaram chance de ter COVID-19 76% maior quando comparadas com crianças que não tinham sido expostas à insegurança alimentar”, conta Marly Augusto Cardoso, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) e coordenadora do estudo.
Em duas ocasiões, primeiro em janeiro e depois em junho e julho de 2021, foram realizados testes de anticorpos para o SARS-CoV-2 em 660 das 1.246 crianças nascidas em 2015 ou 2016 inicialmente acompanhadas pelo estudo, além de entrevistas com as mães ou cuidadores.
Os pesquisadores perguntaram sobre a presença de sintomas da COVID-19 nas crianças, como tosse, dificuldade para respirar e perda de paladar e olfato. Um questionário definiu ainda ocorrência de insegurança alimentar domiciliar, que indica se a família havia passado fome no mês anterior.
“Normalmente, os adultos priorizam a alimentação das crianças, podendo passar fome para poder alimentar os filhos. Se a criança da casa passou fome é sinal de uma situação muito difícil para a família toda”, explica a pesquisadora.
Mais da metade dos domicílios dos participantes (54%) foi caracterizada em estado de insegurança alimentar. Entre esses, 9,3% reportaram sintomas de COVID-19 em comparação a 4,9% de crianças cujas famílias não relataram insegurança alimentar, o que mostra uma vulnerabilidade 76% maior desse grupo à manifestação clínica da infecção por SARS-CoV-2. A maior ocorrência de infecção mostrou relação ainda com piores condições de moradia, além de menor escolaridade e cor da pele das mães, a maioria não branca.
No total, 297 crianças (45%) tiveram anticorpos para SARS-CoV-2 detectados. Dessas, apenas 11 (3,7%) haviam realizado testes para confirmação da COVID-19 antes do estudo e 48 (16,2%) tiveram sintomas como tosse, dificuldades respiratórias e perda de olfato e paladar. Entre as mais pobres, a presença de sintomas foi maior.
Subnotificação
“Existem estudos mostrando que o status socioeconômico e a nutrição influenciam uma maior ocorrência de doenças infecciosas. Não há dados suficientes ainda para a COVID-19, mas tanto no nosso estudo como em pesquisas realizadas em outros países há evidência de que essa correlação também existe”, diz Cardoso.
O grupo da pesquisadora atualmente analisa amostras da microbiota intestinal de participantes do estudo a fim de fazer correlações entre a alimentação e a ocorrência de doenças, incluindo a COVID-19.
Ainda que quase metade das crianças tenha apresentado anticorpos para o SARS-CoV-2, só 5% das mães reportaram um episódio anterior de COVID-19 nos filhos, sugerindo que oito em cada nove infecções ficaram sem diagnóstico e, portanto, não foram notificadas.
Essa subnotificação, alertam os pesquisadores, tem consequências para a saúde pública, como a falsa percepção de que as crianças são menos suscetíveis à doença. Em outros contextos, por exemplo, a menor ocorrência de quadro clínico da COVID-19 em crianças foi uma justificativa para os pais adiarem ou mesmo recusarem a vacinação dos filhos em idade para serem vacinados.
O fato de serem em grande parte assintomáticas, porém, faz com que crianças e adolescentes sejam transmissores para o resto da família, incluindo pessoas mais suscetíveis a quadros graves, como idosos e pessoas com comorbidades.
No estudo publicado agora, a maioria das crianças infectadas teve parentes com quadros de COVID-19, principalmente as mães. Quando não era a progenitora, pai, irmãos, avós ou vizinhos haviam apresentado sintomas da doença. Em quadros de insegurança alimentar ou quando a mãe era não branca (negra, parda ou indígena), houve maior prevalência da manifestação clínica da doença.
Uma limitação do estudo foi o fato de os participantes desse segmento do MINA que estudou a prevalência do SARS-CoV-2 viverem na área urbana ou em áreas rurais acessíveis. Os pesquisadores acreditam que em localidades mais distantes, com menos acesso a serviços de saúde, é possível que a situação seja ainda pior.
“Na área rural distante é difícil continuar o acompanhamento e perdemos o contato com muitos dos participantes. Isso ocorre também com os mais pobres, mais difíceis de serem localizados porque mudam muito de endereço e mesmo de região. Perdemos contato com mais de 300 crianças ao longo de cinco anos de acompanhamento”, narra Cardoso.
Um dado que chamou a atenção ainda foi a menor manifestação de sintomas nas crianças filhas de mães com mais de 12 anos de escolaridade. A manifestação da COVID-19 foi maior à medida que diminuía o número de anos de educação formal das progenitoras.
“É importante ressaltar que as crianças das famílias mais pobres e aquelas com mães menos instruídas foram significativamente mais propensas a serem soropositivas para o SARS-CoV-2. Isso reflete uma condição socioeconômica pior do que daquelas que estudaram mais tempo e também um menor acesso a informações e a alternativas de sobrevivência, que se refletem em melhor assistência à saúde dos filhos”, afirma a pesquisadora.
“Observamos isso também nos estudos que realizamos sobre malária, desenvolvimento infantil e estado nutricional. Investir na educação das mães também tem impacto na qualidade de vida das crianças”, encerra.
O artigo SARS-CoV-2 seropositivity and COVID-19 among 5 years-old Amazonian children and their association with poverty and food insecurity pode ser lido em: https://doi.org/10.1371/journal.pntd.0010580.
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