Bruno Brulon Soares, presidente do Comitê Internacional de Museologia, destacou o que denomina “insurreição museológica”, conduzida por grupos indígenas, populações urbanas periféricas, jovens em situação de precariedade, afrodescendentes e grupos LGBTQIA+ (foto: Heitor Shimizu/Agência FAPESP)

Museologia
Museologias novas e urgentes
17 de junho de 2025

Pesquisadores do Brasil e da França reúnem-se em seminário durante a FAPESP Week para discutir caminhos para os museus diante das mudanças e desafios do século 21

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Bruno Brulon Soares, presidente do Comitê Internacional de Museologia, destacou o que denomina “insurreição museológica”, conduzida por grupos indígenas, populações urbanas periféricas, jovens em situação de precariedade, afrodescendentes e grupos LGBTQIA+ (foto: Heitor Shimizu/Agência FAPESP)

 

Heitor Shimizu, de Paris | Agência FAPESP – Os museus estão em transformação. Instigadas por demandas sociais urgentes – como a crise ambiental, a justiça racial, o reconhecimento de saberes indígenas e as reparações históricas –, as instituições museológicas vêm sendo levadas a repensar não apenas suas práticas, mas também suas finalidades mais profundas.

Esse foi o ponto de partida do debate realizado no dia 13 de junho, na Galeria de Anatomia Comparada e Paleontologia, em Paris, como parte da programação do Seminário de Museologia França-Brasil. O evento foi promovido pelo Museu Nacional de História Natural (MNHN), em parceria com a FAPESP e a Universidade de São Paulo (USP), durante a FAPESP Week França 2025.

“O que é, afinal, um museu? Essa não é uma pergunta retórica. A museologia, ao se abrir a colaborações multidisciplinares e multiculturais, precisa se dispor a compreender outras formas de pensar o que chamamos de museu. As ontologias indígenas, por exemplo, têm nos ensinado muito sobre outras maneiras de conceber os museus, outras formas de imaginar o mundo. Como aponta Ailton Krenak – cujo pensamento atravessa toda a minha trajetória –, o museu é pai, é mãe, é parente”, disse Camila Wichers, professora do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), onde coordena o programa de mestrado em museologia.

Segundo ela, a museologia, enquanto ciência social aplicada, deve se deixar afetar por outras formas de saber e de viver. “Na leitura que venho propondo, o fato museal escuta a relação entre pessoas, coisas e territórios. E, por ‘coisas’, entendo tudo aquilo que existe: o que é corpóreo e incorpóreo, humano e não humano.”

“No Brasil, já existem, por exemplo, museus dedicados ao hip-hop, além de processos museais que se constroem a partir dessas práticas culturais. Nesse contexto, o território é onde ocorrem as batalhas de rima, onde se pinta o grafite, onde os corpos dos praticantes se tornam território. A museologia, aqui, olha para tudo isso”, afirmou Wichers.

“Em um mundo em rápidas transformações, atuar localmente nos territórios é não só necessário, mas urgente. É também nesse plano que enfrentamos os grandes desafios – e, ao mesmo tempo, encontramos potências”, acrescentou.

“Existe uma museologia ensinada nas universidades e outra praticada nesses espaços. Às vezes, essas duas se encontram. Os museus convencionais podem se nutrir das experiências dos museus indígenas, periféricos e territoriais. E os museus institucionais devem ser também lugares onde o público venha sonhar e imaginar outros mundos – por meio de encontros entre ciência, arte e ancestralidade”, disse Wichers.

Para Joëlle Le Marec, professora do Museu Nacional de História Natural da França, a nova museologia não deve ser apenas um conjunto de métodos ou de técnicas de participação. “Ela é, antes de tudo, uma mudança de posição: a de escutar, dialogar, coabitar, reconhecer outras formas de existência e de conhecimento. É um convite à humildade epistemológica.”

“Como nós, profissionais de museus, podemos aplicar isso concretamente em estratégias museológicas? Como os museus devem se posicionar nas sociedades em que observamos mudanças climáticas e ambientais significativas? A informação e a comunicação, a evolução das noções de pertencimento cultural e identidade – estes são tempos de novos paradigmas – nos incentivam a repensar a prática: divulgar conhecimentos, instruir, sensibilizar, questionar, estimular o engajamento são, igualmente, objetivos que devemos assumir”, afirmou.

Le Marec destacou ainda a importância das pesquisas multiculturais em museus, especialmente aquelas desenvolvidas em instituições chamadas periféricas, profundamente enraizadas em territórios e comunidades, e que se encontram na vanguarda da retomada de saberes sob uma perspectiva emancipadora.

“O campo museológico europeu vive hoje um momento de inflexão, com maior abertura a experiências comunitárias e a abordagens oriundas do Sul Global, especialmente do Brasil. Há uma grande força conceitual nas práticas brasileiras de museologia social. Não se trata apenas de aplicar ferramentas participativas, mas de reconstruir, junto com os outros, as próprias categorias com que pensamos o que é um museu.”

Insurreição museológica

“A revisão atual dos museus de etnologia e história natural insere-se num processo mais amplo de descolonização das instituições e das práticas museológicas historicamente conduzidas sem a participação dos povos cujos patrimônios foram apropriados. Retorna-se aos princípios fundamentais evocados no fim do século 20, além de atender às reivindicações de grupos sociais que exigem controlar sua própria representação e reumanização nos museus”, disse Bruno Brulon Soares, professor da Universidade de St. Andrews, na Escócia, e presidente do Comitê Internacional de Museologia do International Council of Museums.

“Desde os movimentos internacionais por uma nova museologia e sua apropriação crítica pelas chamadas ‘comunidades’ – termo que não pretendo essencializar, embora reconheça suas limitações –, observamos uma insurreição museológica conduzida por grupos indígenas, populações urbanas periféricas, jovens em situação de precariedade, afrodescendentes, grupos LGBTQIA+. São museus que fazem da memória um ato político de luta por direitos humanos e justiça social”, acrescentou.

Para Soares, os museus que não reconhecem esse movimento ficam à margem. “O papel dos museus no desenvolvimento das sociedades latino-americanas inclui temas como reforma agrária, direitos culturais e as relações entre os meios urbano e rural – tudo isso em regiões ameaçadas por governos autoritários e pela expansão do capitalismo global. É importante lembrar que o autoritarismo em nossa região está na base da colonização e da apropriação semiótica e violenta de terras ancestrais, um processo que continua até hoje”, pontuou.

Segundo ele, ao abordar questões ambientais, os museus devem levar em conta ideias, preocupações e representações dos públicos e comunidades. A demanda social força os museus a repensarem sua missão e, com isso, a se redefinirem.

“Esse movimento reflexivo nos leva a uma pergunta fundamental: o que devemos nós, museólogos, aos povos que os museus historicamente objetificaram? Essa questão nos leva a compreender o meio ambiente como um mundo integrado, no qual todos estamos envolvidos. São justamente as pessoas excluídas das decisões museológicas que hoje nos alertam para a crise ambiental. Essa é uma das lições da museologia social: um museu que ignora seu meio não cumpre sua função social”, disse.

Museologias insurgentes

Manuelina Maria Duarte Cândido, professora da Universidade Federal de Goiás e docente convidada do doutorado em sociomuseologia da Universidade Lusófona, em Lisboa, traçou um histórico da museologia na América Latina, destacando o que chamou de, em uma expressão mais ampla, “museologias insurgentes”.

“No plural, para evidenciar a centralidade do processo de passagem da nova museologia para a museologia social. Mas não ignoro a existência simultânea de diversas outras correntes que, em diferentes contextos, também propuseram novas práticas, conceitos e experimentações museológicas”, disse.

“Em 1972, realizou-se em Santiago, no Chile, a mesa-redonda sobre o Papel dos Museus na América Latina. Diferentemente de seminários regionais anteriores, o espanhol foi adotado como língua de trabalho e os conferencistas eram majoritariamente latino-americanos, oriundos também de campos como o planejamento urbano. Essa abordagem interdisciplinar, centrada nas problemáticas das grandes cidades da América Latina, inspirou a formulação do conceito de ‘museu integral’ ou ‘museu integrado', onde diferentes vertentes patrimoniais se articulam para além dos objetos materiais dos museus disciplinares”, contou Duarte Cândido.

“O evento no Chile também introduziu a noção de responsabilidade política dos profissionais de museus e do uso social do patrimônio. Costuma-se repetir – já quase como uma lenda – que Paulo Freire [1921-1997] teria sido convidado a participar como conferencista, mas a ditadura militar brasileira impediu sua presença, enviando uma representante oficial. Ainda assim, os ecos do pensamento de Freire estão presentes em vários trechos da Declaração de Santiago. Essa é uma inflexão decisiva para o nascimento da museologia social, que, no entanto, veria sua implementação atrasada por ditaduras e regimes autoritários.”

“Vale lembrar que Paulo Freire, um dos pilares da museologia social, escreveu sobre a pedagogia do oprimido e a pedagogia da libertação, defendendo uma educação crítica, voltada à leitura do mundo e ao questionamento. Para ele, educar é dialogar – e isso exige que o educador se pergunte continuamente: para quê, para quem e contra quem atuo?”, afirmou Duarte Cândido.

A professora lembrou, no entanto, que em 1983 a proposta de criação de um comitê temático internacional para museus comunitários e ecomuseus foi rejeitada durante a Conferência Geral do Conselho Internacional de Museus (Icom), realizada em Londres. Como reação, sob a liderança de Pierre Mayrand, foi realizado no Canadá, no ano seguinte, o Ateliê Internacional de Ecomuseus e Nova Museologia, que resultou em uma declaração com os princípios fundamentais desse movimento.

“Esse é o documento fundador da nova museologia, que retoma os ideais de Santiago: prioridade ao desenvolvimento social, à participação popular e ao reconhecimento de novos tipos de museus, por vezes sem coleções tradicionais, aos quais o Icom deveria dar legitimidade. A nova museologia rompe com os pilares do modelo clássico – coleção, edificação e disciplina – e propõe uma relação entre a comunidade e o patrimônio que ela própria produz e gere no território onde vive. Esse patrimônio é entendido de forma ampla, integrando bens materiais e imateriais, paisagens e saberes, bem como seus guardiões”, destacou.

Nos anos 1990 e 2000, os museus locais e comunitários proliferaram no Brasil. A partir de 2010, modelos semelhantes se expandem por países como Itália, Japão e Moçambique. No Brasil e no México, o fortalecimento das redes de museus comunitários impulsionou a museologia social, promovendo a troca de experiências e o apoio mútuo.

“A museologia social radicaliza a nova museologia ao ir à raiz das lutas por justiça social. Assume um papel político e engajado nas disputas de memória, no direito de lembrar e no direito à existência dos grupos vulnerabilizados. O território, aqui, não é mais o edifício museológico, mas sim o espaço vivido, o espaço da luta – por moradia, terra, visibilidade. O corpo também se torna território de resistência, sobretudo corpos historicamente marginalizados: femininos, racializados, LGBTQIA+. A museologia social defende o protagonismo desses sujeitos, dando-lhes voz em primeira pessoa”, disse Cândido Duarte.

“Por fim, destaco o papel central da América Latina – e do Brasil em particular – na consolidação internacional dessa vertente. Um marco importante foi a Recomendação da Unesco de 2015 sobre a promoção e proteção dos museus e coleções, proposta por iniciativa brasileira com apoio de outros países latino-americanos.”

Leia mais notícias e informações sobre a FAPESP Week França em fapesp.br/week/2025/france.

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