Cerqueira Leite foi membro do Conselho Superior da FAPESP entre 1976 e 1982 (foto: Centro de Memória FAPESP)
Um dos físicos mais respeitados do Brasil, publicou ao longo de sua vida acadêmica cerca de 80 artigos científicos em periódicos indexados
Um dos físicos mais respeitados do Brasil, publicou ao longo de sua vida acadêmica cerca de 80 artigos científicos em periódicos indexados
Cerqueira Leite foi membro do Conselho Superior da FAPESP entre 1976 e 1982 (foto: Centro de Memória FAPESP)
Claudia Izique | Agência FAPESP – Rogério Cezar de Cerqueira Leite faleceu ontem (01/12), em Campinas, aos 93 anos. Um dos físicos mais respeitados do Brasil, especialista em semicondutores e lasers, publicou ao longo de sua vida acadêmica cerca de 80 artigos científicos em periódicos indexados – citados mais de 3 mil vezes por seus pares – e 15 livros sobre temas diversos, relacionados à física, energia e música clássica, incluindo um livro de contos e uma autobiografia. Criou e dirigiu instituições de pesquisa na vanguarda da ciência e liderou iniciativas de promoção do desenvolvimento tecnológico em áreas estratégicas. Ao longo de toda a vida, foi um interlocutor crítico das políticas nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação e de Educação Superior. Foi membro do Conselho Superior da FAPESP entre 1976 e 1982.
“A morte de Cerqueira Leite deixa a ciência brasileira menor. Um grande cientista, que atuou como pesquisador e teve grande influência na pesquisa de física da Unicamp e como defensor público da ciência, em especial no Conselho Editorial da Folha. Mas sua maior obra, pela qual será sempre admirado, foi organizar e viabilizar a construção do primeiro síncroton brasileiro, e mais recentemente, foi a grande força por trás da montagem do Sirius, o mais importante instrumento de pesquisa científica do Brasil. Sua resiliência, tenacidade e clareza de objetivos serão exemplos permanentes para nós”, disse Marco Antonio Zago, presidente da FAPESP
Cerqueira Leite iniciou a sua carreira acadêmica no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) em 1953. Sua formação foi fortemente marcada pelos modelos de educação e de pesquisa associados à tecnologia que pautaram as primeiras duas décadas do ITA e reforçada no período de oito anos em que permaneceu no Bell Telephone Laboratories (Bell Labs), nos Estados Unidos.
De volta ao Brasil, no início dos anos de 1970, quando se iniciaram os grandes programas de pós-graduação vinculados a grandes projetos de P&D, Cerqueira Leite dirigiu o Departamento de Física do Estado Sólido e o Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (IFWG-Unicamp), instituições que contribuiram de forma decisiva para a constituição do parque de telecomunicação e de fibras ópticas implantado na época pelo governo federal em Campinas.
No mesmo período, Cerqueira Leite criou a Companhia de Desenvolvimento Tecnológico de Campinas (Codetec), a primeira incubadora do país, onde foram gestadas ideias e empresas de base tecnológica, além de projetos em parceria com o setor privado. Uma década depois, articulou a criação da Companhia de Desenvolvimento do Polo Tecnológico de Campinas (Ciatec), o primeiro parque tecnológico planejado do país.
Participou dos debates do Pró-Álcool e foi crítico feroz da tecnologia adotada pelo Programa Nuclear Brasileiro durante o governo Geisel, o que inviabilizou sua indicação para a reitoria da Unicamp no final dos anos 1970. Voltou à cena no início dos 1980, como vice-presidente executivo da Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) e na liderança do projeto de construção do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas. Defendeu a instalação dos Laboratórios Nacionais de Biociências (LNBio) e de Nanotecnologia (LNNano) no início de 2000 e, no final da década, articulou a criação do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE) para ampliar as oportunidades econômicas de produção do biocombustível no país. Estas instituições hoje constituem o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas. Em 2017 concebeu a Ilum Escola de Ciência, uma instituição de ensino superior brasileira sem fins lucrativos gerida pelo CNPEM e financiada pelo Ministério da Educação localizada no bairro Fazenda Santa Cândida, no município de Campinas, no estado de São Paulo, inaugurada em 2021. Fez breves incursões na política municipal de Campinas, mas sempre recusou convites para integrar quadros partidários. Preferiu manifestar-se desde a tribuna a que teve acesso desde 1978, a coluna Tendências e Debates da Folha de S.Paulo, jornal de cujo Conselho Editorial foi membro.
Professor emérito da Unicamp, Cerqueira Leite colecionou prêmios, títulos e obras de arte. Era considerado o maior colecionador brasileiro de arte africana e pré-colombiana.
“O professor Rogério foi um grande cientista e um grande cidadão brasileiro. Envolveu-se nas questões importantes para o país, nunca se omitindo em dar sua opinião e participando dos grandes debates, desde a questão da democracia até as de energia renováveis. Envolveu-se fortemente no Programa Pró-alcool e foi fundamental na criação de laboratório para energias renováveis. Visionário, contribuiu para o fortalecimento da Unicamp e do CNPEM, que teve seu início no LNLS com a construção do primeiro síncrotron do hemisfério Sul. Sempre entendeu a importância de se ter grandes projetos para o país. Envolveu-se também na questão da educação que acabou resultando na criação de uma faculdade ligada ao CNPEM, o Ilum, que busca formar pesquisadores numa abordagem de ciência interdisciplinar. Vai deixar saudades e fazer muita falta”, disse o diretor-geral do CNPEM, Antonio José Roque da Silva.
Assista uma das últimas entrevistas de Cerqueira Leite ao Centro de Memória da FAPESP, concedida em 5 de maio de 2022.
Trajetória de Pesquisa
Cerqueira Leite nasceu em Santo Anastácio em 1931, descendente de uma família de fortuna arruinada. Filho de uma poetisa e de um advogado, delegado de polícia do interior de São Paulo, ele contava ter crescido entre soldados e detentos e adolescido no palacete da avó, na avenida Angélica, em São Paulo.
Do passado aristocrático, herdou o gosto por arte, cinema, música clássica e, sobretudo, pela ópera. Na juventude, carregou andor em Rigoletto, de Verdi, e foi o Raio de Sol Nascente em Madame Butterfly, de Puccini, entre outras figurações, em troca de livre acesso às apresentações das companhias de ópera no Teatro Municipal de São Paulo no final da década de 1940. Consta que chegou a contracenar com a soprano italiana Renata Tebaldi. No intervalo entre temporadas, gostava de uma boa briga e lutava boxe.
O ingresso de Cerqueira Leite no ITA, em 1953, foi um desvio de rota. Craque em matemática, preparava-se para o vestibular da Escola Politécnica da USP quando um tio, capitão da aeronáutica, o levou para conhecer o ITA. Descobriu que os alunos recebiam uma bolsa de estudos e uma pequena ajuda de custo do Ministério da Aeronáutica. Fez as contas e preteriu a Poli. Foi no ITA que ele conheceu o físico Sérgio Porto, com quem assinaria vários artigos científicos, e Aldo Vieira da Rosa, professor emérito de Stanford, que viria a ser seu grande amigo e parceiro no projeto Codetec.
Em 1960, já professor assistente no ITA, deixou o Brasil para um doutoramento na Sorbonne, Paris, com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Na França, Cerqueira Leite instalou-se em Versalhes, cerca de 10 km a sudoeste de Paris. Casado com dona Ruth e já com uma filha, alugou um pequeno apartamento no antigo depósito de feno de uma estrebaria.
Na Sorbonne, teve como orientador Pierre Aigrain, pioneiro da física de estado sólido e de estudos com semicondutores. Defendida a tese voltou ao ITA em 1962, pelo período de um semestre: sem recursos para montar um laboratório, aceitou convite para integrar o staff técnico do Bell Labs, mantido então pela AT&T.
Ao longo dos oito anos em que viveu em Berkeley Heights, Nova Jersey, publicou quase 40 artigos científicos, muitos dos quais com Sérgio Porto, e um livro de contos em que resgata memórias da infância.
Em 1970, recusou convite para ocupar o cargo de vice-diretor de uma divisão de pesquisa liderada por Kumar Patel, inventor do laser de dióxido de carbono, e voltou ao Brasil, a convite de Zeferino Vaz, para assumir a direção do Departamento de Física do Estado Sólido da Unicamp.
A volta à Unicamp
A primeira oportunidade de voltar ao Brasil, mais precisamente para a Universidade de São Paulo (USP), lhe foi oferecida por Mário Schenberg, em 1968. As negociações abortaram quando Schenberg foi aposentado compulsoriamente pelo AI-5 em 1968. O segundo convite veio de Zeferino Vaz, reitor da Unicamp, dois anos depois.
Zeferino Vaz concebia uma universidade estreitamente vinculada com as atividades econômicas e sociais e o IFGW foi constituído com a missão de desenvolver no país a física aplicada a projetos de desenvolvimento de comunicação óptica e telecomunicações. Cerqueira Leite assumiu o Departamento de Física do Estado Sólido; Sergio Porto, o Departamento de Eletrônica Quântica; e José Ellis Ripper Filho, o Departamento de Física Aplicada. Todos era egressos do ITA. Entre 1970 e 1976 o IFGW já tinha recebido um grande volume de recursos do BNDES, Funtec, Badesp, BID e Finep.
O projeto científico inicial do Instituto de Física, de desenvolver programas com ênfase no estudo de semicondutores, encontrou correspondência na então emergente política de telecomunicações. Em meados da década de 1970 a Telebrás instalou seu centro de P&D ao lado da Unicamp, atraindo ao seu redor empreendimentos de fibra óptica. Foi nessa época que Cerqueira Leite criou a Codetec, uma plataforma de interação da universidade com o mercado.
A criação do LNLS
No final da década de 1970, Cerqueira Leite habitava “um país chamado ostracismo”, conforme ele dizia, e aceitou o convite de Octávio Frias de Oliveira, dono da Folha de S.Paulo, para editar a página de Opinião do jornal. Foram dois anos de viagens diárias entre Campinas e São Paulo até ser surpreendido com a indicação para o cargo de vice-presidente da Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL), estatal paulista distribuidora de energia para o interior do Estado. Em cinco anos de gestão (1983-1987), transformou a distribuidora numa empresa de energia com a instalação de um centro de P&D em biomassa.
No início dos anos 1980, o Brasil iniciou o projeto de construção da primeira fonte brasileira de luz síncrotron do hemisfério Sul. O empreendimento, orçado em US$ 70 milhões, era o maior investimento já realizado em um único equipamento de pesquisa no país e encontrou forte resistência da comunidade científica. Quando as negociações chegaram a um impasse, Cylon Gonçalves da Silva, membro do Conselho Diretor do projeto, procurou apoio de Cerqueira Leite que assumiu a liderança do empreendimento e levou o síncrotron para Campinas. O Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, inaugurado em 1997, foi concebido como um laboratório de pesquisa aberto à comunidade científica e empresarial de todo o país. Em torno do Síncrotron constituíram-se centros de investigação nas áreas de biotecnologia e nanotecnologia, geridos pela Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron (ABTLuS), cujo Conselho de Administração era dirigido por Cerqueira Leite. A ABTLuS deu origem ao Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) que hoje abriga o Sirius.
Em meados de 2000, por solicitação do ministro Eduardo Campos, da Ciência e Tecnologia, Cerqueira Leite coordenou projeto de avaliação da produção do etanol no Brasil e das perspectivas de expansão. Além de identificar gargalos científicos e tecnológicos, os resultados sugeriam que o país deveria investir no desenvolvimento do etanol celulósico, de segunda geração, para garantir competitividade no mercado externo. A proposta resultou na criação do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE) que, depois de várias negociações com a prefeitura de Campinas, foi construído e instalado no mesmo campus do LNLS.
Cerqueira Leite viveu seus últimos anos rodeado de amigos e de uma coleção de mais de cinco mil títulos de música clássica e óperas. Nas horas vagas, com a mesma disposição de um pesquisador, estudava a arte de Burkina Faso. Adorava cinema e era o maior colecionador brasileiro de arte africana, acervo formado a mais de 20 anos, além de obras pré-colombianas, da Oceania e de muitas peças chinesas e do Oriente Médio.
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