Portuguesa, nascida no distrito de Aveiro, formou-se em matemática na Universidade de Lisboa em 1953. No ano seguinte, mudou-se para o Rio de Janeiro (foto: Agência Brasil)
Referência do pensamento desenvolvimentista, ela morreu no dia 8 de junho, aos 94 anos
Referência do pensamento desenvolvimentista, ela morreu no dia 8 de junho, aos 94 anos
Portuguesa, nascida no distrito de Aveiro, formou-se em matemática na Universidade de Lisboa em 1953. No ano seguinte, mudou-se para o Rio de Janeiro (foto: Agência Brasil)
Claudia Izique | Agência FAPESP – O Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE-Unicamp) realizou ontem (17/06), no Auditório Zeferino Vaz, homenagem a Maria da Conceição Tavares, que morreu no dia 8 de junho aos 94 anos, em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro.
“Conceição Tavares deu uma contribuição inestimável para a constituição teórica e institucional ao IE da Unicamp, pelo seu vasto conhecimento teórico de autores clássicos, sempre atualizados historicamente, permitindo interpretar a evolução do capitalismo, as suas contradições e os seus impactos para os países em desenvolvimento, em especial para o Brasil”, disse Celio Hiratuka, diretor do IE-Unicamp.
Referência do pensamento desenvolvimentista no país, Conceição Tavares foi professora do IE-Unicamp e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), influenciando uma geração de economistas brasileiros, entre eles João Manuel Cardoso de Mello e Luiz Gonzaga Belluzzo, ambos presentes à homenagem, ao lado de Hiratuka e de Laura Tavares, filha de Conceição Tavares.
Cardoso de Mello e Belluzzo foram responsáveis pelo convite que trouxe Conceição Tavares do Rio de Janeiro à Unicamp. Ela só aceitou em 1975, depois que voltou de um período na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), no Chile. “Era um risco, em plena ditadura”, lembrou Cardoso de Mello. A palavra final foi do reitor Zeferino Vaz. “Ele disse: ‘aqui não tem triagem ideológica. Contrate a Conceição’.”
“Nossa convivência aqui na Unicamp foi intensa”, contou Belluzzo. “Ela debatia ideias e se indispunha com as próprias ideias e com as do parceiro. O entendimento sempre tinha uma rejeição.”
“Conceição Tavares tinha uma formação humanística ampla”, disse Cardoso de Mello. “Era uma intelectual e não uma economista profissional. Crítica radical do capitalismo em suas dimensões econômica e humana, não tolerava acomodações.”
Na homenagem, ambos recordaram a contribuição de Conceição Tavares na elaboração de suas teses e artigos e a amizade que os uniu durante muitos anos. “Lembro-me da tese de doutorado que ela escreveu na minha casa, cheio de criança em volta, jogando almofadas. Tinha uma capacidade de abstração inacreditável”, contou Cardoso de Mello. “A tese de professora titular ela fez metade na casa do João Manoel e metade na do Luciano Coutinho. Era tão obcecada que não comia”, disse Belluzzo.
A exemplo do que ocorreu na UFRJ, professores, alunos e amigos plantaram um Ypê branco no jardim do IE-Unicamp em homenagem à economista.
“Ela segue influenciando os jovens com a sua visão de que o papel do economista é muito mais do que ter uma boa formação técnica: é mobilizar o conhecimento histórico e teórico a favor de um país mais justo e menos desigual, para que os frutos do desenvolvimento possam ser aproveitados por todos”, disse o diretor do IE-Unicamp.
O vídeo com a homenagem na íntegra está disponível no canal do IE-Unicamp no YouTube.
Intelectual movida à paixão
Em 1995, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura – em que foi apresentada pelo jornalista Matinas Suzuki Júnior como “a mãe intelectual da geração que pilota a economia do país depois do regime autoritário” –, ela advertiu seus pares: “Se você não se preocupa com a justiça social, com quem paga a conta, você não é um economista sério. Você é um tecnocrata!”.
“Conceição Tavares era uma excepcional professora. Não só pelo conhecimento que tinha dos clássicos e da realidade, mas pela sua capacidade de conectar aspectos os mais diversos da vida econômica. Sua intuição e seus insights eram admiráveis. De tudo, o que fez dela uma figura ímpar entre intelectuais e economistas era a paixão. Escrevendo, dando entrevistas, fazendo palestras ela sempre motivava seus leitores, seus ouvintes. Uma simples aula de pós-graduação, com dez ou 15 alunos, se transformava num evento extraordinário. Era ali que ela injetava nos jovens alunos a motivação para estudar e para agir. Queria mudar o mundo e o Brasil. E conseguiu isso com suas ideias, seu legado e sua paixão”, disse Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo (CTA) da FAPESP.
Portuguesa, nascida no distrito de Aveiro, filha de um anarquista, formou-se em matemática na Universidade de Lisboa em 1953. No ano seguinte, mudou-se para o Rio de Janeiro. Iniciou o curso de economia da Universidade do Brasil – atual UFRJ –, antes de ingressar no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em 1958, já como cidadã brasileira. No mesmo ano, passou a integrar o Grupo Executivo de Indústria Mecânica Pesada, responsável pelos planos setoriais do governo do presidente Juscelino Kubitschek.
Em 1961, Conceição Tavares foi designada para o escritório da Cepal no Brasil e depois no Chile. Discípula da Raúl Prebisch, foi assessora voluntária do ministro da Economia, Carlos Matus, no governo socialista de Salvador Allende. Seu primeiro livro, considerado um clássico, o Auge e declínio do processo de substituição de importações no Brasil, publicado em 1963, marcou seu ingresso no “primeiro time dos chamados desenvolvimentistas brasileiros, caudatários de Celso Furtado e Caio Prado Júnior”, escreveu André Lacerda no Brazil Journal, em 2019 .
“Seu ponto de partida foi o pensamento cepalino, com ênfase nas relações econômicas e de poder entre nações centrais e periféricas. Porém, procurou repensar essa matriz, ampliando a importância de questões como: variáveis internas a cada país, em especial a presença do setor produtor de bens de capital, as necessidades de financiamento do desenvolvimento e como os modos historicamente específicos de atendê-las repercutem”, resumiu Maria Silvia Possas, em artigo publicado na revista Estudos Avançados nº 43, de dezembro de 2001.
Brainstorm sobre tudo e todos
Em setembro de 1973, com o golpe militar no Chile, Conceição Tavares voltou ao Brasil e para a vida acadêmica. “Tive a oportunidade de presenciar então o primeiro curso dado por ela após seu retorno do Chile. Dividiu-o com o professor Carlos Lessa. Ela dava em uma aula cada fase dos ciclos da economia brasileira, ele apresentava em outra a política econômica da ocasião. Cada qual se rivalizava em brilhantismo intelectual. Ela propiciava um brainstorm de ideias sobre tudo e todos. Tinha insights fantásticos aos borbotões sem tempo sequer para os alunos anotarem”, lembra Fernando Nogueira Costa, professor titular do IE-Unicamp, seu aluno no mestrado em 1976 e no doutorado em 1985.
No início dos anos 1980, Conceição Tavares passou a integrar o núcleo de economistas do PMDB que elaborou o Plano Cruzado, lançado no governo José Sarney, em 1986. “Minha militância durou de 1978 a 1988 e está indissoluvelmente ligada a duas personalidades públicas deste país: Ulysses Guimarães e Fernando Henrique Cardoso”, consta ter dito em entrevista à revista Praga.
Mas seu compromisso com o desenvolvimento com justiça social fez com que não poupasse Fernando Henrique, então ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, em artigo para a Folha de S.Paulo, em 4 de setembro de 1994: criticou o Plano Real, enfatizando as perdas salariais ocasionadas pelos índices adotados para os reajustes dos salários e sobrevalorização cambial. Também foi crítica do presidente Fernando Henrique, principalmente por conta de sua decisão de manter elevadas as taxas de juros e o real sobrevalorizado.
Em 1994 filiou-se ao Partido dos Trabalhadores, candidatando-se a deputada federal pelo Rio de Janeiro para um único mandato. Com o lema “esta é boa de briga”, foi a segunda mais votada.
Foi crítica também dos dois primeiros governos de Luiz Inácio Lula da Silva: foi contra a formatação do programa Bolsa Família, a proposta de criação do Fundo Soberano e, em 2016, contra a aprovação da PEC do Teto dos Gastos Públicos, que, segundo ela, ia contra os preceitos do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Legado da boa ciência
Um dos criadores do Plano Real, o economista Edmar Bacha disse ao jornal Valor Econômico que a morte de Conceição Tavares é uma “grande perda para o país”. “Amiga dileta, professora inspirada, com contribuições fundamentais para a compreensão da economia brasileira”, afirmou. “Correntes pouco importam, o que importa é a qualidade da análise. E a da Conceição era excepcional.”
A reitoria da Unicamp homenageou em nota a professora Conceição Tavares. “Mestra daqueles que almejam compreender o Brasil e o mundo pela lente da economia política e ousam lutar contra todas as formas de injustiça e desigualdade. A Unicamp teve o privilégio de contar com seu arguto pensamento crítico na fundação do Instituto de Economia e na formação dos principais pensadores da Escola de Campinas. Honraremos seu legado na construção da boa ciência, aquela comprometida com a construção de uma realidade justa e digna para todas as pessoas.”
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