Estudo feito em Minas Gerais, a partir de documentos históricos, destaca que cultura escrita era disseminada entre escravos e alforriados

Letrados e escravizados
07 de novembro de 2007

Estudo feito em Minas Gerais, a partir de documentos históricos, destaca que cultura escrita era disseminada entre escravos e alforriados entre 1731 e 1850

Letrados e escravizados

Estudo feito em Minas Gerais, a partir de documentos históricos, destaca que cultura escrita era disseminada entre escravos e alforriados entre 1731 e 1850

07 de novembro de 2007

Estudo feito em Minas Gerais, a partir de documentos históricos, destaca que cultura escrita era disseminada entre escravos e alforriados

 

Por Alex Sander Alcântara

Agência FAPESP – A crença, difundida por muito tempo, de que os escravos trazidos para o Brasil não sabiam ler nem escrever faz parte da representação negativa dos povos africanos construída pela colonização portuguesa. Mas uma pesquisa publicada na Revista Brasileira de Educação levanta indícios de que havia uma "disseminação da cultura escrita", das mais variadas formas, entre escravos e alforriados.

De acordo com a professora Christianni Cardoso Morais, do Departamento de Educação da Universidade Federal de São João del-Rei, em Minas Gerais, os dados coletados para o estudo, a partir de análises de anúncios de jornais e de assinaturas em documentos como testamentos e processos-crime, lançam luz sobre um tema pouco estudado na história da educação no país.

"O estudo pretende contribuir para desmistificar a idéia de que os escravos e forros, mesmo iletrados, não sabiam se utilizar do escrito em seu cotidiano, em uma época em que eram proibidos legalmente de freqüentar escolas públicas no país", disse Christianni à Agência FAPESP.

A pesquisa se concentrou na região da Comarca do Rio das Mortes, na vila de São João del-Rei, em Minas Gerais, no período que vai de 1731 a 1850. Segundo a historiadora, a delimitação geográfica se justifica pela importância econômica e cultural que o município conquistou no final do século 18. E o recorte temporal seguiu a lógica imposta pela própria documentação, que é mais abundante naqueles anos.

"A praça comercial de São João del-Rei exercia a função de entreposto, pois era um dos principais centros de exportação dos produtos mineiros e de redistribuição das mercadorias trazidas da Corte. Tinha ainda vida política e cultural muito intensa. Além disso, contava com uma biblioteca pública e uma imprensa periódica bastante significativa no cenário brasileiro. Uma região com tamanha importância gerou grande quantidade de documentos", explicou.

A pesquisadora analisou um universo de 1.612 documentos produzidos entre 1731 e 1850. As principais fontes foram relatórios do Ministério da Agricultura, analisados por Marcus Vinícius Fonseca, no livro Educação de negros, testamentos e processos-crime e nos anúncios do jornal O Astro Minas, que circulou nesse período.

Nos anúncios – fontes já utilizadas por Gilberto Freyre – há, em muitos casos, a descrição física e também das habilidades dos escravos foragidos ou à venda. Eram descritas marcas, escarificações, cicatrizes provocadas por acidente de trabalho, além das habilidades dos escravos: se tocavam algum instrumento musical, se sabiam ler, escrever, seus ofícios, entre outros.

"Ter profissões especializadas, como ofícios de alfaiate, pedreiro, carpinteiro, que exigiam a utilização de medidas e cálculos cotidianamente, indica um grau bastante refinado de letramento, que é o termo que utilizo na pesquisa para entender os usos sociais, cultural e historicamente atribuídos à palavra escrita", afirmou Christianni.

Segundo ela, o fato de os escravos e forros solicitarem que alguém lhes escrevesse um documento ou o próprio ato de roubar uma carta de alforria alheia e de usá-la como se fosse sua também demonstram que os cativos sabiam se utilizar da palavra escrita, mesmo não sendo identificados na documentação como capazes de ler e escrever.

Para determinar os graus de "letramento" dos escravos, Christianni utilizou um método de análise das assinaturas a partir de uma escala desenvolvida pelo português Justino Magalhães, que tem cinco níveis. Segundo a escala, o nível 1 corresponde à utilização de siglas ou sinais; o 2 à assinatura rudimentar, de "mão guiada"; o nível 3 indica uma assinatura normalizada; o nível 4 registra uma assinatura caligráfica e o 5 apresenta uma assinatura personalizada, criativa.


Análise de assinaturas

"Fotografei assinaturas e analisei os traços dos assinantes tomando como referência a caligrafia da época. O objetivo foi perceber se a pessoa tinha um traço firme, bem organizado e bem distribuído na folha. Se conseguia fazer arabescos, se ligava as letras umas às outras e se tinha uma boa escrita cursiva, o que não era fácil de se fazer na época, porque o ensino da leitura e da escrita estavam dissociados. Primeiro se aprendia a ler e depois a escrever. Então, se o assinante se encaixa no nível 2, provavelmente sabia ler alguma coisa", explicou.

A pesquisadora chama a atenção para o fato de que o método não é exato nem preciso. Mas, devido à ausência de fontes diretas, as assinaturas foram utilizadas como fontes históricas, sobretudo pelo poder simbólico que adquiriam entre os assinantes.

Outro aspecto importante é que o ensino da leitura e o da escrita de forma combinada só se disseminou mesmo depois de 1850. De acordo com ela, "a partir dessa data encontram-se pessoas com assinaturas maravilhosas, mas que não sabiam ler. A partir daí, não é mais possível aplicar as escalas de assinaturas."

"O fato de os sujeitos afirmarem que eram capazes de assinar, apesar de não conseguirem fazê-lo em determinadas circunstâncias, revela o quanto eles podiam, a partir do momento em que sabiam assinar, aumentar seu status em uma sociedade basicamente iletrada", destacou.

Para ler o artigo Ler e escrever: habilidades de escravos e forros? Comarca do Rio das Mortes, Minas Gerais, 1731-1850, de Christianni Cardoso Morais, disponível na biblioteca eletrônica SciELO (FAPESP/Bireme), clique aqui.


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