Segundo estudo, Lei da Reforma Psiquiátrica tem lacunas jurídicas que resultam em reclusão perpétua para portadores de transtornos mentais que cometem crimes (reprod.: William Hogarth)

Internação sem fim
27 de junho de 2008

Estudo indica necessidade de reformulação da Lei da Reforma Psiquiátrica. Segundo o trabalho, embora tenha humanizado o tratamento médico, ela tem lacunas jurídicas que resultam, por exemplo, em reclusão perpétua para portadores de transtornos mentais que cometem crimes

Internação sem fim

Estudo indica necessidade de reformulação da Lei da Reforma Psiquiátrica. Segundo o trabalho, embora tenha humanizado o tratamento médico, ela tem lacunas jurídicas que resultam, por exemplo, em reclusão perpétua para portadores de transtornos mentais que cometem crimes

27 de junho de 2008

Segundo estudo, Lei da Reforma Psiquiátrica tem lacunas jurídicas que resultam em reclusão perpétua para portadores de transtornos mentais que cometem crimes (reprod.: William Hogarth)

 

Por Alex Sander Alcântara

Agência FAPESP – Embora tenha trazido avanços, ao reorientar o modelo assistencial de saúde mental no Brasil, a lei Paulo Delgado, de 2001, precisa ser rediscutida. A afirmação é de um estudo publicado na revista Paidéia, editada pelo Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FCLRP), da Universidade de São Paulo (USP).

O trabalho, feito por Rafael de Tilio, doutorando em psicologia da FCLRP, conclui que o texto, também conhecido como Lei da Reforma Psiquiátrica, é reticente em relação às implicações jurídicas dos portadores de transtornos mentais. Em casos de atos criminais, segundo os Códigos Penal e Civil, eles podem ser internados em instituição de tratamento sem estabelecimento prévio do tempo de internação.

"A lei de 2001 deixa um vazio em relação a esse tema. Mudar apenas as formas de tratamento não basta, é preciso modificar também a definição jurídica do que seria loucura e suas implicações no âmbito social. A maior falha da lei, em síntese, é que ela definiu o que fazer com a loucura, mas não definiu o que seria loucura", disse Tilio à Agência FAPESP.

O autor sugere que, ao praticar um ato lesivo a terceiros, o portador de transtorno mental seja responsabilizado por meio de penas alternativas não-privativas de liberdade. "O importante é que seu ato não passe em branco. Atualmente existe um risco de se eximir o doente mental da responsabilidade sócio-jurídica, considerando que as conseqüências não são de sua inteira incumbência", afirmou.

Apesar das críticas, o autor salienta que a reforma psiquiátrica trouxe avanços com relação ao tratamento, passando de um "modelo asilar e excludente para um inclusivo e extramanicomial que inclui a comunidade e a família".

Inspirada nos princípios da experiência italiana, com o propósito de reduzir leitos em hospitais psiquiátricos, garantir assistência aos egressos desses hospitais, criar centros de convivência, ambulatórios e programas social, a lei brasileira, no entanto, não aboliu – como ocorreu na Itália – o caráter de periculosidade dos atos praticados por portadores de transtornos mentais.

"O importante da experiência italiana foi a junção da remodelação do sistema de assistência, que diminuiu o poder do manicômio, com o reposicionamento estatutário do doente. No Brasil isso não aconteceu, pois aqui ainda se considera que o doente deve, quando cometer um crime, ser submetido a medidas de segurança que podem se tornar verdadeiras prisões perpétuas", disse.

Segundo Tilio, o Código Civil brasileiro estabelece que, em caso de dano a terceiros, o doente seria eximido de responsabilidade caso seja comprovada em perícia a incapacidade civil pelos atos cometidos. A lei transfere a responsabilidade aos responsáveis pelos doentes.

"Enquanto isso, na esfera criminal, o Código Penal entende que o portador de transtornos mentais não é imputável por não possuir qualidades intelectivas plenamente desenvolvidas. E, portanto, deve ser submetido à medida de segurança até que sua periculosidade cesse. Mas isso não ocorrerá, porque a ausência do refreamento é inerente à loucura", afirmou.

Segundo Tilio, uma reparação na lei deveria propiciar um impacto na subjetividade do doente. "Em vez de simplesmente prendê-lo ou aplicar multa, por que não inseri-lo em um programa de cuidado da cidade e do espaço público, de modo que atue na comunidade de maneira produtiva?", questionou.


Mudanças de perspectivas

O pesquisador reconhece que uma alteração na lei não irá mudar automaticamente o que se pensa sobre a loucura. Mas, segundo ele, a legislação brasileira, apesar de insuficiente, foi importante por preparar um clima social e oferecer outra possibilidade de entendimento da loucura, não mais como desvio a ser isolado, mas sim como diversidade a ser integrada.

"É necessário que a sociedade passe a ver o louco de maneira diferente, como um cidadão com certas limitações – como as que todos nós temos – e não como um tipo de demônio incontrolável que deve viver encarcerado", afirmou.

De acordo com Tilio, a lei precisa eliminar o caráter de periculosidade atribuído aos doentes, que justifica a possibilidade de imposição de medidas de segurança. Elas poderiam ser substituídas por penas alternativas não-privativas de liberdade ou por apenações, isto é, isolamento com limitação temporal pré-definida.

"A responsabilização civil também deveria ser mudada, e não simplesmente transferida para seu representante legal, objetivando uma responsabilização subjetiva do autor. Também a incapacidade civil deveria ser revista, adequando-se às particularidades do quadro clínico de cada indivíduo", afirmou.

Tilio apontou ainda que os laudos que estabelecem a capacidade civil do doente deveriam incorporar os pareceres provenientes de profissionais de saúde mental de diversas áreas de atuação – como a psicologia, a assistência social, a terapia ocupacional e as artes –, descentralizando o poderio dos psiquiatras e dos juízes.

"Seria preciso relativizar a proeminência da medicina psiquiátrica. Mas não se trata, como ainda muitos grupos fazem, de lutar pelo fim da psiquiatria: o que se combate são as formas de desumanização das modalidades de tratamento, da internação compulsória, dos maus-tratos e da farmacologização excessiva. Obviamente, os manicômios deverão desaparecer para dar lugar a uma rede preventiva mais bem difusa e presente na comunidade", disse,

Para ler o artigo "A querela dos direitos": loucos, doentes mentais e portadores de transtornos e sofrimentos mentais, de Rafael de Tilio, disponível na biblioteca on-line SciELO (Bireme/FAPESP), clique aqui.


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