Embora o papel da obesidade como fator de risco para o desenvolvimento de diferentes cânceres já seja bem estabelecido na literatura, a influência do tecido adiposo depois que a doença está instalada ainda é um campo pouco explorado (foto: Maria Carolina Santos Mendes/CancerThera)
Dois estudos inéditos indicam que o acompanhamento nutricional precoce pode impactar diretamente na sobrevida de pacientes
Dois estudos inéditos indicam que o acompanhamento nutricional precoce pode impactar diretamente na sobrevida de pacientes
Embora o papel da obesidade como fator de risco para o desenvolvimento de diferentes cânceres já seja bem estabelecido na literatura, a influência do tecido adiposo depois que a doença está instalada ainda é um campo pouco explorado (foto: Maria Carolina Santos Mendes/CancerThera)
Fernanda Bassette | Agência FAPESP – Nos últimos anos, o avanço da oncologia tem mostrado que compreender o câncer vai além de olhar apenas para o tumor. O estado nutricional e a composição corporal dos pacientes, por exemplo, têm revelado fatores cada vez mais relevantes para o prognóstico e para a resposta aos tratamentos – especialmente quando se fala de câncer de cabeça e pescoço.
Esse cenário ganha novas evidências com a publicação recente de dois trabalhos apoiados pela FAPESP e conduzidos por pesquisadores do Centro de Inovação Teranóstica em Câncer (CancerThera), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) financiados pela Fundação. O CancerThera é sediado no Centro de Hematologia e Hemoterapia da Universidade Estadual de Campinas (Hemocentro-Unicamp).
Os estudos, orientados por José Barreto Campello Carvalheira, foram publicados em revistas internacionais de nutrição e oncologia clínica e investigaram a relação entre adiposidade (depósito de gordura), muscularidade (quantidade de massa muscular) e sobrevida em pessoas com câncer de cabeça e pescoço, um dos tipos de tumor mais complexos de manejar.
O câncer de cabeça e pescoço engloba um grupo de tumores que podem se desenvolver em diferentes regiões, como boca, língua, faringe, laringe, seios da face e glândulas salivares. Os tumores da cavidade oral (que incluem lábios, cavidade oral, glândulas salivares e orofaringe) representam o oitavo tipo de câncer mais comum no Brasil, afetando majoritariamente homens acima dos 40 anos – entre as mulheres, ele não figura entre os dez mais frequentes, segundo dados do Instituto Nacional de Câncer (Inca).
“O paciente com câncer de cabeça e pescoço é um dos que mais ficam desnutridos. Isso acontece porque, além das questões relacionadas ao tumor e ao tratamento em si, a doença afeta diretamente regiões ligadas à mastigação e deglutição, o que dificulta a ingestão de alimentos. Naturalmente, esses pacientes têm uma perda de peso maior, uma desnutrição mais acentuada e, por isso, são considerados de alto risco nutricional”, explica a nutricionista Maria Carolina Santos Mendes, coorientadora dos trabalhos e pesquisadora associada ao CancerThera.
Embora o papel da obesidade como fator de risco para o desenvolvimento de diferentes cânceres já seja bem estabelecido na literatura, a influência do tecido adiposo depois que a doença está instalada ainda é um campo pouco explorado. “No câncer existe algo chamado ‘paradoxo da obesidade’. Sabemos que a obesidade aumenta o risco de desenvolvimento de vários tipos de tumor, mas, em algumas situações, o tecido adiposo pode atuar como fator protetor quando o paciente já tem a doença instalada. Foi isso que observamos também no câncer de cabeça e pescoço”, detalha Mendes.
O primeiro estudo do grupo foi publicado em março deste ano na Frontiers in Nutrition e analisou 132 pacientes com câncer de cabeça e pescoço localmente avançado. A equipe utilizou imagens de tomografia computadorizada no nível da terceira vértebra cervical (C3) para avaliar parâmetros de composição corporal, como o índice total de tecido adiposo e a quantidade de massa muscular.
Os resultados mostraram que pacientes com níveis mais altos de adiposidade apresentaram risco reduzido de mortalidade em comparação aos com baixos índices de gordura: indivíduos com mais tecido adiposo tiveram mediana de sobrevida global de 27,9 meses, contra 13,9 meses entre os que apresentavam baixos índices – o dobro de tempo de vida.
“Esse dado chama a atenção ao confirmar que pacientes com maior quantidade de gordura na região da C3 tinham sobrevida maior. Isso nos faz pensar na importância da terapia nutricional precoce. Se eu identifico logo no diagnóstico que o paciente tem baixa reserva de gordura, posso intervir de forma mais específica e talvez aumentar sua sobrevida”, explica Mendes.
Os achados desse primeiro estudo também mostraram que a preservação da massa muscular nesses pacientes se mostrou um fator protetor independente para a sobrevida global. Os autores constataram que pacientes com maior quantidade de massa muscular sobreviveram, em média, 22,9 meses, enquanto aqueles com baixa musculatura viveram 8,6 meses.
“Esses resultados demonstram claramente o impacto da composição corporal nesse grupo e a importância de avaliar também o tecido adiposo. Eles abrem novas perguntas para a ciência: qual o impacto do metabolismo do tecido adiposo no prognóstico desses pacientes? Será que conseguimos reverter esse quadro e aumentar a sobrevida dessas pessoas com suporte nutricional precoce? É esse tipo de investigação que norteia o foco do nosso laboratório”, acrescenta a nutricionista.
Impacto no câncer metastático
O segundo estudo da equipe, publicado em agosto na Clinical Nutrition ESPEN, analisou outro grupo de 101 pacientes com câncer de cabeça e pescoço metastático ou recorrente atendidos no Hospital de Clínicas da Unicamp e reforça a relevância da composição corporal.
Mais uma vez, a tomografia da região cervical C3 foi utilizada para mapear músculo e gordura. Os resultados mostraram que a baixa muscularidade está fortemente associada a piores desfechos clínicos. “Todos os indivíduos com baixa massa muscular morreram em até 24 meses de seguimento. Em contrapartida, alguns com maior muscularidade ainda estavam vivos após 40 meses. Isso reforça como ela pode ser determinante para a sobrevida”, ressalta Mendes.
Juntos, os achados dos dois estudos chamam a atenção para a necessidade de olhar o paciente como um todo e incorporar a avaliação da composição corporal no cuidado clínico. Segundo a pesquisadora, a avaliação pelas tomografias (que são realizadas como rotina) facilita esse tipo de análise, tornando-a acessível para grande parte dos pacientes oncológicos.
“A maioria dos estudos olha apenas para a musculatura. O diferencial das nossas pesquisas foi incluir também o tecido adiposo, e encontramos resultados muito relevantes. Entretanto, não é apenas a quantidade de gordura que importa, mas também seu metabolismo e como ele pode trazer informações valiosas durante o tratamento”, afirma Mendes.
Na avaliação da pesquisadora, a contribuição desses estudos é significativa por abrir espaço para novas estratégias terapêuticas que considerem a interação entre músculo, gordura e câncer. “A ideia é reforçar o que já sabemos: acompanhar a nutrição é essencial. Mas, muitas vezes, isso acaba sendo negligenciado na prática. Queremos mostrar que a avaliação da composição corporal deve ser incorporada de forma rotineira, porque pode fazer diferença no tempo e na qualidade de vida desses pacientes”, conclui Mendes.
O artigo Adipose tissue characteristics as a new prognosis marker of patients with locally advanced head and neck cancer pode ser lido em: frontiersin.org/journals/nutrition/articles/10.3389/fnut.2025.1472634.
O artigo Prognostic impact of low muscularity in metastatic and recurrent head and neck cancer: insights from C3-based assessments pode ser lido em: clinicalnutritionespen.com/article/S2405-4577(25)00375-4.
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