Droga originalmente desenvolvida para matar bactérias apresentou em testes com camundongos a capacidade de aumentar o gasto energético das células. Pesquisadores da Unicamp e da biofarmacêutica AstraZeneca testam compostos com estrutura semelhante, que poderão dar origem a novas abordagens para combater a obesidade (microscopia de adipócitos estimulados com enoxacina; crédito: Danilo Ferrucci e Andréa Rocha/Infabic-Unicamp)
Droga originalmente desenvolvida para matar bactérias apresentou em testes com camundongos a capacidade de aumentar o gasto energético das células. Pesquisadores da Unicamp e da biofarmacêutica AstraZeneca testam compostos com estrutura semelhante, que poderão dar origem a novas abordagens para combater a obesidade
Droga originalmente desenvolvida para matar bactérias apresentou em testes com camundongos a capacidade de aumentar o gasto energético das células. Pesquisadores da Unicamp e da biofarmacêutica AstraZeneca testam compostos com estrutura semelhante, que poderão dar origem a novas abordagens para combater a obesidade
Droga originalmente desenvolvida para matar bactérias apresentou em testes com camundongos a capacidade de aumentar o gasto energético das células. Pesquisadores da Unicamp e da biofarmacêutica AstraZeneca testam compostos com estrutura semelhante, que poderão dar origem a novas abordagens para combater a obesidade (microscopia de adipócitos estimulados com enoxacina; crédito: Danilo Ferrucci e Andréa Rocha/Infabic-Unicamp)
Karina Toledo | Agência FAPESP – Um fármaco originalmente desenvolvido para tratar infecções bacterianas apresentou, em testes com camundongos, a capacidade de turbinar o metabolismo e amenizar o ganho de peso induzido por uma dieta rica em gordura. O estudo foi conduzido na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com apoio da FAPESP, e os resultados acabam de ser divulgados na revista Science Advances.
De acordo com Marcelo Mori, professor do Instituto de Biologia (IB-Unicamp) e coordenador do projeto, o tratamento fez com que o tecido adiposo branco dos animais – que normalmente armazena o excedente energético na forma de gordura – passasse a se comportar de modo semelhante ao tecido adiposo marrom, ou seja, a queimar calorias para gerar calor (termogênese). No entanto, esse efeito – comumente chamado de browning – só foi observado quando os animais foram expostos ao frio.
“Nosso objetivo neste estudo foi conduzir uma prova de princípio. Mostrar que era possível aumentar o gasto energético e inibir as consequências deletérias da obesidade atuando farmacologicamente sobre uma via metabólica de interesse. Não estamos propondo o uso desse medicamento específico para combater o ganho de peso, mas nossos resultados apontam caminhos para encontrarmos compostos que atuem sobre essa mesma via de forma mais eficaz e segura”, diz Mori à Agência FAPESP.
A substância usada nos experimentos é conhecida como enoxacina. Trata-se de um antibiótico de amplo espectro que deixou de ser usado na clínica há alguns anos, quando surgiram drogas mais eficientes da mesma classe (fluoroquinolonas). A escolha, segundo Mori, foi baseada em estudos que revelaram a capacidade do medicamento de modular no tecido adiposo a produção de microRNAs – pequenas moléculas de RNA com ação reguladora sobre o genoma.
“Estudos anteriores com modelos animais e seres humanos já haviam indicado que intervenções capazes de ampliar a longevidade e melhorar a saúde metabólica – como a prática de exercícios físicos e a restrição de calorias – promovem esse benefício ao aumentar a capacidade do tecido adiposo de processar microRNAs. Ou seja, essas práticas modulam a via responsável pela biogênese de microRNAs. Nós mostramos que é possível promover uma melhora metabólica no organismo ao estimular essa mesma via com um fármaco. Por outro lado, mostramos que a inibição da biogênese de microRNAs desencadeia processos que aceleram o envelhecimento”, conta Mori.
Testes in vitro
A investigação contou com a colaboração de pesquisadores da biofarmacêutica AstraZeneca. Parte dos testes descritos no artigo foi feita com culturas de pré-adipócitos humanos e de camundongos. Esse tipo de célula, ao atingir a forma madura, adquire a capacidade de armazenar gordura e se torna parte do tecido adiposo branco. Em laboratório, o processo de diferenciação celular dura cerca de oito dias e pode ser induzido com um coquetel de substâncias químicas e hormônios.
Em um dos protocolos, os pesquisadores acrescentaram a enoxacina ao coquetel de diferenciação e, ao final do processo, compararam os adipócitos maduros com uma cultura controle (não exposta à enoxacina). As análises revelaram que o antibiótico induziu no adipócito branco a expressão de dois genes que normalmente estão ativos de forma significativa nas células do tecido adiposo marrom: o PPARGC1A e o UCP1. As proteínas codificadas por esses genes são consideradas marcadores moleculares do processo de termogênese. Isso significa, portanto, que a enoxacina reprogramou as células adiposas brancas para dissipar energia na forma de calor em vez de armazená-la na forma de gordura, induzindo assim o browning.
“A proteína UCP1 atua na mitocôndria [organela produtora de energia], desacoplando a cadeia transportadora de elétrons usada na síntese de ATP [adenosina trifosfato, a molécula que serve de combustível para as células]. E isso faz com que a célula dissipe energia na forma de calor. Para entender melhor o processo, podemos compará-lo ao represamento de um rio visando a produção de energia elétrica. Se forem feitos buracos na represa, a diferença de potencial que seria usada para girar a turbina é dissipada sem gerar a energia desejada”, explica o pesquisador.
No segundo protocolo testado in vitro, os adipócitos já diferenciados foram expostos à enoxacina durante 24 horas e analisados em seguida. Os pesquisadores observaram que as células passaram a expressar os mesmos marcadores de termogênese – sinal de que adipócitos brancos já formados também passaram pelo processo de browning.
Testes funcionais mostraram que os dois protocolos de tratamento com o antibiótico fizeram com que os adipócitos brancos passassem a respirar mais, ou seja, a consumir mais oxigênio do que as células não tratadas, mesmo em condições semelhantes.
Ativado pelo frio
De acordo com Mori, os experimentos com camundongos replicaram o efeito termogênico observado in vitro. Nesse caso, a enoxacina foi administrada por via intraperitoneal (infusão do fármaco na cavidade abdominal). Por se tratar de uma droga com ação antibacteriana, a administração por via oral poderia afetar demasiadamente a microbiota do intestino e interferir nos resultados.
Vários protocolos diferentes foram testados. Em um deles, os pesquisadores alimentaram um grupo de roedores com dieta hiperlipídica durante um mês e iniciaram o tratamento com enoxacina. O fármaco foi administrado uma vez ao dia, de segunda a sexta-feira, durante dez semanas, e a alimentação rica em gordura foi mantida durante todo o período. Ao final, os animais controle (tratados com placebo) haviam engordado 13 gramas (g), enquanto os tratados com o antibiótico ganharam, em média, 8 g.
“A partir do momento em que o fármaco começou a ser administrado, a curva de ganho de peso entre os dois grupos passou a divergir. A dos controle continuou a subir rapidamente e a dos tratados foi atenuada. Ao final, observamos que o tratamento também aumentou a sensibilidade à insulina e a tolerância à glicose dos roedores”, comenta Mori.
Análises feitas no tecido adiposo evidenciaram um aumento na expressão dos genes marcadores de termogênese – PPARGC1A e UCP1 –, tanto nas células adiposas brancas quanto nas marrons.
No entanto, o efeito benéfico sobre o metabolismo só foi observado nos casos em que os camundongos foram expostos ao frio moderado (de aproximadamente 24° C) ou intenso (6o C). Já nos testes em que os roedores permaneceram o tempo todo em termoneutralidade (em torno de 30o C, temperatura ideal para a espécie), a enoxacina não se mostrou capaz de ativar a termogênese, indicando que o fármaco potencializa a ação do frio.
Para testar se o efeito observado nos animais expostos ao frio moderado dependia da ação do fármaco sobre as bactérias intestinais (que sabidamente influenciam no ganho de peso), os pesquisadores repetiram o experimento usando animais germfree (livres de germes), criados em condições controladas de laboratório para ficar totalmente livres de microbiota. Também nessa condição a enoxacina foi capaz de promover o efeito termogênico.
“O fato de o fármaco não funcionar em termoneutralidade diminui seu potencial de ser usado como tratamento único contra a obesidade. No entanto, ele pode nos ajudar a entender os mecanismos envolvidos no processo ou ser usado como adjuvante. De qualquer modo, esperamos encontrar uma molécula com ação termogênica ainda mais potente e que não tenha os efeitos colaterais de um antibiótico”, afirma Mori.
Já existem no mercado substâncias comercializadas com essa finalidade. Porém, segundo Jeremie Boucher, pesquisador da AstraZeneca e coautor do artigo, algumas delas estimulam excessivamente o sistema adrenérgico (responsável pelas respostas de luta e fuga em uma situação de perigo), podendo causar arritmia cardíaca e até mesmo enfarte. Outras, ainda mais perigosas, desacoplam quimicamente a membrana interna da mitocôndria (organela que produz ATP), aumentando o gasto energético da célula.
“O problema das intervenções atuais é que elas têm um efeito sistêmico, ou seja, atingem várias células do corpo, até mesmo neurônios e cardiomiócitos [células do coração]. Podem causar morte celular e afetar processos importantes no organismo”, explica Boucher.
Mecanismo de ação
Na última etapa da investigação, os pesquisadores sequenciaram todos os microRNAs expressos no tecido adiposo dos camundongos tratados e também dos animais controle. Uma primeira análise revelou que o tratamento alterou a expressão de algumas dezenas de microRNAs.
“Cruzamos nossos resultados com dados de repositórios públicos com o objetivo de identificar os microRNAs que, ao mesmo tempo, eram regulados pela enoxacina e por outras intervenções que induzem browning. Ao final, chegamos ao miR-34a-5p, que é modulado de forma consistente tanto pelo fármaco quanto pela restrição calórica e pela exposição ao frio”, conta Mori.
O pesquisador explica que a enoxacina pode interferir no processamento e na estabilidade do miR-34a-5p. Como essa molécula suprime a sinalização de hormônios – entre eles o FGF21, que promove o gasto energético –, a diminuição de miR-34a-5p acaba intensificando o estímulo termogênico.
Com base nos achados, a Unicamp e a AstraZeneca vêm testando moléculas com estruturas similares à da enoxacina, mas sem efeito antibiótico. Experimentos in vitro apresentaram dados promissores, indicando compostos com ação termogênica ainda maior que a da molécula original e que não atuam como microbicida.
Parte do trabalho foi conduzida pelos doutorandos Andréa Livia Rocha e Gerson Profeta de Souza. A FAPESP apoiou por meio de diversos projetos (17/01184-9, 17/07975-8, 16/12294-7, 10/52557-0, 16/24163-4, 16/23142-3, 18/15313-8 e 15/01316-7).
O artigo Enoxacin induces oxidative metabolism and mitigates obesity by regulating adipose tissue miRNA expression. pode ser lido em: https://advances.sciencemag.org/content/6/49/eabc6250.
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