Luis Antônio Cunha, da UFRJ, fala sobre a reforma do ensino superior proposta pelo MEC e afirma que, se o problema é a criação de vagas, elas estão disponíveis no setor público (foto: Rafael Moura/UFRJ)
Em entrevista à Agência FAPESP, o professor Luis Antônio Cunha, da UFRJ, fala sobre a reforma do ensino superior proposta pelo MEC, comenta os erros e acertos das tentativas anteriores, faz críticas às universidades privadas e ao Universidade para Todos e afirma que, se o problema é a criação de vagas, elas estão disponíveis no setor público
Em entrevista à Agência FAPESP, o professor Luis Antônio Cunha, da UFRJ, fala sobre a reforma do ensino superior proposta pelo MEC, comenta os erros e acertos das tentativas anteriores, faz críticas às universidades privadas e ao Universidade para Todos e afirma que, se o problema é a criação de vagas, elas estão disponíveis no setor público
Luis Antônio Cunha, da UFRJ, fala sobre a reforma do ensino superior proposta pelo MEC e afirma que, se o problema é a criação de vagas, elas estão disponíveis no setor público (foto: Rafael Moura/UFRJ)
Por Washington Castilhos, do Rio de Janeiro
Especial para a Agência FAPESP
Autor de mais de uma dezena de livros sobre educação no país, entre eles Política educacional no Brasil: a profissionalização no ensino médio, A Universidade Temporã e A Universidade Reformanda, o sociólogo e professor Luis Antônio Cunha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), se diz um entusiasta da reforma do ensino superior proposta pelo Ministério da Educação (MEC).
"Quando o ministro Tarso Genro assumiu o cargo, uma de suas primeiras manifestações foi a respeito da necessidade de elaborar uma lei orgânica do ensino superior", lembra. Lei que, para Cunha, chega em boa hora, para pôr ordem na casa. Segundo ele, o quadro do ensino superior no Brasil hoje se divide entre as instituições públicas, com seus problemas de financiamento, e as instituições privadas, que têm se beneficiado com um quadro "extremamente permissivo".
Ferrenho defensor das instituições públicas de ensino, o educador, assim como o ministro, afirma que todo o sistema deve operar em função do interesse público. Porém, essa referência ao setor público não basta. É necessário normatizar o setor privado. "Uma nova legislação precisa enfrentar de frente questões que dizem respeito ao setor privado, senão a reforma começará a contribuir para a manutenção da situação atual".
O professor se diz surpreendido com o projeto de lei do MEC que garante isenção fiscal às instituições em troca de vagas ociosas. "O que me parece dominante no programa é uma pressa em resolver o problema de ampliação do acesso ao ensino superior de modo equivocado. Se é para buscar vagas que precisam ser preenchidas, vamos procura-las no setor público, onde existem muitas vagas disponíveis", afirma.
Formado em sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1967, onde logo depois faria o doutorado e passaria a lecionar, o mineiro Luis Antônio Constant Rodrigues da Cunha foi também professor no Instituto de Estudos Avançados em Educação da Fundação Getúlio Vargas, de 1974 a 1982, na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, de 1980 a 1983, e na Universidade Federal Fluminense (UFF), de 1983 a 1994.
Também atuou como pesquisador visitante e colaborador na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), em 1995, e na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. Atualmente, é professor titular na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde trabalha desde 1997.
Em entrevista à Agência FAPESP, o educador analisa as tentativas históricas de reforma do ensino superior no Brasil, fala dos problemas do setor público, faz críticas ao mecanismo do setor privado e ao programa Universidade para Todos e anuncia a necessidade de incluir mais um eixo aos sete já existentes na reforma atual proposta pelo MEC.
Agência FAPESP - O que o sr. acha do plano de reforma universitária proposto pelo ministro Tarso Genro?
Luis Antônio Cunha – Temos necessidade não de uma reforma universitária, mas sim de uma reforma do ensino superior. Esse era o ponto central nos anos 60 e continua sendo hoje. Quando o ministro da Educação assumiu o cargo, uma de suas primeiras manifestações foi a respeito da necessidade de elaborar uma lei orgânica do ensino superior. O ministro anterior tratava essa questão de uma maneira muito atomizada, absolutamente inorgânica. Então, quando chega o novo ministro e fala que precisamos elaborar uma lei orgânica do ensino superior, eu só posso dar o meu apoio. O termo reforma do ensino superior abrange tanto as universidades quanto várias outras instituições de ensino, como faculdades e centros tecnológicos federais. E não é verdade dizer que as universidades são as boas instituições e as outras são ruins. Os centros federais em educação tecnológica, por exemplo, ministram ensino superior de muito boa qualidade.
Agência FAPESP - Historicamente, quais as tentativas de reforma ocorridas no país? E quais eram os contextos em que elas foram inseridas?
Cunha – Nunca existiu uma lei orgânica de ensino na legislação brasileira. Houve uma lei específica, não chamada lei orgânica, que dava conta do ensino superior, que foi a Lei nº 5540, de 1968. Ela definiu o quadro geral de reforma do ensino superior no Brasil e foi apelidada de "lei da reforma universitária". Essa lei deu um tratamento modernizador a esse campo. Nós estávamos numa ditadura militar – ela foi implantada depois do AI-5 –, então obrigava as instituições chamadas universidades a promoverem mudanças institucionais que de fato fizeram nascer a universidade no Brasil.
Agência FAPESP - Que tipo de mudanças?
Cunha – A criação dos ciclos básicos dos cursos superiores, os vestibulares unificados e o regime departamental, que fazia com que um departamento da universidade oferecesse serviços acadêmicos de ensino a toda a instituição. Por exemplo, o departamento de matemática ensinava a disciplina a estudantes dos mais diferentes cursos, fosse de economia ou de engenharia. Até então, em muitos centros importantes do país, os pesquisadores eram obrigados a buscar, fora de suas universidades, outras instituições de pesquisa para desenvolverem suas investigações. Foi nesse momento também que se instituiu a pós-graduação no Brasil, um grande sucesso do ensino superior brasileiro, sem paralelo em todo o terceiro mundo. Só que esse modelo, criado em 1968, está esgotado.
Agência FAPESP - Esgotado por quais motivos?
Cunha – Por duas razões. Em primeiro lugar, porque continha o modelo único de universidade num país de grande diversidade. Essa lei foi elaborada em um momento em que o ensino superior de qualidade estava dividido entre, de um lado, a rede federal, e de outro lado a Universidade de São Paulo. De lá para cá, as universidades criadas pelos governos estaduais cresceram enormemente. Esse modelo se esgotou também porque foi elaborado especificamente para o setor público. O que aconteceu foi que, enquanto ele era implantado para o setor público, o setor privado crescia e se diferenciava sem a menor normatividade estatal.
Agência FAPESP - Por quê? Os militares eram privatistas?
Cunha – Não. Havia o que eu chamaria de "afinidades eletivas" entre os governos militares e os grupos privatistas do campo educacional. Os militares, por questões de conjuntura política, acabaram apoiando as medidas de reforço à privatização do ensino, à renúncia fiscal dessas instituições.
Agência FAPESP – Era uma troca de interesses?
Cunha – Exatamente.
Agência FAPESP – E qual foi a conseqüência disso?
Cunha – A inversão completa quanto ao número de estudantes entre a situação existente antes dessa lei e a que existe hoje. Antes, um quarto dos estudantes estava matriculado no setor privado e três quartos no público. Hoje é exatamente o inverso. Isso reclama uma mudança urgente de uma legislação unificada que dê conta tanto do setor público quanto do privado. Portanto, quando o ministro apresenta essa meta do ministério, eu só posso dizer que ele está cheio de razão.
Agência FAPESP – Os governos sucessores fizeram novas tentativas depois da lei de 1968?
Cunha - Sim, mas diante do quadro atual, elas perderam sua importância. Desde os anos 80, com a posse do primeiro presidente civil depois dos governos militares, surgiram sucessivas propostas de legislação do ensino superior. Nenhuma tão significativa quanto a de 1968. É preciso ressaltar também a importância da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996, que abriu caminho para mudanças muito significativas no ensino. Pela primeira vez, deixou de existir na legislação a palavra vestibular, desde 1911, quando foi instituído. Na LDB aparece a expressão "processo seletivo". Uma outra mudança determinada pela lei foi o reconhecimento dos centros especializados, como a Escola Paulista de Medicina. Só que, no vácuo do reconhecimento desta boa instituição, tem caminhado uma quantidade muito grande de instituições de baixa qualidade acadêmica, todas ditas como universidades especializadas. Eu não vejo isso como positivo.
Agência FAPESP – Qual o maior entrave para as instituições públicas de ensino?
Cunha - Do ponto de vista do financiamento, há uma situação muito complicada, porque essas instituições são ávidas por mais recursos. Os custos do ensino superior estão crescendo no mundo inteiro. No entanto, o que as universidades públicas brasileiras encontram são orçamentos minguados. Absurdo é o fato de as universidades públicas terem de incluir em seus orçamentos os gastos com funcionários inativos. Isso é inadmissível, não existe em lugar nenhum do mundo. Não se pode fazer um orçamento plurianual com esse tipo de encargo. Essa posição conservadora é extremamente danosa para o planejamento e o desenvolvimento das universidades públicas. Torna mais difícil a reivindicação por mais recursos. Essa reivindicação está crescendo mais atualmente para pagar aposentados do setor e não para responder às necessidades de ampliação do funcionamento das universidades e do corpo docente, dos laboratórios, das bibliotecas e dos equipamentos.
Agência FAPESP– E quanto às universidades privadas?
Cunha – As instituições privadas estão interessadas em fluxo de caixa. Ainda na dimensão do financiamento, nelas o que encontramos é uma situação de selvageria mercadológica. Há uma enorme procura e ansiedade para que as instituições particulares se transformem em universidades, para que possam abrir cursos sem pedir autorização prévia e ampliem o número de vagas. Está aí o ponto nevrálgico da questão. Fazem isso para poder incorporar estudantes da forma mais ampla possível. O quadro normativo para elas é absolutamente permissivo. A transformação dessas instituições em universidades foi enormemente facilitada no governo anterior. Para elas, não importa se o aluno paga a mensalidade por apenas um ano e depois abandona o curso. Isso porque ele já pagou um ano e isso é o que interessa. Elas têm esse mecanismo que eu chamo de selvageria de financiamento. O que me causa estranheza é que, nesse momento, o Governo Federal tenha enviado, pelas mãos do ministro Tarso Genro um projeto de lei que estabelece isenções fiscais para universidades privadas, especialmente para aquelas que podem obter lucro.
Agência FAPESP – O sr. está se referindo ao projeto Universidade para Todos. O sr. é contra esse programa?
Cunha – Sou contra essa parte do programa. Tem um outro lado positivo, que é aquele que restringe as possibilidades de atuação das instituições filantrópicas de ensino superior, fazendo com que as bolsas concedidas por essas instituições sejam integrais. Mas, com esse programa de isenções fiscais, o governo está diminuindo seu protagonismo em elaborar políticas, por diminuir a quantidade de cotas que recebe.
Agência FAPESP– E quanto à proposta do programa de criar vagas públicas nessas instituições privadas, utilizando suas vagas ociosas que, diz o governo, está na casa dos 37%?
Cunha – Na verdade, não se criam vagas públicas. A vaga que está na universidade privada é uma vaga privada. A única coisa que é pública é a ausência do imposto. As vagas ociosas que o governo precisa estão no setor público. O que me parece dominante nesse programa é uma pressa em resolver o problema de ampliação do acesso ao ensino superior de modo equivocado. E nessa pressão, o que é mais fácil fazer? Enfiar alunos que estariam sobrando no ensino superior em universidades privadas que, por sua vez, produziram um falso excedente de vagas. Se é para buscarmos vagas que precisam ser preenchidas, vamos procurá-las no setor público, em instituições estaduais e federais.
Agência FAPESP – Essas vagas existem?
Cunha – Há muitas vagas disponíveis. As instituições públicas de ensino estão cheias de vagas que não são utilizadas, em primeiro lugar porque há um abandono significativo de cursos por parte dos alunos. As estatísticas nem sempre mostram e os administradores não gostam de reconhecer, mas a disponibilidade é real. Nós, professores, não podemos mais dissimular essa situação. Existe uma evasão de alunos muito grande nas instituições públicas. Essa evasão nos cursos de graduação pode estar em torno dos 50%.
Agência FAPESP – E por que essas vagas não são utilizadas?
Cunha – Porque os administradores das universidades públicas não gostam de abrir vagas para a entrada de estudantes transferidos das instituições privadas. Existe uma enorme demanda de alunos dessas instituições que querem se transferir para a instituição pública por causa da gratuidade e da qualidade do ensino.
Agência FAPESP – Se há uma evasão significativa de alunos nas universidades públicas, o que é mais urgente hoje para a melhoria do curso superior brasileiro?
Cunha – Uma efetiva ampliação dos cursos de graduação nas instituições públicas de ensino. Precisamos explorar ao máximo os recursos que temos. Não quero dizer que esses recursos são suficientes, mas temos de utilizar o que temos até o extremo limite. Eu não penso em parar a ampliação dos recursos, mas não quero que a busca dessa ampliação dissimule uma situação existente.
Agência FAPESP – O ministro tem apresentado os sete eixos da reforma. O que o sr. acha desse projeto?
Cunha – Como disse, precisamos urgentemente de uma legislação unificada que dê conta tanto do setor público quanto do privado, até porque o setor privado tem algumas características muito diferentes do setor público, que são incomparáveis, no que dizem respeito à própria gestão. O setor privado é gerido por um tipo de instituição chamada "entidade mantenedora" que, na realidade, é uma entidade mantida pelas instituições de ensino superior. Ou seja, não existem entidades mantenedoras que sustentem financeiramente as instituições que elas dizem manter. O contrário existe. Portanto, essa questão da "mantenedora" não está sendo levantada e deveria. Uma nova lei orgânica do ensino superior precisa enfrentar de frente, no que diz respeito ao setor privado, essa questão. Se essa reforma não enfrentar esse problema, nós assistiremos à reprodução ampliada do setor privado no Brasil, não só quanto à sua quantidade, mas no que diz respeito também à sua baixa qualidade.
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