Apesar de se saber com alto grau de certeza que a matéria escura existe, não se sabe (ainda) o que ela é (ilustração: Ralf Kaehler/SLAC National Accelerator Laboratory)

Astrofísica
Estudo propõe nova abordagem para a investigação da matéria escura
25 de julho de 2025
EN ES

Modelo elaborado por cientistas do Instituto de Física da USP considera duas partículas de matéria escura, uma estável e outra não, e um mediador vetorial, semelhante ao fóton, porém dotado de massa, que promoveria a interação com as partículas da matéria comum

Astrofísica
Estudo propõe nova abordagem para a investigação da matéria escura

Modelo elaborado por cientistas do Instituto de Física da USP considera duas partículas de matéria escura, uma estável e outra não, e um mediador vetorial, semelhante ao fóton, porém dotado de massa, que promoveria a interação com as partículas da matéria comum

25 de julho de 2025
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Apesar de se saber com alto grau de certeza que a matéria escura existe, não se sabe (ainda) o que ela é (ilustração: Ralf Kaehler/SLAC National Accelerator Laboratory)

 

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Sabe-se hoje que toda a matéria conhecida – estudada pelas ciências e operacionalizada pelas tecnologias – constitui 5% do conteúdo do Universo. O restante é composto por uma componente desconhecida, a matéria escura (cerca de 27%) e por energia escura (cerca de 68%). A conta, confirmada pela primeira vez décadas atrás, continua surpreendendo leigos – e cientistas.

No caso da matéria escura (ME), as evidências de que realmente exista são abundantes – todas decorrentes da interação gravitacional com a matéria comum. Desde curvas de rotação de estrelas em galáxias, discrepâncias no movimento de galáxias em aglomerados, formação de estruturas do Universo em larga escala, até a radiação cósmica de fundo, que se distribui uniformemente por todo o espaço. Mas, apesar de se saber com alto grau de certeza que ela existe, não se sabe o que ela é. E vários modelos propostos até o momento fracassaram.

Novo estudo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) propõe um modelo de matéria escura inelástica que interagiria com a matéria comum por meio de um mediador vetorial, semelhante ao fóton, porém dotado de massa. O objetivo é abrir uma nova janela de observação. Artigo a respeito foi publicado no Journal of High Energy Physics (e também na Plataforma ArXiv).

“Nesse trabalho, consideramos um modelo de ME composto por um setor escuro com partículas leves que interagem fracamente com as partículas conhecidas do Modelo Padrão [MP]”, diz Ana Luisa Foguel, doutoranda do Instituto de Física (IF-USP) e primeira autora do artigo.

Contexto

Inicialmente, a busca por matéria escura esteve focada em candidatos pesados, com massas muitas vezes maiores do que a do elétron ou até mesmo das partículas mais pesadas do MP. A ideia era que, por serem muito massivas, essas partículas não podiam ser produzidas pelos colisores de partículas que ainda não tinham energia suficiente. Porém, mesmo com os experimentos realizados no Grande Colisor de Hádrons (LHC, na sigla em inglês) da Organização Europeia para a Investigação Nuclear (Cern, na sigla oficial em francês), novas partículas além daquelas do MP não foram observadas.

Com isso, uma parte da comunidade científica mudou de foco e passou a procurar partículas leves, porém com interações muitíssimo fracas. A ideia era que ainda não havia sido possível observar tais partículas pelo fato de interagirem tenuamente com a matéria comum. Para investigar sinais delas, os experimentos precisavam caminhar em direção à chamada “fronteira de intensidade”, ou seja, teriam de medir acoplamentos e interações com precisão cada vez maior para buscar eventuais discrepâncias que sinalizassem a existência de algo novo.

Freeze-out térmico

O estudo vai nessa direção. “Ao pensar em um novo modelo de matéria escura, a primeira coisa é saber como foi possível a produção da quantidade certa de tal componente. Essa quantidade é hoje medida de forma muito precisa, com dados, por exemplo, da radiação cósmica de fundo. E são conhecidos vários mecanismos que poderiam ter levado à geração de ME no Universo primordial. Um dos mais motivados teoricamente é o chamado ‘freeze-out térmico’”, afirma Foguel.

No contexto da física de partículas ou da cosmologia, o “freeze-out térmico” é o momento em que determinadas partículas desacoplam do banho térmico – ou seja, em que as interações que aniquilam tais partículas, transformando-as em outras do MP, deixam de ser suficientes. A partir daí, como não ocorrem mais processos que possam mudar o número dessas partículas, sua abundância “congela”, permanecendo praticamente inalterada.

“Esse mecanismo é interessante e bem conhecido, pois temos vários exemplos de partículas do Modelo Padrão cuja abundância foi gerada dessa forma. Sendo assim, a possibilidade de considerar que os componentes da matéria escura tenham sido gerados por um mecanismo similar é natural”, comenta a pesquisadora.

Nesse mecanismo, as partículas candidatas a matéria escura estão incialmente, isto é, logo após o início do Universo, em um “banho térmico” com as partículas da matéria comum. Ou seja, todas as partículas estão interagindo muito rápido de forma a compartilhar a mesma temperatura. Com a expansão e o consequente resfriamento do Universo, as partículas perdem esse contato térmico. É o que se chama “freeze-out”.

“O exato momento do desacoplamento depende da probabilidade de que ocorram interações entre as partículas da ME e as partículas do MP. Essa probabilidade é parametrizada por uma variável que chamamos de seção de choque sigma. Se sigma é muito pequena, as partículas de matéria escura desacoplam muito cedo e sua abundância é muito grande. Ao contrário, se é muito grande, a ME permanece mais tempo em contato térmico, aniquilando-se em partículas do MP, de forma que, ao desacoplar mais tarde, não possui abundância suficiente”, pontua Foguel.

No caso de matéria escura leve, a interação com a matéria comum é feita através de um portal. Ou seja, a partícula de matéria escura não se acopla diretamente com todas as partículas do Modelo Padrão, mas com uma partícula que faz o papel de mediadora da interação da ME com o MP. A seção de choque sigma de tal interação é proporcional à massa da ME e inversamente proporcional à massa da partícula do portal. Dessa forma, para haver uma candidata leve, no patamar de energia inferior ao gigaelétron-volt, o portal não pode ser muito pesado. Assim, os bósons do Modelo Padrão que intermedeiam as interações fracas (W+, W- e Z0) não funcionariam como portal. É necessária a introdução de uma nova partícula escura para realizar a mediação entre a ME e o MP.

“Em nosso modelo, essa partícula que intermedeia a relação entre os dois setores é um bóson vetorial (ZQ). Comporta-se como um fóton, a partícula que intermedeia as interações eletromagnéticas, porém possui massa. Além disso, o diferencial desse modelo é que esse mediador também interage diretamente com outras partículas do MP”, conta a pesquisadora.

Esse mediador conectaria as partículas do Modelo Padrão às partículas da matéria escura. No modelo proposto, haveria dois tipos delas: uma partícula estável (χ₁), que comporia a matéria escura propriamente dita, e uma partícula instável ligeiramente mais pesada (χ₂). A interação delas com o mediador ZQ sempre se daria em conjunto. Isto é, o mediador interagiria com ambas ao mesmo tempo. E isso configuraria um tipo específico de matéria escura, chamada “matéria escura inelástica”. Além disso, χ₂ poderia decair em χ₁ e em partículas do Modelo Padrão. O trabalho mostra que, com todos esses arranjos, é possível explicar a abundância de matéria escura existente no Universo e, ao mesmo tempo, contornar os limites experimentais que impedem sua detecção.

“Vale ressaltar que modelos como o nosso, com matéria escura inelástica, são interessantes porque, além de explicarem a geração eficiente de ME por meio do mecanismo de freeze-out, também possibilitam contornar os limites atuais de detecção direta e indireta, assim como os limites da cosmologia. A razão vem do fato que, como χ₂ não é estável e as interações dependem de χ₂, não há população suficiente de χ₂ durante a época da recombinação para injetar energia no plasma – o que poderia ter modificado a radiação cósmica de fundo. E também não há χ₂ no Universo atual para decair ou aniquilar-se com χ₁, produzindo sinais que possibilitem detecção indireta. Além disso, para χ₁ poder interagir nos experimentos de detecção direta, ele teria que se transformar em χ₂, o que é muito difícil, pois χ₂ é mais massivo”, detalha Foguel.

Superando o modelo “vanilla”

Segundo a pesquisadora, o novo modelo proposto seria uma alternativa ao modelo “vanilla” de ME inelástica, que considera um mediador que não se acopla diretamente com as partículas de matéria escura. Na física de partículas, o termo “vanilla” (baunilha) é usado para designar a versão mais básica e minimalista de um modelo, com o menor número de ingredientes teóricos possível.

“O modelo ‘vanilla’ já está praticamente excluído, porque a quase totalidade dos parâmetros que reproduzem a abundância correta de ME foi descartada por buscas experimentais. Dessa forma, o objetivo principal de nosso trabalho foi mostrar que, considerando uma simples modificação desse modelo, permitindo mediadores com acoplamentos diretos em vez de indiretos, podemos eventualmente ‘salvar’ a ME inelástica”, explica Foguel.

“Considerando os modelos propostos, calculamos primeiro a abundância de ME pelo processo de freeze-out e disponibilizamos on-line um código que permite reproduzir tais cálculos, mostrando as regiões do espaço de parâmetros que produzem a ME inelástica, para diferentes escolhas de carga Q, com abundância correta. Depois disso, focamos nos limites de experimentos distintos. E concluímos que, para certos modelos, novas regiões do espaço de parâmetros estão ‘desbloqueadas’, ou seja, existem parâmetros que reproduzem a abundância correta de ME e ainda não foram excluídos. Algumas dessas regiões de parâmetros poderão ser investigadas em experimentos futuros.”

Renata Zukanovich Funchal, professora titular do IF-USP, orientadora de Foguel, coordenadora do estudo e coautora do artigo, resume: “O uso de mediadores vetoriais mais gerais abre uma nova janela para modelos viáveis de matéria escura inelástica, com consequências diretas sobre as taxas de decaimento, as assinaturas experimentais e os limites cosmológicos”.

Foguel foi apoiada pela FAPESP por meio de bolsa de doutorado e bolsa de estágio de pesquisa no exterior. Peter Reimitz, coautor do artigo, foi apoiado com bolsa de pós-doutorado. E Funchal foi contemplada com auxílio regular à pesquisa na modalidade SPRINT e com a participação no Projeto Temático “Fenomenologia de partículas”.

O artigo Unlocking the inelastic Dark Matter window with vector mediators pode ser acessado em: https://link.springer.com/article/10.1007/JHEP05(2025)001. E também em: https://arxiv.org/abs/2410.00881.

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