Chuveirinho (Paepalanthus urbanianus) em campo úmido, Chapada dos Veadeiros, Goiás (foto de Rafael Oliveira)

Estudo propõe critérios para ajudar a delimitar e conservar as áreas úmidas do Cerrado
06 de dezembro de 2022
EN ES

Desses ecossistemas dependem oito importantes bacias hidrográficas do país, mas ambiguidades da legislação têm permitido o avanço das lavouras de soja na região. Alerta foi feito por cientistas brasileiros no periódico Perspectives in Ecology and Conservation

Estudo propõe critérios para ajudar a delimitar e conservar as áreas úmidas do Cerrado

Desses ecossistemas dependem oito importantes bacias hidrográficas do país, mas ambiguidades da legislação têm permitido o avanço das lavouras de soja na região. Alerta foi feito por cientistas brasileiros no periódico Perspectives in Ecology and Conservation

06 de dezembro de 2022
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Chuveirinho (Paepalanthus urbanianus) em campo úmido, Chapada dos Veadeiros, Goiás (foto de Rafael Oliveira)

 

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – O Cerrado é o mais ameaçado dos grandes biomas do território brasileiro. E uma parte especialmente vulnerável do Cerrado são suas áreas úmidas, que garantem a existência de rios perenes e abastecem nada menos do que oito bacias hidrográficas. O Xingu, o Tocantins, o Araguaia, o São Francisco, o Parnaíba, o Jequitinhonha, o Paraná e o Paraguai, entre outros rios importantes, nascem no Cerrado. A destruição de áreas úmidas não ameaça apenas a biodiversidade e a extraordinária beleza das paisagens cerratenses. Põe em risco ainda a segurança hídrica e energética do país.

Além disso, as áreas úmidas são também um extraordinário repositório de carbono (C), estocando mais de 200 toneladas por hectare. E alterações em seu equilíbrio cíclico tendem a liberar metano (CH4) para a atmosfera, um dos principais gases de efeito estufa (GEE).

O problema é que a própria definição de áreas úmidas é confusa. E essa confusão tem sido explorada por grandes produtores rurais que, não contentes em converter descontroladamente áreas secas do Cerrado em terras agriculturáveis, cogitam também drenar as áreas úmidas, para estender as lavouras de soja até o fundo das veredas. Se não fosse por outros motivos, até mesmo do ponto de vista estrito do interesse econômico isso equivaleria a erguer uma pedra para deixá-la cair sobre os próprios pés, pois a possibilidade de irrigação depende da sobrevivência dos mananciais.

Para dirimir a confusão e fornecer aos tomadores de decisão sólidos critérios científicos, um grupo de pesquisadores acaba de produzir um artigo contemplando os múltiplos ecossistemas englobados pelo conceito de áreas úmidas. Trata-se de Cerrado wetlands: multiple ecosystems deserving legal protection as a unique and irreplaceable treasure, publicado no periódico Perspectives in Ecology and Conservation.

“A falta de definições precisas tem embaralhado a regulamentação, deixando importantes segmentos do Cerrado desprotegidos. Nosso objetivo foi esclarecer o que são áreas úmidas; que ecossistemas podem ser abarcados por esse nome; que dinâmicas eles apresentam; e o que devemos fazer para protegê-los”, diz à Agência FAPESP a pesquisadora Giselda Durigan, primeira autora do artigo.

Durigan é pesquisadora do Instituto de Pesquisas Ambientais do Estado de São Paulo (IPA) e professora nos programas de pós-graduação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Estuda o Cerrado há mais de 35 anos.

“Um exemplo do grave risco que a falta de definições precisas e as ambiguidades na interpretação da lei podem acarretar foi a Resolução número 45, de 31 de agosto de 2022, aprovada pelo Conselho do Meio Ambiente de Mato Grosso (Consema). Desrespeitando decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), essa norma regulamentou o ‘licenciamento ambiental de atividades e empreendimentos localizados em áreas úmidas’ no âmbito estadual. Por trás dos eufemismos do texto, a resolução, de fato, libera a destruição”, denuncia Durigan.

A pesquisadora define: “Áreas úmidas são porções de terras continentais que estão sujeitas, periódica ou permanentemente, a encharcamento do solo ou inundação. Dada a sua fragilidade e extrema importância para o armazenamento e a filtragem da água, são globalmente protegidas, desde a convenção intergovernamental realizada em Ramsar, no Irã, em 1971. O Brasil é signatário da convenção de Ramsar desde 1996, mas até hoje não atendeu ao compromisso de mapear todas as suas áreas úmidas”.

No país, há exemplos de áreas úmidas em faixas costeiras, onde os pulsos de inundação resultam da oscilação das marés, de modo que a água se apresenta salgada ou salobra. E também longe da costa, compondo dois grandes tipos, hidrologicamente distintos: terras que são periodicamente alagadas pelo transbordamento dos leitos dos rios (várzeas e pantanais) e terras que ficam encharcadas ou até alagadas pela elevação periódica do lençol freático.

“As áreas úmidas do Cerrado geralmente se enquadram no último tipo. As chuvas abundantes, que caem nos meses de verão, infiltram-se lenta e profundamente no solo, recarregando o lençol freático e acumulando-se nas áreas úmidas, de onde brotam os pequenos riachos que nunca secam e alimentam os grandes rios do Brasil, mesmo nos períodos de estiagem. Diferentemente, aliás, das outras grandes savanas do mundo, cujos grandes rios secam de todo durante boa parte do ano”, informa Durigan.

Proteção integral

Segundo a pesquisadora, a confusão que embaralha a regulamentação deve-se ao fato de que, dentro das áreas úmidas do Cerrado, existem diversos tipos de vegetação, que resultam em múltiplas denominações regionais. São campos úmidos, campos de murundus, turfeiras, veredas, palmeirais, buritizais, matas de galeria, matas de brejo e por aí vai. Às vezes, em uma única área úmida, existem dois ou mais tipos de vegetação, desde campos limpos até florestas densas, o que tem dificultado seu entendimento, delimitação e proteção.

“A lei, às vezes, refere-se a apenas um dos tipos, como é o caso das veredas na Lei de Proteção da Vegetação Nativa (12.651), de 2012, deixando os demais tipos desprotegidos. Outras vezes, a lei protege apenas uma parte da área úmida, deixando trechos inteiros sem cobertura legal”, ressalta Durigan.

Ela conta que o artigo em pauta resultou de um esforço multidisciplinar, envolvendo especialistas em vegetação, hidrologia, ecofisiologia, conservação, restauração e legislação ambiental, que utilizaram seus conhecimentos e experiências práticas para unificar e disseminar sua compreensão sobre o assunto. O grupo teve apoio da FAPESP por meio de três projetos (19/07773-1, 20/09257-8 e 20/01378-0).

“Para nós, todas as áreas úmidas devem ser igualmente e integralmente protegidas por lei, garantindo-se que não sejam convertidas para cultivo e que seus pulsos naturais de encharcamento ou inundação não sejam afetados pelo uso da terra ao redor. Práticas de exploração sustentável, como a apicultura e o extrativismo, por exemplo, podem ser admitidas, mas precisam ser validadas e regulamentadas”, enfatiza Durigan.

E sua ênfase se justifica, pois as ameaças às áreas úmidas são muitas no Cerrado, destacando-se barramento dos córregos, drenagem das terras brejosas, expansão de áreas urbanizadas, obras de infraestrutura, extração descontrolada de água de poços para irrigação e plantação de árvores, principalmente de eucalipto, em bacias hidrográficas inteiras, onde a vegetação original não era floresta.

“Todas essas atividades são altamente impactantes. Reduzem o nível do lençol freático ou podem até mesmo exauri-lo localmente, pondo em risco a segurança hídrica e os serviços ecossistêmicos do Cerrado. É algo que precisa ser urgentemente impedido por meio de legislação competente e da aplicação efetiva da lei”, afirma a pesquisadora.

Durigan comenta que a Lei de Proteção à Vegetação Nativa trata de maneira bastante confusa as áreas úmidas, deixando uma parte delas como Áreas de Preservação Permanente (APP) e outra parte como Áreas de Uso Restrito (AUR). Mas que alguns tipos de áreas úmidas do Cerrado não se encaixam nas definições dos tipos mencionados, o que tem gerado imprecisão na aplicação da lei, com conflitos jurídicos, sociais e políticos.

“Buscando pacificar a situação, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que, dada a sua inquestionável importância ambiental, todas as áreas úmidas devem ser entendidas como protegidas, sejam como APPs, sejam como AURs, independentemente da nomenclatura. Foi essa decisão que a resolução do Consema do Estado de Mato Grosso desrespeitou”, sublinha a pesquisadora.

A boa notícia é que existe, no momento, um grande grupo de técnicos e cientistas, representativos de diferentes regiões do Brasil, empenhados em realizar o Inventário Nacional de Áreas Úmidas, sob a liderança dos especialistas Wolfgang Junk e Cátia Nunes da Cunha, do INCT Áreas Úmidas (Inau), para dar suporte ao Ministério do Meio Ambiente.

“A Plataforma MapBiomas incluiu recentemente a legenda ‘Áreas Úmidas’ em seus mapas, o que se constitui em grande avanço. Porém, demarcar as áreas úmidas em campo, na escala de uma propriedade rural, não é uma tarefa fácil e isso atrapalha a aplicação das leis. Nosso artigo propõe critérios objetivos, baseados no solo hidromórfico, na flora endêmica e na elevação máxima do lençol freático para facilitar a delimitação de áreas úmidas em escala local”, conclui Durigan.

O artigo Cerrado wetlands: multiple ecosystems deserving legal protection as a unique and irreplaceable treasure pode ser acessado em: www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2530064422000384?via%3Dihub.
 

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