Equipe do Projeto Dados à Prova D’Água entrevistando moradores do distrito de M’Boi Mirim em São Paulo, 2019 (foto: Acervo do Projeto Dados à Prova D’Água)
Artigo recém-publicado descreve trajetória de debates envolvendo Brasil e Reino Unido sobre como melhorar a governança de risco de inundações; projeto já resultou em aplicativo e material didático construídos com comunidades
Artigo recém-publicado descreve trajetória de debates envolvendo Brasil e Reino Unido sobre como melhorar a governança de risco de inundações; projeto já resultou em aplicativo e material didático construídos com comunidades
Equipe do Projeto Dados à Prova D’Água entrevistando moradores do distrito de M’Boi Mirim em São Paulo, 2019 (foto: Acervo do Projeto Dados à Prova D’Água)
Luciana Constantino |Agência FAPESP – Um aplicativo construído de forma colaborativa com comunidades vulneráveis para informar com antecedência riscos de inundações e desastres ambientais virou política pública no Brasil. E a metodologia será replicada para que outras regiões possam adotá-la. Com aplicações práticas obtidas em 2022, parte dessa discussão envolvendo propostas de melhorias na governança de risco de inundações começou a ser trilhada há pelo menos dois anos.
Um dos eventos dessa trajetória está agora publicado em artigo na revista Disaster Prevention and Management – trata-se do workshop, realizado em junho de 2020, como parte do projeto Dados à Prova d'Água (WPD, na sigla em inglês), para a troca de conhecimentos entre pesquisadores do Brasil e do Reino Unido.
O projeto é resultado de uma parceria internacional entre as universidades de Glasgow e Warwick, no Reino Unido, Heidelberg, na Alemanha, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e da Fundação Getúlio Vargas, com apoio da FAPESP, do Fundo de Pesquisa e Inovação do Reino Unido (United Kingdom Research and Innovation) e do Ministério para Educação e Pesquisa da Alemanha (BMBF), em coordenação com Research Funding Agency Cooperation in Europe (Norface), Belmont Forum e Conselho Internacional de Ciência.
O trabalho registrado no artigo também recebeu apoio da FAPESP por meio de outros três projetos (19/06616-0; 19/06595-2 e 18/06093-4).
Ao elencar as descobertas no workshop, os pesquisadores apontam como desafios comuns aos dois países a superação da falta de informações locais sobre inundações e de sistemas de integração, além da escassez de ferramentas de visualização de dados e de comunicação entre as agências de prevenção.
Para isso, sugerem uma colaboração interdisciplinar entre países e troca de conhecimento, focada em ferramentas, métodos e políticas usadas no Brasil e no Reino Unido na tentativa de desenvolver iniciativas inovadoras para informar e aprimorar a governança do risco de inundação.
"Nas discussões percebemos que os dois países têm o desafio de engajar cidadãos nas ações de prevenção a inundações e de fazer com que os especialistas falem de uma maneira que chegue até a ponta. Se os moradores de áreas de risco não estão envolvidos, a efetividade das ações é menor. É na forma de superar esses desafios que há diferença – as estratégias devem ser específicas e voltadas às características de cada uma das populações", diz à Agência FAPESP João Porto de Albuquerque, pesquisador da Universidade de Glasgow e um dos autores do artigo.
Para Victor Marchezini, pesquisador do Cemaden e autor correspondente do trabalho, o projeto Dados à Prova d'Água inova ao dar apoio às instituições para o uso da metodologia envolvendo a participação das comunidades na construção de ciência-cidadã.
"Muitas vezes as instituições não estão preparadas para isso. Há uma resistência cultural para o potencial da ciência-cidadã e o envolvimento amplo na construção de sistemas de alerta e de prevenção de inundações", afirma.
Ferramentas inovadoras
Buscando repensar como os dados relacionados a inundações são produzidos, o projeto se propôs a desenvolver métodos inovadores para dar visibilidade aos fluxos atuais de geração, circulação e uso dos dados, gerando novos tipos de informação no nível local com engajamento dos cidadãos. Tudo isso visando a integração de resultados obtidos com técnicas geocomputacionais para melhorar a resiliência das comunidades em relação a inundações.
Nessa linha, o projeto lançou em janeiro o aplicativo em que moradores de bairros vulneráveis a inundações informam com antecedência sobre possíveis eventos do tipo e contribuem com órgãos competentes no mapeamento de áreas suscetíveis e na prevenção de desastres.
Usando o princípio da ciência-cidadã, alunos de escolas públicas fizeram treinamento, que incluía a construção de pluviômetros artesanais usando garrafa PET e régua. Cada um era responsável por verificar diariamente a quantidade de chuva medida por esses pluviômetros e inserir as informações no aplicativo (leia mais em: agencia.fapesp.br/37640/).
A ferramenta foi testada por professores, estudantes, agentes da Defesa Civil e moradores em mais de 20 municípios de Pernambuco, Santa Catarina, Mato Grosso, Acre e São Paulo. Agora ganhou nova versão com um painel de controle web (dashboard) e passará a ter abrangência nacional, como política pública, ao ser incorporada pelo Cemaden, que ficará responsável pela gestão.
Além disso, em junho houve a divulgação do Guia de Aprendizagem, que norteará uma disciplina eletiva do projeto com o objetivo de engajar estudantes na produção de dados e de conhecimento sobre desastres provocados pelo excesso de água ou falta de drenagem urbana em seus bairros e cidades (o material didático está disponível aqui). A metodologia continuará a ser divulgada pelo Programa Cemaden Educação, parceiro do projeto.
"O artigo foi publicado agora, depois do lançamento da ferramenta, mas é a base para abordagem do projeto. Buscamos um desenvolvimento participativo, incluindo comunidades, Defesa Civil e usuários finais. Vejo como grande contribuição do projeto uma metodologia que trabalha com ciência-cidadã", completa Albuquerque.
O pesquisador cita como exemplo Jaboatão dos Guararapes, município da região metropolitana de Recife, que concentrou quase metade das cerca de 130 mortes registradas em Pernambuco desde o final de maio deste ano em decorrência de inundações e temporais que atingiram o Estado.
"Alguns bairros da cidade foram parceiros no piloto do aplicativo. As pessoas continuaram usando. Soubemos que em 25 de maio um dos cientistas-cidadão alertou pela ferramenta o registro de um volume de chuva acima do esperado para a época. Houve mobilização comunitária e evacuação das pessoas das áreas de risco, evitando mortes nessas regiões. Fizemos o treinamento, as pessoas mantiveram o uso e tivemos resultado efetivo com medidas de precaução", diz Albuquerque.
De acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações Unidas (ONU), inundações e chuvas extremas tendem a ficar cada mais frequentes com o aumento da temperatura da Terra. Até 2050, 1 bilhão de pessoas enfrentarão o risco de inundações costeiras devido à elevação do nível do mar e mais moradores serão forçados a deixar suas casas devido a extremos climáticos, especialmente inundações e enxurradas.
Além disso, se o aquecimento global atingir 1,5 grau Celsius a mais em relação à média pré-industrial, pode haver um aumento de 24% da população global exposta a inundações.
Método
O workshop on-line foi realizado em 8 de junho de 2020, com quatro horas de duração e participação de mais de 40 servidores públicos, pesquisadores de ciências naturais e sociais, além de profissionais e outros técnicos envolvidos em previsão, prevenção e resposta a enchentes no Brasil e no Reino Unido.
A primeira parte foi focada em seis apresentações individuais sobre o tema governança de risco de inundação nos dois países e a ciência-cidadã. A segunda etapa foi dedicada às discussões dos grupos focais, em que os participantes foram divididos em quatro grupos que trataram de conhecimento sobre riscos; previsão e monitoramento de enchentes; comunicação e governança do risco de inundação.
“Um ponto importante do projeto é, além de incluir a perspectiva da contribuição da comunidade, conectar as discussões a universidades locais, que podem ter um papel de multiplicadoras. Em momentos de risco, os moradores buscam informação. O aplicativo é uma forma de unir um sistema confiável com a participação de vários atores”, resume Marchezini.
No Brasil, cerca de 8,2 milhões de pessoas moram em áreas de risco sujeitas a deslizamentos de terra e inundações, segundo estimativa do Cemaden com base em estudo realizado em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 872 municípios.
Por outro lado, somente 1.538 (27,6%) dos 5.570 municípios brasileiros têm Plano Diretor de prevenção de enchentes ou inundações graduais, ou enxurradas ou inundações bruscas.
O artigo Flood risk governance in Brazil and the UK: facilitating knowledge exchange through research gaps and the potential of citizen-generated data pode ser lido em: www.emerald.com/insight/content/doi/10.1108/DPM-01-2022-0016/full/html#sec005.
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