Cientistas usaram 12 bancos de dados coletados no Brasil, Itália e Espanha para projetar como as mudanças climáticas vão impactar as respostas termorreguladoras dos animais (imagem: Atlas Company/Freepik)

Segurança Alimentar
Estudo avalia vulnerabilidade de rebanhos às mudanças climáticas
02 de outubro de 2025

Pesquisa liderada por cientistas da Esalq-USP contribui para a formulação de estratégias que evitem colapso da produção de proteína animal

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Cientistas usaram 12 bancos de dados coletados no Brasil, Itália e Espanha para projetar como as mudanças climáticas vão impactar as respostas termorreguladoras dos animais (imagem: Atlas Company/Freepik)

 

COP30

Luciana Constantino | Agência FAPESP – Com uma abordagem pioneira e abrangente em escala global, pesquisadores brasileiros desenvolveram uma metodologia que permite projetar como rebanhos de animais de produção de diferentes espécies responderão fisiologicamente aos impactos das mudanças climáticas entre 2050 e 2100.

Estima-se que, se o aumento médio de 2 °C de temperatura for atingido em 2050, situações críticas para a agricultura e para a saúde de animais e de humanos serão registradas ainda com mais frequência e intensidade. Por isso, os resultados da pesquisa são importantes para a estruturação de políticas públicas, tomada de decisão e ações do setor privado visando evitar o comprometimento da produção e da segurança alimentar.

De acordo com o estudo, os pequenos ruminantes serão mais impactados pelas mudanças climáticas nos três cenários analisados (2050, 2075 e 2100) em países do hemisfério Norte quando comparados aos mesmos animais no Sul. A projeção é de um aumento médio de até 68% na taxa respiratória dos animais do Norte em relação ao Sul.

Já a pecuária leiteira no Sul será a mais vulnerável ao estresse térmico entre ruminantes criados nos trópicos, enquanto caprinos e bovinos de corte demonstram maior resiliência devido à plasticidade fenotípica, ou seja, a capacidade de mudança de características físicas (fenótipos) dependendo das condições ambientais, permitindo, assim, adaptação sem alterar o código genético (genótipo).

Entre os animais de produção do hemisfério Sul, as galinhas poedeiras e codornas foram identificadas como as mais suscetíveis ao estresse térmico, com aumento previsto de até 40 batimentos respiratórios por minuto até 2100. Os achados estão publicados na revista científica Environmental Impact Assessment Review.

“Com as temperaturas globais aumentando e os eventos climáticos se tornando mais extremos, será preciso desenvolver linhagens resistentes e adaptáveis, além de ambientes produtivos de alto nível, com controle de condições térmicas. Nosso estudo fornece subsídios cruciais para orientar políticas de adaptação da produção animal visando à segurança alimentar e à sustentabilidade ambiental. Sabemos que as adaptações precisarão ser feitas, incluindo manejo direcionado à seleção e à conservação de recursos genéticos”, diz Iran José Oliveira da Silva, coordenador do Núcleo de Pesquisa em Ambiência (Nupea) da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP) e um dos cientistas do grupo.

Silva foi orientador no doutorado do zootecnista Robson Mateus Freitas Silveira, também da Esalq e primeiro autor do artigo – o texto é o quinto de uma série de outros já publicados de sua tese (nos periódicos Environmental and Sustainability Indicators, Journal of Cleaner Production, Computers and Electronics in Agriculture e Smart Agricultural Technology).

“Começamos essa série definindo, pela primeira vez, o que seria um animal sustentável. Entendemos ser aquele com baixa emissão de carbono líquido, eficiente na conversão alimentar e na adaptação, independentemente das condições climáticas, além de clinicamente saudável e com alto desempenho. Depois desenvolvemos uma metodologia para identificar esses animais, fizemos a caracterização e as discussões. Posteriormente, buscamos identificar biomarcadores fenotípicos para identificá-los”, explica Silveira, que recebeu apoio da FAPESP por meio de bolsas (22/14250-8 e 23/16733-9).

Neste ano, Silveira ganhou o Prêmio de Excelência da Sociedade Brasileira de Zootecnia, que reconhece desempenho, dedicação à pesquisa e contribuição para o avanço da área no Brasil.

Metodologia

Os cientistas utilizaram 12 bancos de dados coletados no Brasil, Itália e Espanha para projetar como as mudanças climáticas vão impactar nas respostas termorreguladoras.

Houve uma etapa que envolveu tabulação, organização e padronização de dados biológicos, produtivos e ambientais. Depois, foram avaliadas as respostas adaptativas e identificados biomarcadores fenotípicos de animais de produção usando análise fatorial exploratória e regressão múltipla. O perfil adaptativo de diferentes animais foi traçado em ambos os hemisférios.

A partir daí, o grupo desenvolveu modelagens inteligentes com aprendizado de máquina (machine learning) e análise multivariada. Dados meteorológicos foram usados para projetar cenários climáticos de acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC – RCP 4.5, modelo conservador), ligado às Nações Unidas (ONU).

Os pesquisadores analisaram também respostas adaptativas dos animais de produção, como variáveis termorreguladoras, hematológicas, morfológicas, hormonais e bioquímicas. As espécies incluídas são ovinos, caprinos, bovinos (de leite e de corte), suínos (leitões), aves e codornas.

Silva destaca que as variáveis hematológicas (medidas por meio de exame de sangue completo) são um importante biomarcador para o estudo de adaptação animal à temperatura ambiente, até mais do que a morfologia da pelagem.

Os autores concluem que a adaptação animal é essencial para enfrentar os cenários de mudanças climáticas, especialmente no equilíbrio entre produção e resiliência. Enquanto o hemisfério Norte concentra maior produtividade e será o mais impactado, o Sul deve investir em seleção de biomarcadores, cruzamentos e conservação de raças locais. O futuro da segurança alimentar dependerá da integração de genética, políticas públicas e inovação sustentável em escala global.

Paradoxo

A ONU aponta que a população mundial deve crescer dos atuais 8 bilhões de pessoas para cerca de 10 bilhões em 2050. Mesmo com os esforços dos países para garantir segurança alimentar, estima-se que 8,2% da população passou fome em 2024, enquanto o desperdício ainda chega a um terço da comida produzida no mundo.

Além disso, a cadeia global de produção de alimentos resulta em altos níveis de gases do efeito estufa e desmatamento para pecuária e agricultura, sendo responsável por 31% das emissões globais.

Esse crescimento populacional e da renda vem pressionando cada vez mais o sistema alimentar, também impactado pelas mudanças climáticas, com o aumento das temperaturas, alteração dos padrões de chuvas e maior frequência de eventos extremos (secas e enchentes).

Um dos efeitos é a dificuldade dos países de cumprirem os esforços para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Consistem em 17 metas interligadas, definidas pelas Nações Unidas, que buscam erradicar a pobreza, combater as desigualdades e a fome, proteger o meio ambiente e o clima, além de garantir justiça a todos até 2030.

Para os pesquisadores, o estudo fornece base científica para o desenvolvimento de sistemas de produção animal mais sustentáveis e resilientes, em alinhamento com os ODS.

Entre os maiores produtores de carnes do mundo estão Brasil, Estados Unidos e China. No caso brasileiro, por exemplo, estima-se que a produção de carnes bovina, suína e de aves atinja 31,57 milhões de toneladas em 2025, mantendo-se próxima ao recorde de 2024 (31,58 milhões de toneladas), segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

Em relação à exportação, o Brasil vendeu entre janeiro e julho 1,78 milhão de toneladas de carne bovina e deve fechar o ano com cerca de 5,2 milhões de toneladas exportadas de frango, mesmo com os impactos provocados pelo tarifaço dos EUA e a gripe aviária.

Na pesquisa, o grupo ressalta que para a avicultura é urgente e necessária uma intensificação do sistema de produção porque esses animais não suportarão temperaturas elevadas.

“A bovinocultura de leite e as aves, tanto de postura como de corte, já vão sofrer efeitos imediatos no ciclo produtivo. Isso é um sinal de alerta para a produção do futuro. Por isso, a importância do trabalho conjunto entre genética e ambiência. Buscamos analisar o que vai acontecer lá na frente para prevenir e alertar produtores, pesquisadores e formuladores de políticas públicas”, completa Silva à Agência FAPESP.

Limitação

No artigo, os cientistas ponderam que há dificuldades com as bases de dados dos países – às vezes por pequeno número amostral e diferentes metodologias de coleta das respostas adaptativas –, além dos custos das análises laboratoriais. Somente a temperatura retal e a frequência respiratória foram variáveis em comum nos 12 bancos de dados.

Uma segunda limitação foi o fato de não existir uma base de animais ruminantes e monogástricos (como bovinos, ovelhas e aves) em sistemas totalmente confinados, adotados em alguns países, especialmente China e Estados Unidos.

“Esse trabalho é a ponta de um iceberg. Levantamos os primeiros dados e agora é preciso agregar bancos de parceiros e ampliar as informações para diferentes regiões do mundo, permitindo comparar e estudar os reflexos em outros cenários. O estudo liderado pelo Robson é pioneiro na contextualização, mostrando que a parceria entre países e pesquisadores favorece conclusões que podem ser úteis a todos”, afirma Silva.

Silveira ressalta que um próximo passo é coletar dados e informações fenotípicas de aves e suínos de diferentes linhagens em todo o Brasil para montar um banco de dados a ser usado para prever como serão as respostas adaptativas e produtivas desses animais às mudanças climáticas. Esse é o foco de seu estágio pós-doutoral no Nupea, com apoio da FAPESP.

No artigo, o grupo sugere que outras pesquisas aprofundem o entendimento da relação entre respostas termorreguladoras e desempenho produtivo para fortalecer estratégias voltadas à segurança alimentar.

O artigo Physiological adaptability of livestock to climate change: A global model-based assessment for the 21st century pode ser lido em: www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0195925525002586.
 

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