Único exemplar conhecido do sapinho, que, apesar de bastante ressecado, permitiu a identificação como uma espécie nova para a ciência (foto: Taran Grant/IB-USP)
Coletado pela herpetóloga Doris Cochran em 1963, onde hoje é um bairro residencial de Curitiba (PR), exemplar ressecado do anfíbio está depositado no acervo do Museu Nacional de História Natural da Smithsonian Institution, nos Estados Unidos
Coletado pela herpetóloga Doris Cochran em 1963, onde hoje é um bairro residencial de Curitiba (PR), exemplar ressecado do anfíbio está depositado no acervo do Museu Nacional de História Natural da Smithsonian Institution, nos Estados Unidos
Único exemplar conhecido do sapinho, que, apesar de bastante ressecado, permitiu a identificação como uma espécie nova para a ciência (foto: Taran Grant/IB-USP)
André Julião | Agência FAPESP – Quem anda hoje pelo bairro Tarumã, em Curitiba, entre prédios, um autódromo e o maior shopping center da capital paranaense, pode ter dificuldade em imaginar riachos, campos abertos e áreas alagadas. Mas, nos anos 1960, a área abrigou uma biodiversidade desconhecida. Em um estudo apoiado pela FAPESP, pesquisadores descreveram uma espécie de rã-foguete que viveu naquela área e que, apesar de nova para a ciência, provavelmente está extinta na natureza.
No estudo publicado na revista Zootaxa, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Smithsonian Institution, nos Estados Unidos, descreveram a nova espécie, nomeada como Dryadobates erythropus, a partir de um único exemplar coletado pela herpetóloga norte-americana Doris M. Cochran (1898-1968) em 1963, durante visita ao Brasil com a entomóloga Doris H. Blake (1892-1978).
O único exemplar conhecido do sapinho, bastante ressecado, está depositado no acervo do Museu Nacional de História Natural da Smithsonian Institution (NMNH-SI), em Washington, nos Estados Unidos, onde Cochran trabalhou por quase 50 anos.
A nova espécie, cujo indivíduo tem cerca de 14 milímetros de comprimento, é considerada “provavelmente extinta”, pois não teve outros exemplares encontrados na natureza nem depositados em museus de história natural. Ela faz parte do gênero recentemente descrito Dryadobates, que tem pelo menos 13 espécies, sendo sete já descritas, quatro delas extintas entre os anos 1960 e 1980 (leia mais em: agencia.fapesp.br/55121).
“As espécies viventes desse gênero são de sapinhos diurnos, bastante abundantes, que seriam fáceis de encontrar na natureza. Dado que o hábitat da D. erythropus foi destruído e que nenhum outro espécime foi coletado em levantamentos extensivos, em diversas localidades de São Paulo e Paraná ao longo dos últimos 60 anos, é mais provável que esteja extinta”, explica Taran Grant, professor do Instituto de Biociências (IB) da USP e primeiro autor do estudo.
O pesquisador assina o trabalho com Paulo Durães Pereira Pinheiro, atualmente pesquisador no NMNH-SI, que teve bolsa de pós-doutorado da FAPESP até 2023.
Dryadobates vem de Dryades, uma ninfa da mitologia grega, nome que o naturalista von Martius deu à Mata Atlântica em sua obra Flora Brasiliensis. O sufixo “bates” quer dizer “aquele que anda”. Erythropus é uma referência a “pé vermelho”, como eram apelidados os trabalhadores rurais que trabalhavam descalços na terra avermelhada característica do norte do Paraná.
Outras três espécies do gênero já haviam sido nomeadas em referência ao Estado onde foram encontradas: D. alagoanus, D. carioca e D. capixaba, as últimas duas aparentemente extintas.
Dryadobates bokermanni, que vive no sul da Bahia, é uma das sete espécies descritas do mesmo gênero, que pode ter 13 no total (foto: Taran Grant/IB-USP)
Diário de campo
Para assegurar a localidade exata em que o sapinho foi coletado, Grant teve de recorrer a outros registros além do que estava escrito em uma etiqueta presa ao animal. A Smithsonian Institution, à qual o museu é vinculado, possui um grande arquivo dedicado aos seus pesquisadores.
No material referente a Cochran, Grant encontrou seu diário de viagem pelo Brasil. O documento se mostrou essencial para certificar a localidade do animal. “Por conta do que conhecíamos da distribuição desse grupo, quando vimos a referência a Curitiba pensamos que ela poderia ter se confundido com algum animal coletado no Rio de Janeiro, onde esteve antes”, diz Grant.
No entanto, as características do animal não condizem com os que Cochran descreve como tendo coletado em uma lagoa e suas margens no Rio de Janeiro. Em contraste, as anotações sobre Tarumã de 9 de janeiro de 1963 são bem claras ao contar que dois sapos foram capturados em um “grande campo cheio de formigueiros e moitas mastigadas por vacas”.
A localidade do sapinho descrito agora está cerca de 550 quilômetros ao sul da espécie mais próxima, D. olfersioides, de Angra dos Reis, também extinta. A grande distância sugere que houve outras populações do gênero entre essas duas localidades, fossem das espécies descritas ou de extintas que talvez nunca sejam conhecidas.
Museômica e DNA histórico
Entre as sete espécies de Dryadobates formalmente descritas até agora, três só se tornaram conhecidas graças ao uso do chamado DNA histórico (hDNA). Em alguns casos, a técnica pode recuperar material genético mesmo de animais conservados em museus há mais de 100 anos.
Como parte de seu projeto apoiado pela FAPESP, que possibilitou a instalação de um laboratório para esse tipo de análise na USP, Grant tentou extrair hDNA do sapinho coletado por Doris Cochran em 1963. Sem sucesso.
“O curador do museu onde o exemplar está depositado nos autorizou a retirar um pequeno pedaço de tecido para extração de DNA, mas não conseguimos encontrar material genético de sapo em quantidade suficiente, apenas contaminação de DNA humano e de bactérias”, conta.
Por conta do estado de conservação do exemplar, o pesquisador acredita que o animal morreu antes de ser fixado em álcool, ainda no saco de coleta. Essa hipótese é reforçada pela presença de areia aderida à pele do sapinho. Portanto, o DNA provavelmente começou a se degradar muito antes do que se fosse conservado em álcool, que preserva moléculas que podem ser identificadas depois.
As técnicas de museômica, como são chamadas, permitem recuperar trechos de DNA que tenham a partir de 20 nucleotídeos, que depois são combinados para montar sequências maiores. O DNA do sapinho ressecado de Cochran, porém, está tão degradado que não foi possível identificar trechos maiores do que 20 nucleotídeos, impossibilitando sua identificação molecular. “Quem sabe, com o avanço da tecnologia, essa identificação genética possa ser feita no futuro”, diz o pesquisador.
Mesmo sem os dados genéticos, os autores apontam características na morfologia que diferenciam o animal de seus parentes mais ao norte, permitindo classificá-lo como uma nova espécie.
Para Grant, além de ser mais um alerta para a necessidade de amostrar constantemente as áreas naturais e protegê-las, o trabalho é importante por relembrar as figuras históricas de Doris Cochran e Doris Blake, duas mulheres cientistas que viajaram o mundo e trouxeram grandes contribuições para seus campos de pesquisa. “Não fossem elas, não saberíamos que um dia tivemos essa espécie”, encerra Grant.
O artigo A recently extinct new species of Dryadobates (Anura: Aromobatidae) from South Brazil: species description and implications for the historical distribution and recent extinction history of the clade pode ser lido em: mapress.com/zt/article/view/zootaxa.5693.4.9.
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