Terceira conferência do ciclo FAPESP 60 Anos reuniu pesquisadores de referência no tema: Donatella della Porta, Sérgio Adorno e Michel Misse (foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Especialistas debatem violência do Estado, das milícias e de movimentos radicais
19 de agosto de 2021
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Terceira conferência do ciclo FAPESP 60 Anos reuniu pesquisadores de referência no tema: Donatella della Porta, Sérgio Adorno e Michel Misse

Especialistas debatem violência do Estado, das milícias e de movimentos radicais

Terceira conferência do ciclo FAPESP 60 Anos reuniu pesquisadores de referência no tema: Donatella della Porta, Sérgio Adorno e Michel Misse

19 de agosto de 2021
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Terceira conferência do ciclo FAPESP 60 Anos reuniu pesquisadores de referência no tema: Donatella della Porta, Sérgio Adorno e Michel Misse (foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

 

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Apesar de todo o progresso da ciência, da tecnologia, da agricultura, da medicina e da abundância de alimentos e artigos médicos, as pessoas continuam a morrer em decorrência da fome, da miséria, das doenças – que são consequências do descaso dos governos ou da ausência de políticas públicas. Mas também morrem pela violência praticada ou consentida, de alguma forma, pelo Estado. Com esta reflexão, o professor Marco Antonio Zago, presidente da FAPESP, abriu a terceira conferência do ciclo FAPESP 60 Anos, dedicada ao tema “Sociedades Violentas”.

“A violência é, em essência, praticada por aquele que detém a força em relação ao mais fraco. Nas sociedades modernas ocidentais, o Estado detém o monopólio do uso consentido da força, visando, com a sua aplicação, sempre o bem-estar maior da sociedade organizada. O pressuposto é o de que os cidadãos cedem parte da sua liberdade para que a sociedade se organize. No entanto, nós conhecemos bem a que grau o Estado pode violentar os indivíduos”, disse.

O tema da violência é extremamente vasto. Mas a conferência concentrou seu foco na “violência que gera letalidade; e, mais ainda, na violência disputada na vida social entre o Estado e grupos organizados da sociedade”, como ressaltou Ângela Alonso, coordenadora adjunta de Ciências Humanas e Sociais, Arquitetura, Economia e Administração da FAPESP e moderadora do evento.

Para debater o assunto, foram convidados três pesquisadores de referência na área: Donatella della Porta, Sérgio Adorno e Michel Misse.

Della Porta é professora do Departamento de Ciências Sociais e Políticas do European University Institute e diretora do Center on Social Movement Studies e do programa de doutorado em Ciência Política e Sociologia da Scuola Normale Superiore, em Florença, Itália.

Adorno é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e coordenador científico do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP.

Misse é professor titular de sociologia do Departamento de Sociologia e diretor do Núcleo de Estudos em Cidadania, Conflito e Violência Urbana na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E integrante do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Violência, Democracia e Segurança Cidadã, que recebe apoio da FAPESP.

Della Porta centrou a apresentação em seu livro Clandestine Political Violence (Cambridge University Press, 2013), desenvolvendo o subtema “Comparando o incomparável? Desafios metodológicos e potenciais eurísticos da comparação global na pesquisa sobre violência política”.

A obra parte da análise comparativa dos movimentos de esquerda radical na Itália e na Alemanha dos anos 1970. E, a essa base inicial, acrescenta outras expressões da violência: ideológica (radicalismo de direita italiano), étnica (separatismo basco) e religiosa (fundamentalismo afegão). Dado esse material empírico, o passo seguinte, como mostrou Della Porta em sua apresentação, foi “prover uma conceitualização aplicável às diferentes formas”. O que ela fez por meio de um modelo explicativo abrangente, considerando as condições ambientais (nível macro), as dinâmicas de grupo e comportamentos organizacionais (nível médio) e as motivações individuais (nível micro).

Trazendo o tema para o Brasil contemporâneo, Adorno afirmou que, na sociedade brasileira, a detenção do monopólio legítimo da violência pelo Estado jamais chegou a se concretizar inteiramente. Porque as polícias sempre foram instrumentos de poder das elites. E o monopólio da violência se traduz, não raro, na violência do Estado contra o cidadão, muito além do que seria socialmente aceitável. “O uso da força por parte da polícia é quase que um uso privado”, disse.

Também no âmbito global, observa-se hoje uma transição do público para o privado: cada vez mais, funções da polícia são transferidas para particulares. O que é levado ao extremo com a instauração de serviços de segurança privados.

Baseado em dados do estudo “Os padrões urbano-demográficos da capital paulista”, de que é um dos coautores, Adorno deu vários exemplos de como se modificou o padrão de violência ao longo das duas últimas décadas no município de São Paulo. No período, entre outras variáveis, houve uma expressiva queda na taxa de homicídios, enquanto cresceu o tráfico de drogas. “Quase 30% das prisões estão relacionadas atualmente com o tráfico de drogas, em operações flagrante ou como resultado de investigações. Boa parte da política de segurança está concentrada na chamada guerra às drogas”, afirmou.

Finalmente, contestando a ideia muito difundida de que a população quer ações policiais mais truculentas, o pesquisador apresentou dados de enquetes sérias que mostram que de 60% a 80% das pessoas entrevistadas são contra o uso de força letal pela polícia.

Na terceira e última apresentação do evento, Misse tratou de um subtema especialmente explosivo, que é o das milícias urbanas no Rio de Janeiro. “Tradicionalmente, sempre houve uma convivência do Estado com grupos privados, a serviço de fazendeiros, políticos ou interesses criminosos. A violência privada é criminalizada na lei, mas não na prática. E as negociações da polícia com esses grupos transformaram o uso da violência em mercadoria”, disse.

Houve, então, na opinião do pesquisador, uma acumulação social da violência. E as milícias são fruto disso. Constituída por policiais, ex-policiais, agentes do sistema prisional e civis, essas organizações começaram cobrando taxas para oferecer “proteção” aos moradores. Evoluíram, por meio da prática de várias atividades ilícitas, no mercado imobiliário, nos sistemas de transporte clandestinos, associando-se a facções do tráfico de drogas. E, agora, deram um passo além, associando-se também com políticos, donos de “currais eleitorais”.

“Esses grupos territorializaram o espaço da cidade. E utilizam as operações policiais legais em proveito próprio, para deslocar grupos rivais e assumir o controle de seus respectivos territórios”, afirmou.

A 3ª Conferência FAPESP 60 anos “Sociedades Violentas" pode ser assistida na íntegra em: www.youtube.com/watch?v=CVNPbgNlQNQ.
 

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