Aranha não venenosa, do gênero Uloborus, produz suco digestivo com proteínas até então conhecidas apenas em venenos (foto: Marcelo Gonzaga)
Pesquisadores do Instituto Butantan mostram que sistema digestório de espécie não peçonhenta produz proteínas normalmente identificadas na peçonha dos aracnídeos, sugerindo origem comum de moléculas. Em outra espécie com veneno, mas inofensiva para humanos, grupo encontrou potencial biotecnológico no líquido usado para digerir presas
Pesquisadores do Instituto Butantan mostram que sistema digestório de espécie não peçonhenta produz proteínas normalmente identificadas na peçonha dos aracnídeos, sugerindo origem comum de moléculas. Em outra espécie com veneno, mas inofensiva para humanos, grupo encontrou potencial biotecnológico no líquido usado para digerir presas
Aranha não venenosa, do gênero Uloborus, produz suco digestivo com proteínas até então conhecidas apenas em venenos (foto: Marcelo Gonzaga)
André Julião | Agência FAPESP – As aranhas do gênero Uloborus perderam o veneno há alguns milhões de anos. No entanto, possuem um suco digestivo tão poderoso que, quando o regurgitam para começar a digerir a presa imobilizada, protegem as próprias pernas. Sem esse cuidado, poderiam ficar sem as patas dianteiras durante a refeição.
Em um estudo publicado na revista Scientific Reports, pesquisadores do Instituto Butantan e da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) encontraram nesse suco digestivo proteínas também presentes no veneno de outras aranhas – estas ainda peçonhentas.
O resultado sugere que tanto enzimas digestórias quanto de veneno podem ter uma origem evolutiva comum.
“Como outras famílias de aranhas que também soltam esse líquido sobre as presas são peçonhentas, era atribuído ao veneno a capacidade de quebrar as moléculas em frações menores para facilitar a digestão. Porém, essa família [Uloboridae] perdeu as glândulas que produzem veneno há muito tempo. Fica claro, portanto, que essa digestão externa é uma função exclusiva das enzimas desse líquido digestivo”, conta Rodrigo Valladão, primeiro autor do artigo e doutorando no Laboratório de Bioquímica do Instituto Butantan.
O estudo integra o projeto “Enzimologia e fisiologia molecular em Arachnida”, apoiado pela FAPESP e coordenado por Adriana Rios Lopes no Butantan.
“Essas aranhas envolvem as presas em metros de teia e depois regurgitam sobre elas o fluido digestivo, que degrada tanto a teia como insetos e outros animais, às vezes maiores do que a própria aranha. Os tecidos das presas se tornam líquidos e mais fáceis de digerir”, explica Lopes, que orienta o doutorado de Valladão.
O estudo é a primeira caracterização já feita das moléculas envolvidas no processo digestivo e do conteúdo do intestino médio (onde se forma o suco) de uma aranha não venenosa.
O conteúdo do suco digestivo da Uloborus inclui enzimas como hidrolases, catalisadores que usam água para quebrar ligações químicas. Entre as hidrolases, foram detectadas peptidases, que quebram peptídeos; carboidrases, responsáveis por degradar carboidratos (açúcares), e lipases, que quebram gorduras (lipídios).
Além delas, 50 proteínas foram caracterizadas como enzimas, proteínas estruturais ou toxinas, muitas presentes tanto em espécies venenosas quanto naquelas sem veneno. Uma delas, a esfingomielinase D, por exemplo, até então só havia sido encontrada em venenos.
Potencial anticoagulante
Em outro estudo do grupo do Butantan, publicado na mesma revista, foram identificadas seis moléculas com potencial para inibir a atividade de serino-peptidases, enzimas importantes em diversos processos fisiológicos humanos. Uma das moléculas é de uma nova classe estrutural de inibidores.
A descoberta abre caminho, por exemplo, para a busca de agentes anticoagulantes que possam ser usados em fármacos e cosméticos.
Os inibidores descobertos fazem parte do fluido digestivo da aranha-gigante (Nephilingis cruentata), espécie inofensiva para humanos, mas que inocula veneno em insetos e também expele líquido que faz a digestão da presa fora do corpo.
foto: Adriana Rios Lopes
Em 2016, o grupo havia mostrado que era o suco regurgitado pelas aranhas-gigantes que fazia essa digestão. Até então, julgava-se que era principalmente o veneno que exercia essa função (leia mais em: revistapesquisa.fapesp.br/antes-da-primeira-mordida/).
“Essa molécula não apresenta familiaridade com outros inibidores clássicos de serino-peptidases descritos na literatura, apresentando um novo padrão estrutural. Por isso, tem potencial de exercer funções de forma diferente das que já são conhecidas pela indústria farmacêutica. Os próximos passos da pesquisa serão produzir o inibidor utilizando tecnologias de DNA recombinante e explorar possíveis aplicações, como os efeitos na coagulação sanguínea”, afirma Oscar Bento da Silva Neto, primeiro autor do estudo, iniciado ainda durante sua graduação com apoio de bolsa da FAPESP. Atualmente, Silva Neto faz doutorado no Laboratório de Bioquímica do Instituto Butantan sob orientação de Lopes.
Análises das sequências de aminoácidos desse inibidor indicam que as novas moléculas podem estar presentes no sistema digestório de outras aranhas. Sua função seria inativar a tripsina – uma serino-peptidase – contida nas presas, que poderia prejudicar as aranhas quando ingerida.
“Há vários processos da fisiologia humana que dependem de enzimas específicas, como as serino-peptidases, envolvidas na coagulação. Há muito se buscam novos anticoagulantes, importantes para cirurgias, por exemplo. Como essa é uma família nova de inibidores, possui potencial farmacológico”, destaca Lopes.
Outra potencial aplicação, diz a pesquisadora, seria em medicamentos ou cosméticos para doenças de pele, como alergias e dermatites atópicas, cada vez mais comuns e sem muitas opções terapêuticas. Novos estudos, porém, precisam ser feitos para verificar o real potencial das novas moléculas.
O artigo Digestive enzymes and sphingomyelinase D in spiders without venom (Uloboridae) pode ser acessado em: www.nature.com/articles/s41598-023-29828-x.
Já a publicação Spiders’ digestive system as a source of trypsin inhibitors: functional activity of a member of atracotoxin structural family está disponível em: www.nature.com/articles/s41598-023-29576-y.
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