Estudo analisa romance O cortiço, de Aluísio de Azevedo, para avaliar as mudanças no período de modernização que marcaram o fim do século 19 e tentar compreender as raízes da desigualdade social no país
Estudo analisa romance O cortiço, de Aluísio de Azevedo, para avaliar as mudanças no período de modernização que marcaram o fim do século 19 e tentar compreender as raízes da desigualdade social no país
Agência FAPESP – A análise de uma obra de ficção publicada em 1890 pode ajudar a compreender a profunda desigualdade social e os dilemas da realidade brasileira contemporânea? Foi exatamente esse o objetivo de um estudo realizado no Grupo de Estudos sobre o Brasil Moderno da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
A monografia A obra do tempo e o tempo da obra: sociologia de um romance e pensamento social brasileiro em ‘O cortiço’ de Aluísio de Azevedo, realizada pelo sociólogo Rodrigo Estramanho de Almeida, conclui que a desigualdade social tem raízes profundas na história pré-republicana, alastrando-se enquanto o país se modernizava sob o signo da falta de planejamento.
Ao investigar a relação entre literatura e sociedade – a partir de autores como Antonio Cândido e Roberto Schwartz –, Almeida identificou a importância de se estudar o período para entender o processo de modernização do país.
"Aluísio de Azevedo é o escritor ideal para estudar esses aspectos. Influenciado pelo romance experimental de Émile Zola, ele trabalhava em um registro muito próximo à análise sociológica", disse Almeida à Agência FAPESP.
Um novo Brasil surgia na segunda metade do século 19. O modelo escravagista se esgotava, o que atraía às cidades um vasto contingente de ex-escravos em situação de extrema pobreza. Levas de imigrantes chegavam ao país e um êxodo rural começava a ocorrer.
"O romance retrata essa multiplicidade de pessoas e de tipos sociais em um Rio de Janeiro que entrava na modernidade. Azevedo mostra o momento em que as desigualdades se afirmam, com o poder público utilizando a força contra as comunidades pobres", explica.
No estudo, iniciado em meados de 2005 e concluído no fim de 2006, com orientação da professora Rosemary Segurado, Almeida também analisou a trajetória de Azevedo. "É interessante observar como ele fez um retrato social, mas, paralelamente, precisou se dedicar a livros românticos para poder se manter como escritor", disse.
Literatura sociológica
Em sua análise, Almeida procurou identificar, entre os personagens, tipos ideais que permitissem um olhar sociológico do Rio de Janeiro imperial. "Normalmente, a crítica literária tem esse papel de extrair o que há de sociologicamente relevante em um romance. Mas a tensão entre literatura e sociedade é tratada por autores como George Lukács e Pierre Bourdieu em diferentes metodologias", disse.
A escolha da obra, de fato, facilitou a abordagem sociológica. "O naturalismo estabelece uma relação promíscua, por assim dizer, entre arte e ciência. Zola teve, inclusive, a preocupação de escrever um método para a criação de romances naturalistas", afirmou.
Partindo do princípio de que entender a história é fundamental para construir o presente, a análise do sociólogo procurou no romance de Azevedo as origens da degradação urbana das grandes metrópoles contemporâneas.
"As desigualdades têm raízes profundas na história. Depois de uma longa fase de colônia de exploração rural predatória, o campo começou a invadir a cidade, em uma confusão entre público e privado que deu base para o acirramento da desigualdade. A falta de planejamento permeou todo o processo", disse.
Os gestores públicos brasileiros, em 1890, estavam profundamente influenciados pelo positivismo e pelo higienismo. "Houve reformas urbanas e os cortiços foram eliminados por meio da violência policial, sem nenhum planejamento urbano, como o romance retrata muito bem. A crítica de Azevedo é violenta nesse ponto. Essa é a origem das primeiras favelas", indicou.
O romance de Azevedo revela também, de acordo com Almeida, a formação de um estigma social em relação à população pobre. "As classes desfavorecidas eram estigmatizadas como portadoras da peste e da febre amarela. Hoje, os favelados são vistos como os portadores da violência", disse. A conseqüência é a perenização do problema: se há estigma social, as políticas públicas já nascem com preconceitos e nada muda.
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