 
             
                            O caramujo Simpulopsis gomesae foi descrito em 2006, a partir de espécimes coletados em São Francisco de Paula, no Rio Grande do Sul (foto: Suzete Gomes)
Estudo analisou as descobertas dos últimos 20 anos e apontou que quase metade dos caracóis, caramujos e lesmas foi descrita por pesquisadores que não atuavam no país de seu hábitat
Estudo analisou as descobertas dos últimos 20 anos e apontou que quase metade dos caracóis, caramujos e lesmas foi descrita por pesquisadores que não atuavam no país de seu hábitat
 
                                O caramujo Simpulopsis gomesae foi descrito em 2006, a partir de espécimes coletados em São Francisco de Paula, no Rio Grande do Sul (foto: Suzete Gomes)
André Julião | Agência FAPESP – Entre os séculos 16 e 19, sendo o colonialismo a ordem vigente, não é de se admirar que as expedições científicas, os depósitos de espécimes em museus de história natural e as descrições de espécies das colônias europeias na África, Ásia e América Latina fossem realizados apenas por naturalistas do Velho Mundo.
No entanto, um estudo, publicado na revista Proceedings of the Royal Society B por pesquisadores brasileiros apoiados pela FAPESP, mostra que essa prática segue acontecendo, ainda que as antigas colônias sejam hoje países independentes, muitos com estrutura e pessoal qualificado para a tarefa de compreender a própria biodiversidade.
Tomando como modelo mais de 3.200 descrições de espécies de moluscos terrestres realizadas no mundo todo entre 2003 e 2022, pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí (IFPI) mostraram que, em quase metade das descrições, cientistas locais não figuraram como autores das pesquisas realizadas. Essa exclusão se concentrou em espécies do chamado Sul Global.
A prática neocolonial é conhecida como “ciência de helicóptero” ou “ciência de paraquedas”. Nela, os estrangeiros viajam até o local da pesquisa, coletam o que precisam e voltam para concluir o trabalho em seu país de origem, sem envolver pesquisadores locais ou dar os devidos créditos aos moradores que os ajudaram.
Não à toa, ao analisar por critérios objetivos a abrangência dos trabalhos científicos publicados, os autores observaram que as descrições são mais robustas quando há a participação de pelo menos um pesquisador do país em que a espécie descrita ocorre.
“A ciência ‘de helicóptero’ ou de ‘paraquedas’ é uma prática que prejudica não apenas os pesquisadores locais, como a ciência de forma geral. Trabalhos menos robustos podem ter seus resultados invalidados no futuro. Isso pode atrasar esforços de conservação, que demandam informações precisas e estáveis”, afirma Mario Moura, coordenador do estudo e atualmente professor da UFPB.
Parte do trabalho foi realizada durante período de Moura como Jovem Pesquisador no Instituto de Biologia da Unicamp, em projeto apoiado pela FAPESP.
Os outros autores do trabalho são Evandro Abreu, da UFPB, e Edson Lourenço da Silva, do IFPI.
Ciência neocolonial
Para chegar aos resultados, os pesquisadores montaram um banco de dados com 3.272 descrições de moluscos terrestres (caracóis, caramujos e lesmas) publicadas no formato de artigo científico, capítulo de livros ou livros entre 2003 e 2022. Destas, 2.216 (68%) foram descritas em 78 países do chamado Sul Global, enquanto 1.056 espécies (32%) foram encontradas em 26 países do Norte Global.
As definições de Sul e Norte Global seguem uma adaptação da nomenclatura da Organização das Nações Unidas (ONU), dada em termos geopolíticos e destoando em parte da definição puramente geográfica.
Dessa forma, países do hemisfério Sul como Austrália e Nova Zelândia são considerados parte do Norte Global, enquanto nações do hemisfério Norte como México, China, Índia e países do norte da África e Sudeste Asiático são tradicionalmente considerados como membros do Sul Global.

Localidades onde as espécies de moluscos terrestres foram descobertas entre 2003 e 2022. As regiões geopolíticas em tons esverdeados contêm países tipicamente associados ao Sul Global, enquanto as de tons marrons indicam os do Norte Global (imagem: Mario Moura/UFPB)
Enquanto a maior parte das espécies foi descrita no Sul Global, pesquisadores baseados nessa região geopolítica contribuíram com apenas 33,3% das descrições. O número contrasta com o de pesquisadores afiliados a instituições de pesquisa do Norte Global, que contribuíram com 79,3% de todas as descrições.
Ao comparar descrições entre as duas macrorregiões geopolíticas, 51,4% das realizadas com espécies do Sul Global excluíram pesquisadores dessa parte do mundo, enquanto apenas 0,6% das espécies descritas no Norte Global não contaram com a participação de cientistas locais no trabalho.
Publicações que contavam apenas com pesquisadores do local onde a espécie ocorre foram 40,4% do total, enquanto as mistas, que envolveram tanto cientistas locais como estrangeiros, foram 14%. As 1.493 espécies restantes do banco de dados (45,6%) foram resultado de “ciência de paraquedas”, descritas apenas por pesquisadores de fora do país de origem da espécie. Nessa modalidade, 88,6% das descrições ocorreram no Sul Global.
“Uma das expectativas ao incluir pesquisadores do Norte Global em pesquisas sobre espécies do Sul Global seria a facilitação do acesso tanto a coleções em museus europeus e norte-americanos como também a tecnologias que têm alto custo para nós, como biologia molecular e análise de anatomia interna. Em tese, essas ferramentas tornariam o estudo mais robusto e abrangente. No entanto, o que nossas análises mostram é que isso não ocorre. Na verdade, a inclusão de pesquisadores locais gerou trabalhos mais robustos”, conta Moura.
O pesquisador lembra que as práticas neocoloniais e a influência geopolítica observadas nas descrições de moluscos terrestres também podem ser observadas em outros grupos animais, conforme trabalhos em andamento da sua equipe.
Segundo os autores, para avançar na ciência da biodiversidade, estratégias de inclusão devem levar em conta não apenas a paridade de autoria, mas também o acesso a ferramentas analíticas, recursos para garantir estudos de qualidade, valorizando o conhecimento local, e o compartilhamento de dados em longo prazo. As instituições, por sua vez, devem priorizar parcerias sustentáveis, transparência no financiamento e transferência de tecnologia.
“Os benefícios de uma ciência plural e inclusiva podem ir além de colaborações equitativas, contribuindo para preencher mais rápido as lacunas de conhecimento sobre a biodiversidade global, especialmente em regiões tropicais”, concluem.
O artigo Geopolitical impacts on the description of new terrestrial mollusc species pode ser lido em: royalsocietypublishing.org/doi/10.1098/rspb.2025.1428.
 
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