Segundo Henry Shue "cultura da tortura" torna difícil de erradicar e caracteriza uma ameaça à democracia (foto: F. Castro)
Na abertura do Seminário Internacional sobre a Tortura, na USP, o norte-americano Henry Shue afirma que, uma vez adotada numa sociedade, prática gera "cultura da tortura", que se torna difícil de erradicar e caracteriza uma ameaça à democracia
Na abertura do Seminário Internacional sobre a Tortura, na USP, o norte-americano Henry Shue afirma que, uma vez adotada numa sociedade, prática gera "cultura da tortura", que se torna difícil de erradicar e caracteriza uma ameaça à democracia
Segundo Henry Shue "cultura da tortura" torna difícil de erradicar e caracteriza uma ameaça à democracia (foto: F. Castro)
Agência FAPESP – "Desde os atentados de setembro de 2001, os Estados Unidos são uma nação mais fraca. Não pela ameaça terrorista, mas pelo retrocesso representado pela tolerância à tortura." Com essa declaração, o professor emérito de Relações Internacionais da Universidade de Oxford, Henry Shue, abriu, na noite desta segunda-feira (25/2), o Seminário Internacional sobre a Tortura.
O seminário, que prossegue até quarta-feira (27/2) no auditório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), é realizado pelo Centro de Estudos da Violência da USP, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, também conhecido como Núcleo de Estudos da Violência (NEV).
Para Shue, a tortura, que caracteriza efetivamente uma ameaça à democracia, sobrevive graças a determinados mitos. Um deles é que a prática da tortura seria uma medida excepcional, adotada em tempos de emergência.
"Mas se é temporário, quando foi seu início? Qual é a emergência? Os fascistas, os comunistas, os traficantes de drogas, o terrorismo? A justificativa é a emergência representada pelos inimigos? Mas sempre haverá novos inimigos e a emergência sempre persistirá", questionou.
Outro mito apontado por Shue é o de que a tortura seria capaz de trazer a ordem ao intimidar o crime. "A tortura parece um método simples, rápido, que não requer treinamento. Mas não é o tipo de empreendimento que pode ser revertido naturalmente", disse. Segundo ele, uma vez adotada por uma sociedade, tal prática gera uma cultura de tortura.
"Freqüentente as pessoas acham que a tortura é uma ação de indivíduos isolados, mas é realmente uma prática social que tem regras. As pessoas passam à frente tradições e idéias que aprendem. A tortura não é feita apenas por um grupo de indivíduos isolado, mas por uma sociedade transnacional. As agências de inteligência dialogam e nós vemos surgir uma espécie de tortura global", disse Shue à Agência FAPESP.
Para o professor, que trabalha com o tema desde 1978, é muito improvável que sociedades tolerantes à tortura simplesmente abandonem a prática. "Por conta disso, é preciso mudar a estrutura de incentivo, oferecendo recompensas e punições. É um longo projeto e é mais fácil conseguir retrocessos que avanços", afirmou.
O norte-americano cita a educação e o debate internacional entre especialistas como pontos fudamentais para erradicar a tortura. "A tortura parece necessária para alguns. Precisaríamos de um tipo de educação para os direitos humanos. E precisamos de discussão. Nos Estados Unidos, até o governo de George W. Bush, éramos bastante arrogantes a esse respeito, achando que a tortura não existia no país. Mas ela já era usada quando Jimmy Carter criticava a tortura no Brasil, Argentina e Chile. Ou seja, temos um longo caminho de estudos pela frente", afirmou.
Assunto pouco estudado
Para o sociólogo Sérgio Adorno, coordenador do NEV, a discussão é importante porque o tema ainda é pouco estudado no Brasil. "Entre estudiosos que se ocuparam da questão da violência durante os regimes ditatoriais, há uma reflexão mais elaborada a respeito do papel da tortura nos interrogatórios. Mas, de modo geral, é um tema muito mais tratado sob o ponto de vista da denúncia que de uma reflexão densa sobre sua funcionalidade", disse Adorno à Agência FAPESP.
No seminário, disse o sociólogo, o NEV optou pela intensa contribuição internacional. "Fizemos um levantamento da literatura especializada e verificamos quem eram os pesquisadores que tinham uma contribuição para tornar a reflexão brasileira mais densa nesse tema, que é delicado, que causa desconforto, mas que precisa de discussão. É impossível falar em democracia se não se falar em respeito à legalidade e às convenções internacionais", destacou.
Entre os participantes da mesa de abertura do evento, o presidente da FAPESP, Celso Lafer, destacou a pertinência do tema no ano em que se comemoram 20 anos da Constituição Federal – que garantiu pela primeira vez instrumentos legais para o combate à tortura – e 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
"Graças à Declaração Universal, que traçou os rumos do direito internacional, esses temas terão um debate global. É um tema que está na ordem do dia", disse Lafer. Citando o italiano Norberto Bobbio, Lafer lembrou que os direitos humanos representam a passagem do dever do súdito ao direito do cidadão.
"O desdobramento dessa afirmação é a idéia de que o ser humano, segundo Immanuel Kant, é um fim e não um meio. E não pode ser instrumentalizado, inclusive da perspectiva da atuação da tortura para ação do Estado", disse. A civilidade, segundo Lafer, é medida pela negação e pela crítica à tortura. "Hannah Arendt disse que a violência, que hoje se multiplica, destrói o poder e nunca pode criar poder. Portanto, para lidar com os problemas da nossa sociedade e seus desafios é preciso superar a violência."
Também presente à mesa de abertura, o secretário de Justiça de São Paulo, Luiz Antônio Guimarães Marrey, concordou que se trata de um momento oportuno para reflexão. "A Constituição de 1988 trouxe a proibição da tortura e sua classificação como crime inafiançável, evidenciando que ela não pode jamais ser uma política de Estado", afirmou.
No entanto, resquícios obscurantistas permitem que a prática sobreviva, segundo Marrey. "A tortura ainda é vista por muitos como um 'mal necessário'. Vemos, entre a população em geral, um alto índice de desinformação e uma preocupante disponibilidade para abrir mão das garantias civis e do estado de direito. Sair à luz à vista de todos é a única forma de erradicar esse mal", afirmou.
"Por mais que tenhamos nos afastado das cavernas com os direitos humanos, fomos incapazes de superar a tortura", disse o presidente da Comissão Municipal de Direitos Humanos, José Gregori. Ele lembrou que, graças ao esforço da sociedade civil, por meio das comissões de direitos humanos, o Brasil conseguiu banir a tortura política.
"Depois disso estabelecemos uma figura jurídica que pune a tortura, o que não existia até a década de 1990. O Brasil está hoje equipado do ponto de vista legal. Mas se é improvável a tortura política, ainda temos que conviver com a tortura policial. Mais do que leis, precisamos agora investir na formação da sociedade brasileira, para que a tortura seja repudiada."
Mais informações: www.nevusp.org/seminariotortura
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