Foto: Marion Medical Mission

Como salvar 6 milhões de crianças por ano
03 de julho de 2003

Um grupo internacional de especialistas em saúde, coordenados pelo brasileiro Cesar Victora, chama a atenção das autoridades e da sociedade para o problema da mortalidade infantil e surpreende ao afirmar que dois terços das mortes de crianças com menos de cinco anos em todo o mundo poderiam ser evitadas com a adoção de medidas simples

Como salvar 6 milhões de crianças por ano

Um grupo internacional de especialistas em saúde, coordenados pelo brasileiro Cesar Victora, chama a atenção das autoridades e da sociedade para o problema da mortalidade infantil e surpreende ao afirmar que dois terços das mortes de crianças com menos de cinco anos em todo o mundo poderiam ser evitadas com a adoção de medidas simples

03 de julho de 2003

Foto: Marion Medical Mission

 

Por Heitor Shimizu


Mais de dez milhões de crianças com menos de cinco anos de idade morrem anualmente em todo o mundo, a maioria de causas como diarréia, pneumonia, malária ou problemas neonatais. De acordo com um grupo de especialistas da área de saúde de diversos países, dois terços das mortes poderiam ser evitadas com a adoção de medidas preventivas simples.

O grupo independente de pesquisadores, coordenado pelo brasileiro Cesar Victora, do Centro de Pesquisas Epidemiológicas da Universidade Federal de Pelotas, e pela americana Jennifer Bryce, da Organização Mundial de Saúde (OMS), produziu uma série de cinco artigos sobre mortalidade infantil para a revista médica The Lancet, o primeiro dos quais foi publicado na edição de 28/6.

A idéia do trabalho surgiu em reunião realizada em fevereiro na cidade de Bellagio, na Itália, quando especialistas de diversos países decidiram trabalhar em conjunto, com o objetivo de alertar governos, instituições e a sociedade para a gravidade do problema.

"Havia uma falsa impressão geral de que a mortalidade infantil estivesse diminuindo. Por isso, decidimos agir para mostrar, com o resultado de nossas pesquisas, que, embora isso estivesse acontecendo em alguns países, o ritmo de diminuição na mortalidade está longe de ser o ideal e algumas regiões não têm apresentado nenhuma queda", disse Victora em entrevista à Agência FAPESP.

Para o pesquisador, o cenário é ainda mais dramático por ter soluções existentes e simples. "Dois terços das mortes podem ser evitadas com a adoção de medidas básicas, como o uso do soro reidratante oral, a promoção do aleitamento materno, a adoção de mosquiteiros tratados com inseticidas, o emprego de antibióticos e vacinação", disse Victora.

Os principais motivos da mortalidade infantil variam de país a país. No Brasil, por exemplo, o principal são os problemas neonatais, responsáveis por mais da metade dos óbitos. Desnutrição não é um problema tão grave por aqui como em outros países, como Etiópia ou Somália.

Apesar da campanha do governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva em erradicar a fome no país, Victora acredita que o combate à fome não terá impacto importante sobre a mortalidade infantil. "O programa Fome Zero não vai salvar muitas crianças. O ponto principal aqui não é a desnutrição, mas são os problemas neonatais. São crianças que nem chegam a ficar desnutridas, pois morrem antes", disse.

Números alarmantes

O primeiro artigo da série, assinado por Jennifer Bryce (OMS), Robert Black (da Escola de Saúde Pública Bloomberg da Universidade John Hopkins) e Saul Morris (do Departamento de Epidemiologia da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres), traz os dados levantados pelo grupo.

Noventa por cento das mortes de crianças com menos de 5 anos ocorre em 42 países, sendo que 50% estão concentradas em seis: Índia, Nigéria, China, Paquistão, Congo e Etiópia. O Brasil está em 17° lugar, com estimadas 127 mil mortes infantis por ano. Em termos proporcionais, de taxas de mortalidade, o país está na 92ª posição, segundo o estudo, que calculou em 10,8 milhões o número aproximado de mortes de crianças em 2000. Do total, 3,9 milhões aconteceram antes dos 28 dias de vida da criança, no período neonatal.

Falta de condições básicas de higiene e de água tratada responderam por 88% dos casos de diarréia e por cerca de 1,5 milhão de falecimentos em 2000. Embora a maior incidência de mortalidade infantil esteja em áreas rurais, os pesquisadores identificaram altas taxas também em áreas urbanas. Como exemplo, citam as favelas de Nairóbi, no Quênia, que apresentam índices maiores do que as áreas rurais do mesmo país.

O segundo artigo traz as medidas básicas que ajudariam a reduzir drasticamente o número de óbitos de crianças e o terceiro discute as mudanças necessárias na infra-estrutura do sistema de saúde dos países em desenvolvimento que são necessárias para enfrentar o problema.

Além de coordenar o grupo de pesquisadores, Victora escreveu o quarto artigo da série, que será publicado na edição de 19/7 da The Lancet, onde explica que estratégias para reduzir a incidência da mortalidade infantil somente serão efetivas se as desigualdades no acesso às medidas preventivas forem reduzidas.

A realidade, segundo o pesquisador, é que as crianças que mais precisam de assistência são justamente as mais afastadas do atendimento dos sistemas de saúde em todo o mundo. "O acesso aos serviços de saúde é um problema fundamental que precisa ser enfrentado", disse Victora.

Mobilização geral

No quinto artigo da série, a ser publicado em 26/7, os pesquisadores apresentam alternativas de combate à mortalidade infantil, divididas em quatro pontos principais: liderança; sistemas de saúde; aumento de recursos; e a mobilização da sociedade.

Sobre o primeiro, os especialistas alertam para a falta de liderança global para o problema. Segundo eles, não há uma instituição que esteja à frente, em busca de soluções, que possa influenciar governos ou direcionar investimentos na área de saúde.

"Na maioria dos países em desenvolvimento, a principal parte das verbas para saúde tem sido destinada ao combate a problemas como tuberculose, malária ou Aids. Esses não recebem mais verbas por serem mais graves, mas por terem lobbies muito maiores do que o da mortalidade infantil", diz Victora. "Embora seja importante combater também essas doenças, a mortalidade infantil tem sido deixada em sequndo plano. Mas, na realidade, há duas vezes mais mortes anuais entre crianças do que todas as mortes por Aids, tuberculose e malária somadas.

A segunda prioridade, segundo os autores dos artigos, deve ser o estabelecimento de sistemas de saúde pública que sejam capazes de definir necessidades, gerar recursos, administrar programas e pessoas, oferecer serviços eficientes e trabalhar com dados colhidos como base para ampliar o impacto de seus esforços.

Para ressaltar o terceito ponto, os pesquisadores apresentam valores necessários para enfrentar a questão. Seriam necessários, por exemplo, anualmente: US$ 1 bilhão para programas de vacinação; US$ 4 bilhões para o tratamento de doenças infantis; US$ 2,5 bilhões para a prevenção da malária. Para quem acha muito, apresentam outros dados comparativos e igualmente alarmantes, como os gastos em comida para animais domésticos apenas na América do Norte e Europa: US$ 17 bilhões por ano.

O aumento da conscientização da sociedade é vista como o quarto ponto fundamental. Os autores dos artigos lembram a década de 80, quando a campanha Live Aid, liderada pelo cantor inglês Bob Geldof, mobilizou milhares de pessoas ao levantar fundos para combater a fome na África.

Segundo os pesquisadores, as ações necessárias são simples e claras. "Não pode haver mais desculpas para deixarmos as crianças morrerem", disse Jennifer Bryce. "Reduzir a mortalidade infantil é uma oportunidade que não pode ser outra coisa senão bem-sucedida. Precisamos de lideranças fortes e coordenadas, da parte de governos, da Organização das Nações Unidas, de agências de desenvolvimento, de cientistas e da sociedade. Esses líderes devem ser corajosos o suficiente para centrar seus esforços em crianças e suas mães, em vez de em doenças particulares. Devem ser bravos o suficientes para medir o progresso em termos de vidas salvas, e não em termos de serviços realizados ou de dinheiro gasto."


  Republicar
 

Republicar

A Agência FAPESP licencia notícias via Creative Commons (CC-BY-NC-ND) para que possam ser republicadas gratuitamente e de forma simples por outros veículos digitais ou impressos. A Agência FAPESP deve ser creditada como a fonte do conteúdo que está sendo republicado e o nome do repórter (quando houver) deve ser atribuído. O uso do botão HMTL abaixo permite o atendimento a essas normas, detalhadas na Política de Republicação Digital FAPESP.