"É sábio aceitar que uma porção do financiamento não obedeça à hierarquia de relevância pública e seja investida de modo autônomo, com o objetivo de preparar a sociedade para problemas ainda desconhecidos" (foto: Piu Dip/Agência FAPESP)
Para Peter Strohschneider, presidente da presidente da German Research Foundation, as agências de fomento precisam criar um sistema internacional de pesquisa livre, aberto, produtivo e repleto de impacto
Para Peter Strohschneider, presidente da presidente da German Research Foundation, as agências de fomento precisam criar um sistema internacional de pesquisa livre, aberto, produtivo e repleto de impacto
"É sábio aceitar que uma porção do financiamento não obedeça à hierarquia de relevância pública e seja investida de modo autônomo, com o objetivo de preparar a sociedade para problemas ainda desconhecidos" (foto: Piu Dip/Agência FAPESP)
Karina Toledo | Agência FAPESP – Favorecer um sistema internacional de pesquisa livre, aberto, produtivo e repleto de impacto em um contexto político desafiador. Na avaliação de Peter Strohschneider, presidente da German Research Foundation (DFG), esse é o desafio a ser enfrentado nos próximos anos pelos membros do Global Research Council (GRC) – organização que reúne representantes das principais agências de fomento à ciência e tecnologia do mundo.
Strohschneider veio a São Paulo para participar, de 1º a 3 de maio, da 8ª Reunião Anual do GRC. Organizado pela DFG, pelo Consejo Nacional de Investigaciones Científicas e Técnicas (Conicet), da Argentina, e pela FAPESP, o evento reúne lideranças de agências de fomento de todo o mundo pela primeira vez em um país sul-americano.
Ao final do encontro, será anunciada uma diretriz, na forma de uma declaração de princípios, com o objetivo de orientar os participantes do GRC sobre como lidar com a expectativa de organismos financiadores e governos de que o apoio às pesquisas científicas promova, prioritariamente, soluções para desafios econômicos e sociais em todo o mundo.
A DFG é a principal agência de fomento à pesquisa básica da Alemanha. A entidade mantém acordos de cooperação (http://www.fapesp.br/2655) com a FAPESP desde 2006, com o objetivo de apoiar projetos colaborativos conduzidos por cientistas, estudantes ou grupos de pesquisa do Brasil e da Alemanha; atividades de intercâmbio que ajudem a preparar bases para a elaboração de projetos de pesquisa cooperativos; e a mobilidade de jovens cientistas.
No dia 30 de abril, Strohschneider reuniu-se com o presidente da FAPESP, Marco Antonio Zago, e com o diretor científico da Fundação, Carlos Henrique de Brito Cruz, com o objetivo de fortalecer ainda mais a parceria entre as duas agências e discutir formas de aumentar a visibilidade das oportunidades de financiamento oferecidas em conjunto.
Na ocasião, o presidente da DFG concedeu uma entrevista à Agência FAPESP, na qual defendeu a importância de financiar ciência básica. “As prioridades políticas são voláteis e mudam com o tempo. A sociedade age de modo sábio quando se prepara não apenas para a hierarquia de relevâncias do momento como também para os problemas não antecipados e essa é a função da pesquisa básica”, disse.
Na avaliação de Strohschneider, nos próximos anos, o GRC deverá contribuir para fortalecer a colaboração científica internacional “em uma era na qual o contexto político tende a se tornar mais complicado”.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
Agência FAPESP – Como está estruturado o financiamento à pesquisa científica na Alemanha?
Peter Strohschneider – Há um consenso de que a Alemanha deve investir ao menos 3,5% de seu Produto Interno Bruto (PIB) em pesquisa – algo em torno de € 8 bilhões ao ano. Dois terços desse valor correspondem à pesquisa feita em empresas privadas. Um terço vem de financiamento público, destinado a projetos conduzidos nas universidades e institutos de pesquisa, como aqueles vinculados a The Max Planck Society ou a The Leibniz Association, entre outros. A DFG é a principal instituição voltada ao third-party funding [financiamento adicional ao já destinado pelo governo às universidades e institutos de pesquisa com o objetivo de apoiar projetos específicos]. O orçamento da DFG é de € 3 bilhões ao ano, oriundo basicamente de impostos. É dinheiro público repassado pelo governo federal e também pelos 16 estados. Uma parcela muito pequena de nossa receita é dinheiro privado, cerca de € 1 milhão. Os recursos são alocados mediante solicitações apresentadas por pesquisadores ou grupos de pesquisa e o processo de decisão é quase exclusivamente focado na qualidade científica ou acadêmica da proposta. Raramente usamos mecanismos como chamada de propostas ou programas de pesquisa com tema predefinido. Qualquer pesquisador de universidade ou instituto de pesquisa da Alemanha pode solicitar financiamento a qualquer momento, em qualquer tópico de interesse e para projetos de qualquer tamanho. Temos linhas de fomento que variam de € 5 mil, para a organização de um simpósio, por exemplo, até € 40 milhões, para um projeto de 12 anos.
Agência FAPESP – A pesquisa financiada pela DFG é totalmente organizada de baixo para cima (bottom up), ou seja, direcionada pelas ideias dos pesquisadores?
Strohschneider – A DFG é voltada exclusivamente para financiar pesquisa bottom up. Recebemos as solicitações e tentamos flexibilizar nossos mecanismos de financiamento para atender da melhor forma possível as necessidades do pesquisador ou do grupo de pesquisa, considerando que os métodos variam de acordo com o campo de conhecimento. Filósofos trabalham de forma diferente dos físicos de partículas. Estudos clínicos em medicina são diferentes das pesquisas sociológicas quantitativas. Cobrimos todo o espectro do conhecimento, não apenas ciência e engenharia, como também ciências sociais, estudos clínicos e humanidades em geral.
Agência FAPESP – Na Alemanha, no tocante ao financiamento público, existe pressão para que sejam selecionadas pesquisas com impacto social ou econômico mais evidente ou que atendam prioridades do governo?
Strohschneider – Para esse fim temos um sistema complementar ao da DFG, que é o financiamento feito pelo Ministério Federal da Educação e Pesquisa da Alemanha. São dois sistemas complementares. Claro que eventualmente pode surgir a questão “para que serve este projeto?”. Mas não estamos sob forte pressão para mostrar impacto social ou relevância econômica do que financiamos. Poderíamos fazer isso, pois quase 40% do nosso financiamento vai para pesquisa em biomedicina. Também investimos consideravelmente em engenharia mecânica, elétrica, ciência da computação, inteligência artificial e muitas outras áreas. Tentamos assegurar que as taxas de sucesso [propostas aprovadas] nos diferentes campos do conhecimento e nos diferentes esquemas de financiamento sejam equivalentes, com pequenas exceções. Queremos assegurar que as chances de uma mulher na área de literatura ter uma proposta aprovada sejam as mesmas de um diretor clínico na área de oncologia ou de um engenheiro que está desenvolvendo um novo produto. De modo geral, temos sido bem-sucedidos nesse aspecto.
Agência FAPESP – Quando o orçamento destinado a financiar ciência e tecnologia está encolhendo, como é o caso brasileiro, o critério de seleção de projetos deve mudar?
Strohschneider – Meu argumento independe do tamanho do orçamento. Seria válido também caso nosso orçamento fosse de € 1 bilhão em vez de € 3 bilhões. O ponto principal é que há a necessidade de buscar um sistema de tomada de decisão equilibrado. É totalmente legítimo que a sociedade espere que a pesquisa financiada com dinheiro público solucione problemas considerados relevantes. Para isso servem as pesquisas orientadas por programas [com tema predefinido]. Ao mesmo tempo é sábio aceitar que uma porção do financiamento não obedeça à hierarquia de relevância pública e seja investida de modo autônomo, com o objetivo de preparar a sociedade para problemas ainda desconhecidos. Além disso, existem os problemas sociais, que estão à parte do discurso político. Por exemplo: nenhum de nós poderia imaginar, 20 anos atrás, que questões de fundo religioso se tornariam tão importantes para as sociedades atuais, para os conflitos globais, para a economia. E hoje nos falta conhecimento sobre a sociologia da religião. E isso vale tanto para entender a situação do Brasil, de tradição católica, como para sociedades islâmicas fundamentalistas, para comunidades islâmicas que desafiam o sistema de segurança global, como para Israel e seus vizinhos. As prioridades políticas são voláteis e mudam com o tempo. A sociedade age de modo sábio quando se prepara não apenas para a hierarquia de relevâncias do momento como também para os problemas não antecipados e essa é a função da pesquisa básica. Pesquisa autônoma, não condicionada a um tema predefinido. A DFG é uma agência para essa modalidade, dentro de um sistema mais amplo de financiamento à pesquisa.
Agência FAPESP – Qual foi o objetivo do encontro realizado na FAPESP?
Strohschneider – Intensificar e reafirmar o bom relacionamento que existe há muitos anos entre a DFG e a FAPESP. Queremos pensar em como desenvolver ainda mais essa parceria. Discutimos estratégias para tornar as oportunidades de financiamento que podemos oferecer em conjunto mais visíveis aos pesquisadores. É preciso pensar meios de comunicar e de reunir pessoas que possam ampliar as colaborações bilaterais no futuro.
Agência FAPESP – O que podemos esperar do evento que reunirá as principais agências de fomento à pesquisa do mundo em São Paulo?
Strohschneider – Espero que o documento que vamos endossar, na forma de uma declaração de princípios, auxilie os participantes do GRC a desenvolver ainda melhor suas atividades de fomento à pesquisa. Espero também que, como nos anos anteriores, a reunião plenária seja uma plataforma de entendimento entre os líderes das agências financiadoras, uma oportunidade de conhecer pessoas e construir redes de relacionamento. Contribuindo assim para fortalecer a colaboração científica internacional em uma era na qual o contexto político tende a se tornar mais complicado.
Agência FAPESP – Por quê?
Strohschneider – Pela politização da pesquisa. A pesquisa é tão importante que pode se tornar um instrumento de políticas imperialistas e hegemonistas, de novas formas de poder autocráticas, nacionalistas e populistas, em uma situação em que a democracia liberal enfrenta uma crise estrutural. Eu diria em uma era política em que as influências hegemônicas estão sendo remodeladas e o mundo deixa de ser monocêntrico – estou me referindo aos Estados Unidos e à China. Em uma fase em que a liberdade de investigação está sob severa pressão e cresce o ressentimento em relação a temas como clima e mudanças globais. Esse contexto torna o papel do GRC ainda mais importante. Minha expectativa é que a reunião que será feita em São Paulo contribua para o estabelecimento de uma rede de financiadores capaz de contribuir para um sistema internacional de pesquisa livre, aberto, produtivo e repleto de impacto.
Mais informações sobre a 8ª Reunião Anual do Global Research Council: www.fapesp.br/eventos/grc.
A Agência FAPESP licencia notícias via Creative Commons (CC-BY-NC-ND) para que possam ser republicadas gratuitamente e de forma simples por outros veículos digitais ou impressos. A Agência FAPESP deve ser creditada como a fonte do conteúdo que está sendo republicado e o nome do repórter (quando houver) deve ser atribuído. O uso do botão HMTL abaixo permite o atendimento a essas normas, detalhadas na Política de Republicação Digital FAPESP.