Satélite Europa tem enorme oceano de água líquida aquecida sob crosta gelada, cujo fundo constitui cenário semelhante ao da Terra primitiva e pode eventualmente abrigar microrganismos (imagem: Nasa)
Satélite Europa tem enorme oceano de água líquida aquecida sob crosta gelada, cujo fundo constitui cenário semelhante ao da Terra primitiva e pode eventualmente abrigar microrganismos
Satélite Europa tem enorme oceano de água líquida aquecida sob crosta gelada, cujo fundo constitui cenário semelhante ao da Terra primitiva e pode eventualmente abrigar microrganismos
Satélite Europa tem enorme oceano de água líquida aquecida sob crosta gelada, cujo fundo constitui cenário semelhante ao da Terra primitiva e pode eventualmente abrigar microrganismos (imagem: Nasa)
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Europa, a lua gelada de Júpiter, tem sido um dos principais alvos de interesse da Astrobiologia, como um possível ambiente habitável no Sistema Solar. Isso porque tem, debaixo de uma crosta de gelo com estimados 10 quilômetros de espessura, um oceano de água líquida com mais de 100 quilômetros de profundidade. Uma importante fonte de energia, decorrente da interação gravitacional com Júpiter, mantém essa água aquecida.
Por isso, Europa tornou-se um objeto tão interessante. E a Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos, está planejando uma missão, provavelmente para os anos 2030, com o propósito de estudar a habitabilidade e indícios de atividade biológica no oceano líquido do satélite. Trata-se de um projeto real, já em andamento.
Uma pesquisa teórica, voltada para a avaliação da habitabilidade microbiana em Europa a partir de dados colhidos em ambientes análogos existentes na Terra, foi realizada por um grupo de pesquisadores brasileiros: Thiago Altair Ferreira, Marcio Guilherme Bronzato de Avellar, Fabio Rodrigues e Douglas Galante. O artigo, assinado pelos quatro, acaba de ser publicado em Scientific Reports.
O estudo foi apoiado pela FAPESP por meio do Projeto Temático “O Sistema Terra e a evolução da vida durante o Neoproterozoico”, da Bolsa de Pós-doutorado “Estrelas compactas em binárias: investigando a composição da matéria superdensa” e da Bolsa de Mestrado “Ambientes radioativos naturais como fontes de desequilíbrio químico local e suas potenciais implicações prebióticas”.
“O que fizemos foi explorar os possíveis efeitos de uma fonte de energia biologicamente aproveitável em Europa, com base em informações obtidas em contexto terrestre análogo”, disse o coordenador do estudo, Douglas Galante, pesquisador do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) e do Núcleo de Pesquisa em Astrobiologia (NAP-Astrobio) do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), à Agência FAPESP.
O contexto terrestre análogo foi encontrado na mina de ouro de Mponeng, na África do Sul, localizada a 2,8 quilômetros de profundidade. Nela, descobriu-se recentemente a bactéria Candidatus Desulforudis audaxviator, que sobrevive sem luz solar a partir da hidrólise radioativa da água.
“Nessa mina subterrânea de grande profundidade, há rachaduras por onde vaza água com a presença de urânio radioativo. O urânio quebra as moléculas de água produzindo radicais livres [H+, OH- e outros]. Os radicais livres atacam as rochas do entorno, especialmente a pirita [dissulfeto de ferro, FeS2], produzindo sulfatos. E as bactérias utilizam os sulfatos para sintetizar ATP [trifosfato de adenosina], nucleotídeo responsável pelo armazenamento de energia nas células”, descreveu o pesquisador. “Foi a primeira vez que se observou um ecossistema que subsiste diretamente com base na energia nuclear.”
Segundo Galante e colegas, o ambiente colonizado por bactérias na mina de Mponeng é um excelente análogo do ambiente presumivelmente existente no fundo oceânico de Europa.
“Estudamos como os parâmetros encontrados em Mponeng poderiam ser transpostos para Europa de forma que a lua de Júpiter também apresentasse condições de abrigar ecossistemas semelhantes”, disse Galante.
O primeiro e mais óbvio requisito é a existência de água líquida. A presença de um oceano líquido subterrâneo em Europa deve-se à “força de maré” exercida pela poderosa atração gravitacional de Júpiter.
Diferentemente da Lua terrestre, cuja órbita é quase circular, Europa descreve uma trajetória elíptica muito excêntrica. Por isso, sofre deformação geométrica periódica ao longo do percurso. Quando se aproxima do planeta, sua forma é esticada pelo fortíssimo puxão gravitacional. Quando se afasta, sua forma volta a encolher.
Esse “estica-encolhe” libera enorme quantidade de energia térmica no interior de Europa. Assim, enquanto sua superfície tem a temperatura do espaço profundo, na faixa de menos 270 °C, portanto próxima do zero absoluto, seu subsolo é capaz de alojar um oceano de água não apenas líquida, mas também aquecida.
“Desse modo, em uma região muito distante do Sol e não iluminada pela luz solar, existe um ambiente bastante favorável para a existência de vida, tal como a conhecemos. Porém, não basta existir água líquida aquecida. É preciso que haja também uma fonte de desequilíbrio químico, capaz de gerar energia biologicamente aproveitável”, disse Galante.
Conforme explicou o pesquisador, os gradientes químicos – isto é, as diferenças de concentração de moléculas, íons ou elétrons em regiões distintas – são a base de toda a bioenergética conhecida na Terra. A respiração celular, a fotossíntese, a produção de ATP, a condução de impulsos nervosos e tantos outros processos são, todos eles, baseados na existência de gradientes químicos. Essas diferenças de concentração, que produzem uma direção e um sentido, configuram a chave que destrava a atividade biológica.
“As emanações hidrotermais – de hidrogênio molecular [H2], ácido sulfídrico [H2S], ácido sulfúrico [H2SO4], metano [CH4] e outras – são importantes fontes de desequilíbrios químicos e eventuais fatores de 'transdução biológica' – isto é, da transformação do desequilíbrio em energia biologicamente aproveitável. Essas fontes hidrotermais são o cenário mais plausível para a origem da vida na Terra”, disse.
Urânio, tório e potássio
O modelo proposto por Charles Darwin (1809-1882), de um meio aquoso aquecido rico em sais fosfóricos e de amônia como cenário para a origem da vida, provavelmente não aconteceu em uma poça superficial – como imaginou o naturalista britânico –, mas, sim, em um fundo oceânico, abastecido por fonte hidrotermal.
“Quisemos avaliar a possibilidade de algo semelhante estar acontecendo em Europa. Para tanto, seria necessária uma emanação de água, proveniente do subsolo, que carregasse elementos químicos capazes de produzir tal desequilíbrio. No estágio atual, não temos dados para saber se isso ocorre em Europa. Tal processo depende da química do solo, da dinâmica do hidrotermalismo e de outras variáveis, que, no caso da lua de Júpiter, ainda são desconhecidas. Por isso, procuramos por um efeito físico mais universal que tivesse grande probabilidade de acontecer. E esse efeito é justamente o da ação da radioatividade”, explicou Galante.
Quando o Sistema Solar se formou, ele incorporou uma quantidade de radionuclídeos produzidos pela estrela supernova da geração anterior, cuja explosão ejetou no espaço a matéria que viria a constituir o Sol e todos os astros que em torno dele orbitam. Os vários corpos do Sistema Solar dotados de núcleos rochosos agregaram esses materiais radioativos.
“Tal presença já foi detectada e medida na Terra, nos meteoritos que chegam à Terra e em Marte. Por isso, podemos afirmar, com certa tranquilidade, que deve ter ocorrido também em Europa. Em nosso estudo, trabalhamos com três elementos radioativos: urânio, tório e potássio. Pois são os mais abundantes no contexto terrestre. Com base nas porcentagens encontradas na Terra, nos meteoritos e em Marte, pudemos presumir as quantidades eventualmente existentes em Europa”, disse Galante.
“A partir das quantidades, foi possível estimar a energia liberada, como essa energia estaria interagindo com a água de seu entorno e a eficiência da hidrólise radioativa da água resultante dessa interação na geração de radicais livres. Tais radicais livres são a fonte do desequilíbrio químico. No contexto de Mponeng, como já dissemos, eles interagem com a pirita, produzindo sulfatos, que são utilizados pelas bactérias para sintetizar ATP”, disse.
O estudo mostrou, de forma consistente, que a existência de material radioativo, em quantidades bastante realistas, já seria um fortíssimo propiciador da vida naquela lua. Outro ingrediente necessário é a pirita. Ignora-se se Europa possui pirita ou não. É bastante provável que sim, uma vez que o enxofre (S) e o ferro (Fe) são elementos abundantes no Sistema Solar. Mas este seria um importante tópico a investigar em uma eventual missão espacial à lua de Júpiter.
“Uma das propostas decorrentes de nosso estudo é que, para avaliar a habitabilidade de um corpo celeste, se deve procurar por traços de pirita. Esse é um dos testes do nosso modelo”, sublinhou Galante.
“Europa parece ter, no fundo oceânico, condições muito parecidas com aquelas que existiram na Terra primitiva, em seu primeiro bilhão de anos. Então, estudar Europa hoje é, em certa medida, semelhante a olhar para o nosso próprio planeta no passado. Além do interesse intrínseco que a habitabilidade e a existência de atividade biológica em Europa possam ter, esse estudo também é uma porta para o entendimento da origem e evolução da vida no Universo”, disse.
Caso se confirme a existência de atividade microbiana em Europa, uma pergunta óbvia será se as bactérias presentes na lua jupteriana surgiram lá mesmo ou migraram de outras regiões do Sistema Solar, ou até mesmo de lugares mais distantes. Parece ficção científica, mas esta é também a pergunta que se faz em relação à própria vida na Terra. Uma pergunta para a qual a ciência ainda não tem resposta, pois, no estágio atual do conhecimento científico, não há dados irrecusáveis a favor ou contra uma eventual origem exógena para a vida terrestre.
A antiga teoria da panspermia ou propagação da vida pelo Universo – que foi retomada com novos argumentos pelo astrônomo britânico Fred Hoyle (1915-2001) e seu antigo aluno Nalin Chandra Wickramasinghe, nascido em 1939 no Sri Lanka e atualmente diretor do Buckingham Centre for Astrobiology, da University of Buckingham, no Reino Unido – continua um tema em aberto. Não foi confirmada nem rechaçada de forma cabal.
“Não encontramos, até hoje, evidência de vida fora da Terra. O que temos mostrado em laboratório é que microrganismos, de diferentes tipos, são altamente resistentes e capazes de sobreviver a viagens espaciais. Um cenário possível seria que microrganismos eventualmente ejetados de Marte pelo choque de um cometa viajassem pelo espaço e chegassem à Terra. Sabemos que isso poderia acontecer. Mas não temos nenhuma evidência de que tenha acontecido”, disse Galante.
Cientistas de 26 universidades e instituições de pesquisa do Japão estão conduzindo atualmente o experimento Tanpopo na Estação Espacial Internacional. A missão consiste na coleta de amostras de poeira cósmica para o posterior rastreamento de compostos prebióticos ou mesmo de microrganismos. Se tais microrganismos existirem, mesmo que tenham chegado ao espaço próximo a partir da própria Terra, isso constituirá um formidável argumento a favor da disseminação da vida além dos limites da atmosfera terrestre.
O artigo Microbial habitability of Europa sustained by radioactive sources (doi:10.1038/s41598-017-18470-z), de Thiago Altair, Marcio G. B. de Avellar, Fabio Rodrigues e Douglas Galante, está publicado em www.nature.com/articles/s41598-017-18470-z.
A Agência FAPESP licencia notícias via Creative Commons (CC-BY-NC-ND) para que possam ser republicadas gratuitamente e de forma simples por outros veículos digitais ou impressos. A Agência FAPESP deve ser creditada como a fonte do conteúdo que está sendo republicado e o nome do repórter (quando houver) deve ser atribuído. O uso do botão HMTL abaixo permite o atendimento a essas normas, detalhadas na Política de Republicação Digital FAPESP.