Morreu José Arthur Giannotti, professor emérito da USP, um dos fundadores do Cebrap, em 1969, e responsável pela formação de diversos intelectuais brasileiros (foto: FFLCH/USP)

Brasil perde uma referência na filosofia
29 de julho de 2021

Morreu José Arthur Giannotti, professor emérito da USP, um dos fundadores do Cebrap, em 1969, e responsável pela formação de diversos intelectuais brasileiros

Brasil perde uma referência na filosofia

Morreu José Arthur Giannotti, professor emérito da USP, um dos fundadores do Cebrap, em 1969, e responsável pela formação de diversos intelectuais brasileiros

29 de julho de 2021

Morreu José Arthur Giannotti, professor emérito da USP, um dos fundadores do Cebrap, em 1969, e responsável pela formação de diversos intelectuais brasileiros (foto: FFLCH/USP)

 

Maria Fernanda Ziegler e Claudia Izique | Agência FAPESP – Logo após publicar o seu último livro Heidegger/ Wittgenstein: Confrontos, em 2020, o filósofo José Arthur Giannotti recebeu uma ligação entusiasmada. O interlocutor era só elogios ao livro, que em sua definição estava perfeito. Ao desligar e agradecer o telefonema, Giannotti soltou: “Ou ele não leu ou não está me levando a sério. Não é possível que não tenha uma única crítica a fazer”, disse.

De fato, o livro escrito por Giannotti aos 90 anos é fora de série, muito pelo seu caráter inovador. Na obra, ele faz uma crítica da noção clássica de razão, incluindo aspectos que ele sempre estudou e defendeu, como teoria marxista, uma certa ideia de política, sociabilidade e o modo de funcionamento da sociedade mercantil.

“Da mesma forma que  era um crítico ácido, ele aceitava críticas como ninguém e, inclusive, adorava. Ele tinha esse gosto pela polêmica, pela crítica e acreditava que apenas no diálogo era possível aprender. Havia nele também um compromisso forte com a honestidade intelectual e com o trabalho intelectual, acima da vaidade. E ele instilou isso em várias gerações de pesquisadores das humanidades que começou a formar a partir dos anos 1970 no Cebrap e antes disso na Faculdade de Filosofia da USP”, conta Luis Henrique Lopes dos Santos, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e membro das coordenações adjuntas da FAPESP, que trabalhou por muitos anos com Giannotti.

José Arthur Giannotti morreu nesta terça-feira (27/07) aos 91 anos de idade após passar por complicações de saúde e sofrer uma queda na semana passada. Era um dos maiores nomes da filosofia brasileira. Autor de análises sobre a viabilidade de modelos políticos no capitalismo, era um dos mais respeitados estudiosos da obra de Karl Marx no Brasil, além de autores como Martin Heidegger e Ludwig Wittgenstein.

“Do ponto de vista da filosofia, ele tem uma das obras mais originais da filosofia contemporânea brasileira. Seus livros abordam um pensamento próprio que dialoga com a história da filosofia, mas sempre com um pensamento muito inovador. Essa característica pode ser notada até o fim de sua vida. O último livro, publicado em 2020, teve um impacto muito grande na comunidade filosófica”, afirma Vinicius Berlendis de Figueiredo, professor do Departamento de Filosofia na Universidade Federal do Paraná (UFPR), orientando de Giannotti na iniciação científica, mestrado, doutorado e também assistente no Cebrap.

Paulista da cidade de São Carlos, Giannotti era professor emérito da Universidade de São Paulo (USP). Ele e Bento Prado Jr. eram coordenadores do Departamento de Filosofia da USP quando foram expulsos e cassados pela ditadura civil-militar. “Nesse momento a filosofia da USP passava por um momento muito difícil. O próprio Giannotti tem uma vida pessoal extremamente pesada. Ele é cassado em 1969, precisa sair do país e é nesse mesmo ano que sua esposa morre de câncer. Ele se referia a esse ano como o mais pesado de sua vida. O fato é que ele retorna ao Brasil, com a volta dos cassados, para trabalhar na PUC e na USP e formar o Cebrap”, conta Marco Zingano, professor do Departamento de Filosofia da USP.

Um programa de formação de quadros

O Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), fundado em 1969, formou gerações de intelectuais nas áreas das ciências humanas, não só na filosofia, mas também na antropologia, sociologia, história e economia, por exemplo.

A ideia de constituir um centro de debates e de formação de quadros começou a ser gestada quando Giannotti voltou do exílio na França, período em que escreveu muitas obras e também organizou um grupo de leitura de O Capital, de Karl Marx. Os seminários conferiram uma formação marxista clássica ao grupo e uma visão distinta das teorias de dependência da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).

Integravam o grupo Fernando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso, Leôncio Martins Rodrigues, Paul Singer, Octávio Ianni, Roberto Schwarz, Fernando Novais, Bento Prado Júnior, entre outros.

“O seminário era o momento em que nós, jovens assistentes, podíamos ter um pouco mais daquilo que queríamos fazer: um trabalho de esquerda. Daí a necessidade de dialogar com Marx. Não se tratava de uma escola de marxismo. Era uma maneira de dialogarmos com o marxismo exterior e com o marxismo que existia dentro de nós”, afirmou Giannotti em entrevista ao Valor Econômico, em 2009, por ocasião das celebrações dos 40 anos do Cebrap.

Em 1986, por iniciativa de Giannotti, o Cebrap criou seu próprio sistema de formação de quadros. “Nosso interesse era encurtar o mestrado, que era longuíssimo, de quatro anos. Depois o aluno levava mais quatro a cinco anos para fazer doutoramento. Viviam de bolsas e iam para o mercado já velhos. Era preciso criar válvulas de escape”, disse Giannotti ao Valor Econômico.

O curso, com dois anos de duração, era multidisciplinar. Alunos de diferentes áreas enviavam currículo e eram selecionados em entrevistas. “Em uma tarde de fevereiro ou março de 1986, na mesa quadrada de uma sala no porão do Cebrap, aos vinte e tantos anos, eu respirei fundo para me apresentar a Paul Singer, Guillermo O´Donnel, Ruth Cardoso e José Arthur Giannotti. Uma seleção não convencional para um programa de bolsistas inovador: aos cinco minutos de uma fala sobre objeto, objetivos e hipóteses de pesquisa, fui interrompida pelo Giannotti... 'Já entendi... qual foi o último filme que você assistiu? Comente!' ”, lembra Maria Filomena Gregori, antropóloga, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que integrou a primeira turma do curso de  formação de quadros do Cebrap. Na época, Giannotti era presidente do Cebrap, cargo que voltaria a ocupar entre 1995 e 2001.

Os alunos selecionados formavam um grupo privilegiado, com acesso à biblioteca do Cebrap e a seminários com os pesquisadores do centro ou intelectuais convidados. “Fizemos um seminário com o Jürgen Habermas!”, lembra Helena Sampaio, antropóloga e professora da Unicamp que também integrou a primeira turma dos cursos de formação. “Éramos jovens e já tínhamos autonomia intelectual,”

Os grupos eram formados por estudantes de diferentes áreas, incluindo economia. “Foi uma experiência sem igual, de convívio e amizade entre colegas de diferentes áreas e de convívio muito próximo com intelectuais de primeira ordem. Impacto profundo e duradouro”, diz Amaury Bier, sócio e presidente da Gávea investimentos, que ocupou o cargo de secretário-executivo do Ministério da Fazenda de abril de1999 a novembro de 2002.

Santos conta que no programa os pesquisadores recebiam bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), por um ano a mais que os programas convencionais. O programa era extremamente rigoroso. “Assistir as discussões de conjuntura era prática obrigatória aos bolsistas, combinando resultados de pesquisa com a busca do 'conceito', aliás, marca registrada dos comentários desse filósofo, mestre, amigo a quem tive o privilégio de conhecer e de conviver”, afirma Gregori.

“Quem está na ponta da pesquisa de humanidades passou por esse programa. Todos adquiriram um conceito, que o Giannotti tinha, da pesquisa interdisciplinar, de abrir horizontes. Ele era uma pessoa muito impositiva e ao mesmo tempo carinhosa e generosa. Ele tirava as pessoas da zona de conforto. Todo mundo tinha pânico dele e ao mesmo tempo o amava”, sublinha Santos.

Para Lourdes Sola, conselheira do Núcleo de Políticas Públicas da USP, Giannotti era um “pensador generoso não só com as várias gerações que ajudou a formar, mas também com os adversários: um construtor de pontes entre a filosofia e as ciências sociais. Que seu compromisso com o pluralismo político e rigor intelectual nos sirva de amparo – e não só de exemplo – nesses tempos” .

Vanguardista, iconoclasta

Consta que Giannotti decidiu ingressar na USP por influência do escritor Oswald de Andrade, que conheceu na adolescência, após se mudar para a capital paulista com a família. As aulas eram no prédio da rua Maria Antônia, no início de 1950, com outros nove alunos. “Ele tinha muita admiração pelo Oswald de Andrade e isso também fazia do gesto intelectual do Giannotti uma espécie de iconoclastia. Portanto, ele era um intelectual que tinha esse lado vanguardista e para ser vanguardista tem que ser um pouco iconoclasta”, afirma Figueiredo.

De acordo com Figueiredo, foi essa característica que o fez ser capaz de ir muito a fundo em questões, sem muito receio de pisar em ovos, de contrariar certas correntes de pensamento. “Característica que pode ser percebida já na leitura que ele fez de Marx e depois na própria atuação ou reflexão política. Ele sempre foi muito atuante”, diz Figueiredo.

"Quando ingressei na USP, em 1962, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, no prédio da rua Maria Antônia, tinha já entre suas referências nomes consagrados e estabelecidos e nomes de jovens se consagrando e se estabelecendo no universo de respeitabilidade intelectual e acadêmica característico da efervescência crítica que marcou esses anos. Giannotti brilhava neste firmamento e este brilho só fez se confirmar ao longo do tempo e no tempo em que tive a felicidade de me aproximar dele, mesmo a distância, pelos caminhos que, da linguística, me levaram à epistemologia e à filosofia da linguagem e, pela admiração política, à leitura de sua obra filosófica de inspiração marxista. Deixa muitas saudades e ficará faltando sempre no esforço de inteligência que foi incansável em procurar fazer o país realizar", diz Carlos Vogt, coordenador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), da Unicamp, que presidiu a FAPESP de 2002 a 2007.

Giannotti buscou sempre autonomia por conta de seu compromisso com o pensamento e a relação dos conceitos com a realidade. “Ele não tinha muito medo de se atirar em paradigmas nobres. Então abandonou Marx e foi para o Wittgenstein, depois de ter passado tantos anos lendo Marx e sendo sem dúvida um dos seus intérpretes mais originais e da origem da dialética do trabalho. Ele teve a ousadia e coragem de se abrir para rever a própria posição e assim relativizar algumas ideias que ele havia defendido quando era leitor do Marx. As questões permaneceram as mesmas, mas as soluções mudaram, pois o mundo mudou”, diz Figueiredo.

"Aquele que está boiando no ar”

Em uma de suas últimas entrevistas, ainda inédita e que será veiculada no dia 12 de agosto no canal Curta!, Giannotti fala que a filosofia não é neutra e cita o exemplo de Heidegger e sua filiação ao partido nazista.

“O filósofo em geral é sempre aquele que está boiando no ar. E por isso existem vários filósofos que se agarram aos regimes políticos e passam até a servi-los – como é o caso do Heidegger, a meu ver, um dos grandes filósofos do século 20. Ele que tem uma posição extremamente crítica, embora altamente compreensiva da história da filosofia, acabou acreditando que podia esclarecer até o movimento nazista. Enfim, como é possível que pessoas que leem Platão, Descartes, Pascal ou Kant de repente possam se vincular ao fascismo. Isso é coisa para se pensar”, disse Giannotti em entrevista para a série “Incertezas Críticas” do canal Curta!.

O criador da série, Daniel Augusto comenta que Giannotti no episódio falou sobre filosofia, refletiu sobre a democracia, o fascismo, os desafios da vida no capitalismo contemporâneo, entre outros temas. “Sua morte é uma perda enorme para o Brasil, mas sua obra continuará como uma referência imprescindível para o pensamento no país”, lamenta.

Giannotti foi membro do Conselho Nacional de Educação (CNE) e de diversos conselhos deliberativos da área educacional e científica, como da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Publicou, entre outras obras, os livros Apresentação do mundo (1995), Certa herança marxista (2000), O jogo do belo e do feio (2005) e Lições de filosofia primeira (2011), todos pela Companhia das Letras.

Fernando Henrique Cardoso lamentou nas redes sociais a morte do amigo há mais de 70 anos. “Amigo como poucos, desses que são raros. Deixa saudades e gratidão."

  Republicar
 

Republicar

A Agência FAPESP licencia notícias via Creative Commons (CC-BY-NC-ND) para que possam ser republicadas gratuitamente e de forma simples por outros veículos digitais ou impressos. A Agência FAPESP deve ser creditada como a fonte do conteúdo que está sendo republicado e o nome do repórter (quando houver) deve ser atribuído. O uso do botão HMTL abaixo permite o atendimento a essas normas, detalhadas na Política de Republicação Digital FAPESP.