Heller é diretor do programa de pesquisa do desenvolvimento no Watson Institute for International and Public Affairs da Universidade Brown (foto: Erika de Faria/Temporal Filmes)
O sociólogo político Patrick Heller, especialista em pesquisa do desenvolvimento, comparou a trajetória recente dos três países em conferência da Escola Interdisciplinar FAPESP 2024: Humanidades, Ciências Sociais e Artes
O sociólogo político Patrick Heller, especialista em pesquisa do desenvolvimento, comparou a trajetória recente dos três países em conferência da Escola Interdisciplinar FAPESP 2024: Humanidades, Ciências Sociais e Artes
Heller é diretor do programa de pesquisa do desenvolvimento no Watson Institute for International and Public Affairs da Universidade Brown (foto: Erika de Faria/Temporal Filmes)
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Brasil, África do Sul e Índia são as três maiores democracias consolidadas em seus respectivos continentes: Brasil na América Latina, África do Sul na África, e Índia, a maior democracia do mundo, na Ásia. Mas esses três países, integrantes do BRICS, enfrentam atualmente grandes desafios, ou bem mais do que isso, em um momento no qual, paralelamente à crise climática global, existe também uma crise global da democracia.
A especificidade dessa crise no chamado “Sul Global”, e as diferentes conotações que assume nos três países em pauta foram objetos da conferência do sociólogo Patrick Heller na Escola Interdisciplinar FAPESP 2024: Humanidades, Ciências Sociais e Artes.
Doutor pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, Heller lecionou nas universidades de Columbia e Yale, antes de se estabelecer na Universidade Brown, no estado de Rhode Island, onde é professor de sociologia e diretor do programa de pesquisa do desenvolvimento no Watson Institute for International and Public Affairs. Seu principal foco de pesquisa, desde o começo, foi a Índia, e, mais recentemente, também a África do Sul e o Brasil.
“O estado atual da democracia é, para dizer o mínimo, muito preocupante. Desde o período entreguerras, nunca vimos tanto retrocesso democrático quanto na última década. E o período entreguerras, entre a primeira e a segunda guerras mundiais, acabou nos levando ao fascismo. Hoje, em todo o mundo, temos visto o surgimento do que a literatura da sociologia política chama de ‘populistas etnonacionalistas’: Giorgia Meloni [Itália], Recep Erdogan [Turquia], Viktor Orbán [Hungria]. E, finalmente, Narendra Modi, primeiro-ministro da Índia, dirigente do BJP [Bharatiya Janata Party] e líder da maior democracia do mundo”, disse Heller.
E ressaltou que, à semelhança do que ocorreu no período entreguerras, a nova política desses e de outros líderes da atualidade, inclusive Donald Trump nos Estados Unidos, é uma política de afirmar uma identidade singular contra o “outro”. No caso da Índia, o “outro” são 200 milhões de muçulmanos. “Todos esses regimes, e isso é bastante marcante, promovem ataques aos direitos humanos. Duas décadas atrás, se me dissessem que a política da direita seria atacar os direitos humanos, eu teria achado isso insano”, afirmou.
Citando a famosa frase do antigo primeiro-ministro britânico Winston Churchill (1874-1965), de que “a democracia é a pior forma de governo, exceto por todas as outras”, Heller argumentou que há muito o que defender na democracia. “Em primeiro lugar, as democracias protegem a ideia de pluralismo, e constituições liberais protegem identidades minoritárias. A democracia não é apenas eleições, é também uma sociedade civil vibrante e esferas públicas enérgicas. A única forma de uma sociedade moderna determinar o que constitui o bem social é por meio da deliberação democrática”, falou.
E apresentou um exemplo: “Precisamos lembrar que, no início, a Revolução Industrial, como disse Karl Polanyi [filósofo, sociólogo e economista austro-húngaro, 1886-1964], foi catastrófica para a sociedade. Catastrófica em termos de colonialismo, catastrófica nas primeiras fases de transição. Esquecemos que a expectativa de vida em Manchester, [Inglaterra], na década de 1880, era de 29 anos para trabalhadores homens. Só mais tarde, quando a classe trabalhadora se mobilizou, se organizou e garantiu o direito ao voto, e por fim construiu os modernos Estados de Bem-Estar Social da Europa Ocidental, é que os custos e as desestabilizações da Revolução Industrial foram devidamente gerenciados. E isso ocorreu por meio de um processo democrático”.
Segundo o pesquisador, as democracias são especialmente necessárias para domar o poder, no momento em que as novas tecnologias disruptivas estão transformando a natureza da economia global e a inteligência artificial é impulsionada em grande parte por interesses privados com fins lucrativos, sem quase nenhuma estrutura regulatória.
Democracia e igualdade
Voltando aos três países citados, Heller argumentou que nenhuma dessas democracias deveria existir, se os grandes teóricos do passado estivessem certos: “Alexis de Tocqueville, Karl Marx, Stuart Mill, todos argumentaram que a democracia só é possível quando há um certo nível de igualdade na sociedade. E os países de que estamos falando são todos profundamente desiguais. Ainda assim, eles se tornaram democracias contra todas as probabilidades. São sociedades pós-coloniais, algumas mais recentes, outras mais antigas. Todas com desigualdades de classe profundas”.
Apesar de proibido pela Constituição da Índia, o sistema de castas continua entranhado na sociedade indiana. No Brasil e na África do Sul, as desigualdades, herdadas do passado colonial, ainda são profundamente racializadas. “Ao seguir as notícias do Brasil, sempre fico impressionado com o fato de que, toda vez que se fala em gastos sociais, o ‘mercado’ responde, e não positivamente. O que é o ‘mercado’? É uma forma de poder estrutural, que limita a capacidade de as democracias fazerem o que o povo quer que elas façam. Adam Przeworski [cientista político polonês radicado nos Estados Unidos] disse que, na era do domínio do mercado, o povo pode votar, mas não pode escolher. Pode votar em um governo distributivista, mas esse governo não pode ser capaz de fazer distribuição”, comentou Heller.
Historicamente, todos os três países passaram por rupturas com o passado, mas não foram rupturas revolucionárias, pois as elites tradicionais largamente sobreviveram às transições. “E há um ponto importante: não existe ‘saída’ para o excedente populacional. No auge da Revolução Industrial na Europa, antes da democracia, o problema era o desemprego. A solução da Europa para o exército de reserva de mão de obra foi exportá-lo, mandando trabalhadores pobres para os Estados Unidos, para o Brasil, para a África do Sul. Hoje, o Sul Global não tem essa opção. Há 400 milhões de pessoas na Índia vivendo com menos de US$ 2 por dia. Adorariam emigrar, mas não podem porque agora temos passaportes e fronteiras”, pontuou o pesquisador.
Crise na democracia
Heller lembrou que todos os três países passaram, ou passam, por crises da democracia: “Na Índia, Narendra Modi chegou ao poder em 2014 e permanece no poder. Foi reeleito duas vezes. Ele é o avatar do nacionalismo hindu. Sua doutrina, a doutrina do Hindutva, diz que a Índia é uma nação hindu. É uma doutrina centenária, com intelectuais orgânicos, quadros, organizações de massa. Mas a Índia não é uma nação hindu. Há 200 milhões de muçulmanos, 60 milhões de cristãos, parses, sikhs, muitas outras identidades religiosas. Mesmo os hindus não concordam sobre o que é o hinduísmo. É a religião mais descentralizada do mundo. Não há papa, nem igreja. O hinduísmo é uma prática espiritual antiga, mas é incrivelmente diverso. Além disso, a ideia de uma nação hindu é um ataque à própria essência da democracia indiana, que sempre foi o secularismo. Desde o primeiro dia, a Constituição indiana diz que a Índia é uma democracia constitucional socialista e secular”.
A consequência, conforme o pesquisador, é que os 200 milhões de muçulmanos estão sendo sistematicamente excluídos: “Trump fala que imigrantes envenenam o sangue do povo, Modi diz que muçulmanos são infiltrados. O discurso é de demonização. Há um ataque frontal à sociedade civil. Ao longo dos anos, tive parcerias com uma dúzia de instituições acadêmicas na Índia. Nenhuma existe mais. Muitas instituições independentes foram desmontadas”.
Além disso, enfatizou Heller, o modelo econômico é de capitalismo de compadrio. “Todos os Estados apoiam o capitalismo em um mundo capitalista, mas há uma diferença entre apoiar o capitalismo como um sistema — com instituições, práticas, leis, regulações — e apoiar empresas específicas. Na Índia, a economia é agora dominada por alguns bilionários muito próximos de Modi”.
O pesquisador situou esses dados em um contexto amplo, ressaltando que a democracia indiana é única porque começou com sufrágio universal, ao passo que todas as outras democracias foram incrementais. Lembrou também que a Índia é o país mais diverso do mundo, com 19 línguas nacionais, e todas as grandes religiões. “O grande feito da democracia indiana foi construir a nação. Mas houve pouca transformação socioeconômica, e cerca de 80% da força de trabalho é hoje subproletária. Em 2004, o Partido do Congresso voltou ao poder e, com apoio da sociedade civil, construiu uma arquitetura mínima de Estado de Bem-Estar Social, baseada em direitos [trabalho, educação, alimentação, informação]. Esses avanços foram revertidos pelo BJP de Modi, que desmontou o Estado de Bem-Estar, centralizou poder e promoveu o capitalismo de compadrio. Hoje, tudo é entregue em nome do grande líder, não como direito, mas como presente”, afirmou.
Na África do Sul, depois de 27 anos de prisão (de 1962 a 1990), Nelson Mandela (1918-2013) foi eleito presidente em 1994. E liderou uma transição muito bem-sucedida para a democracia, desmontando o regime de apartheid e promovendo a reconciliação. O grande problema, segundo Heller, surgiu na era Zuma. Jacob Gedleyihlekisa Zuma governou o país de 2009 até 2018, quando foi obrigado a renunciar. O Ministério Público acusou Zuma de “sequestro do Estado”. O que ele fez? “Vendeu o Estado, e isso parece extraordinário, a uma família de empresários indianos, os irmãos Gupta. Não só vendeu ativos estatais a preços irrisórios, mas permitiu que eles indicassem ministros. Foi um capitalismo de compadrio em grande escala. Isso criou tanto descontentamento que o Congresso Nacional Africano [African National Congress, ANC], o partido de Mandela, o partido do antiapartheid, o partido da libertação, hoje, pela primeira vez nas últimas eleições, não obteve 50% dos votos. E em seu lugar surgiram partidos populistas, um de extrema direita, outro de extrema esquerda, mas ambos antidemocráticos”, informou Heller.
Retração das elites
Ele ponderou que estamos em uma era de reação, na qual, conforme escreveram Steven Levitsky e Daniel Ziblatt no livro Como as democracias morrem, as democracias estão sendo minadas por meios democráticos. “Esses líderes são eleitos, mas, quando chegam ao governo, concentram muito poder no Executivo, minam pesos e contrapesos independentes, redefinem o que significa ser cidadão em termos étnico-raciais estreitos: Hindutva na Índia, nacionalismo branco evangélico nos Estados Unidos, as redes sociais como armas sociais, e vocês conhecem bem o caso brasileiro.”
O pesquisador argumentou que existe uma diferença importante entre os chamados Norte e Sul globais. Porque, lá, esse movimento de exclusão se volta contra os imigrantes. Mas, aqui, o alvo são as pessoas de dentro: muçulmanos na Índia, negros pobres das periferias no Brasil.
Além disso, apontou um fenômeno que chamou de “retração das elites”. Espaços antes reservados como privilégio das elites agora estão sendo abertos para as massas, como é o caso das universidades no Brasil. E isso suscita reações. “Na Índia, há 20 anos, a Suprema Corte introduziu mais cotas para castas inferiores nas universidades federais, e a reação foi intensa, com protestos e imolações. Muitos argumentam que a ascensão do BJP, o partido de Modi, é uma resposta das elites de casta superior a essa mobilização de baixo.”
Subproletariado
Para além dos alinhamentos e realinhamentos eleitorais, Heller destacou o que considera ser um problema de fundo: o problema do subproletariado, termo cunhado pelo economista Paul Singer (1932-2018) no Brasil. Sem contratos formais, sem salários fixos, sem amparo legal, sem proteção social, morando em favelas, esses trabalhadores informais são vulneráveis e socialmente dependentes das relações de gênero, raça, casta etc. “Marx os chamou de classe perigosa. É perigosa do ponto de vista da democracia. Modi, por exemplo, mobiliza dalits [grupo social excluído do sistema de castas, que ocupa a posição mais baixa na hierarquia social do hinduísmo] oferecendo-lhes identidade como hindus, o que, segundo a lógica do BJP, pelo menos os torna ‘melhores’ do que muçulmanos. Mas os mobiliza para o populismo do ódio”, afirmou.
Na África do Sul, o apartheid, o sistema mais minuciosamente organizado de segregação racial total já inventado, foi desmantelado por uma ampla coalizão de forças, reunindo o Congresso Nacional Africano (ANC), a Frente Democrática Unida (United Democratic Front, UDF, que congregava organizações civis, religiosas, estudantis e sindicais) e outros movimentos de libertação.
“A África do Sul aprovou uma Constituição muito semelhante à brasileira, com todos os direitos democráticos e também muitos direitos sociais. A Constituição sul-africana prevê vários mecanismos participativos [orçamentos participativos, conselhos setoriais etc.]. É uma das Constituições mais progressistas do mundo em termos de gênero, sexualidade, reconhecimento de minorias e ação afirmativa. Além disso, a África do Sul tem um judiciário muito forte e independente e uma mídia também independente. Esse é o lado bom da história. O lado ruim é que a UDF, essa aliança tão ampla que organizou protestos, greves, boicotes, acabou desmantelada pelos dirigentes do ANC, que retornaram do exílio”, sistematizou Heller.
E prosseguiu: “O ANC tornou-se um partido leninista, altamente hierárquico, com disciplina rígida, hostil a movimentos sociais independentes. Desmobilizou a sociedade civil, desmantelou organizações, excluiu igrejas, cooptou sindicatos. Toda a vigorosa sociedade civil que levou ao fim do apartheid foi desmobilizada, e as instituições participativas, minadas. Isso envolveu, por exemplo, o empoderamento econômico de negros [BEE], o que em princípio era ação afirmativa, mas, na prática, colocou líderes do ANC nos conselhos de empresas brancas, criando aliança entre capital branco e ANC”.
Como resultado de tudo isso, o país avançou pouco em bem-estar, educação, saúde, apoio ao setor informal, segundo a avaliação do pesquisador. “Comparado ao Brasil, foi um desempenho decepcionante, levando à ascensão de partidos populistas”, comentou Heller.
Aprofundamento democrático no Brasil
O pesquisador recordou que, no Brasil, entre 1991 e 2010, houve um expressivo avanço no índice de desenvolvimento humano (IDH), impulsionado por políticas como Bolsa Família, aumento do salário mínimo, formalização do trabalho informal, expansão de serviços públicos, que incorporaram parcialmente o subproletariado. E enfatizou que a Constituição de 1988, fortemente influenciada por movimentos sociais, institucionalizou relações Estado-sociedade civil, municipalizou o poder, criou conselhos setoriais e processos participativos. Isso deu ao Brasil uma superfície institucional maior para a interação e coprodução entre Estado e sociedade civil.
“Em comparação com Índia e África do Sul, o Brasil avançou mais no aprofundamento democrático, embora não seja perfeito. Durante o governo Bolsonaro, houve retrocessos, mas a sociedade civil permaneceu relativamente robusta, assim como o poder local. Concluindo, ao longo do tempo, Índia e África do Sul regrediram, enquanto o Brasil avançou mais no aprofundamento democrático, apesar de retrocessos recentes. Há resiliência democrática. Na Índia, estados do sul resistem ao BJP. Na África do Sul, a sociedade civil profissional depôs Zuma. Nos EUA, a Califórnia resistiu a Trump. O comprometimento de cidadãos e da sociedade civil é a chave para a resiliência democrática”, concluiu Heller.
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